A primeira e última vez que Mar usou o ChatGPT foi para um trabalho da faculdade, e “ficou logo desconfiada”. Aos 21 anos, Mar Ferreira é estudante de mestrado em edição de texto. “Eu tinha um trabalho sobre um livro que estava a ter dificuldade em encontrar e uma amiga sugeriu usar essa ferramenta para procurar. Na primeira linha vi logo um erro.” Foi a única vez que recorreu a um chatbot de inteligência artificial e “não foi uma boa experiência”, confessa.
O estudo O impacto da inteligência artificial no ensino português, levado a cabo pela Universidade Lusófona no ano passado, revelou que 53% dos estudantes universitários recorriam a IA. Num universo de mais de 400 inquiridos, os resultados preliminares mostraram que 78,5% consideram que estes sistemas “convocam preguiça mental” e 73,4% acreditam que a IA “vai tornar as pessoas dependentes das máquinas”.
Apesar desta tendência, há divergentes. Jéssica Marques está reticente em relação à inteligência artificial, no geral. “Acho que não é natural, está tão normalizado, mas não é natural. Como é que eu vou usar para um trabalho uma coisa que não fui eu que escrevi?”. Licenciada recentemente em Línguas, Literaturas e Cultura, a jovem sente que “o pior que pode acontecer é uma pessoa tornar-se desinteressada”, fenómeno que lhe parece facilitado pelo uso de IA.
João Pina tem 23 anos e estuda Engenharia Aeroespacial. Embora reconheça que o ChatGPT é “útil pela facilidade e rapidez na resposta”, não recusa totalmente o ChatGPT, mas “limita o seu uso”. “Sempre que o problema envolve pensamento critico ou criatividade evito usar”, afirma o jovem, que acredita que o uso de IA generativa pode levar à “perda de várias capacidades mentais”. Afirma que usa esta ferramenta para “pesquisas simples”, quando quer uma resposta rápida.
Recentemente, um estudo da Microsoft intitulado O impacto da IA generativa no pensamento crítico, revelou que as tecnologias podem deteriorar faculdades cognitivas. O inquérito concluiu também que a utilização de IA pode prejudicar a criatividade. “É muito fácil e conveniente deixar que outro meio faça o trabalho chato, mas não gosto das implicações disso”, afirma João Tomás Pereira.
João Pina tem 23 anos e actualmente é estudante de Engenharia Aeroespacial no Instituto Superior Técnino
DR
Estudante de Ciências Musicais, João Tomás relata que “não se sente bem em não fazer o trabalho que é suposto fazer”. Estando numa área de estudo que envolve a componente da criatividade, João reflecte sobre “a forma muito fácil com que podemos desligar” o pensamento crítico. “Pessoalmente, assusta-me perder este sentido de crítica em geral”. Além disso, não gosta de sentir “que perde a agência”.
A informação que o ChatGPT oferece vem pré-seleccionada, “o que faz com que se perca o sentido de curadoria, de ler e escolher o que nos faz sentido usar”, diz João Tomás. Mar tem a mesma preocupação: “Mesmo no Google, que agora tem aquela selecção feita com IA, eu ignoro e procuro eu, quero ver onde está a informação, se é uma fonte em que eu confio”.
João Tomás estuda Ciências Musicais na Nova FCSH
Nelson Garrido
João Pina considera que a informação do ChatGPT é demasiado “resumida, vaga e muitas vezes falsa”, o que implica que perca algum tempo a “discutir” com a ferramenta, enquanto um motor de busca como o Google lhe dá a informação sem estar filtrada.
O problema maior, para Jéssica, é que “não é autêntico”. “Se eu escrever um ensaio, até pode não ficar bom, mas pelo menos é meu.” Para a jovem, que apagou as redes sociais há algum tempo, tem sido “fácil” manter-se longe do ChatGPT. “Simplesmente não tenho interesse e não sinto grande pressão para o utilizar”, garante.
Mar está a estagiar numa editora de livros, área em que tem havido polémicas em relação a autores que usam IA. “Há uma frase que está a ser popularizada na Internet: ‘Se nem escreveste porque é que eu me vou dar ao trabalho de ler?’, e eu acho que nesta área é verdade”. Acrescenta que acha “ridículo expandir tanto o uso da inteligência artificial para a escrita e muitas vezes para avaliar manuscritos”. Mar acha que o ChatGPT tem “linhas muito turvas” no que diz respeito ao roubo de propriedade intelectual, o que a preocupa porque “põe em causa o trabalho de anos das pessoas”.
Jéssica Marques nunca usou ChatGPT
Nuno Ferreira Santos
Já lhe perguntaram muitas vezes se não tem medo de seguir a edição de livro, visto que “daqui a uma década o ChatGPT vai fazer isso”. “É muito desanimador ouvir isso, mas sei que é uma possibilidade, especialmente nas editoras grandes”, diz Mar.
O crescimento da IA generativa tem sido um motor de mudança nos ambientes académicos, dos estudantes aos professores. Mar Ferreira relata que vê estas mudanças no seu dia-a-dia. Quando vai às aulas e “vê os computadores das pessoas à frente, a abrir o ChatGPT se calhar duas ou três vezes ou mais na aula”.
Mar Ferreira freuqnta o mestrado em edição de texto e não usa o ChatGPT
DR
Além disso, a postura dos professores mudou, o que também preocupa Mar. “Quando eu estava na licenciatura as pessoas avisavam que tinham tolerância zero com inteligência artificial, agora estou a ver a transição para amigos que eu tenho que estão na licenciatura agora e que os professores dizem para procurar ideias no ChatGPT”, afirma.
“Eu quero ter um curso e quero fazê-lo. Acho que é só um caminho mais fácil pedir ‘ChatGPT faz aí este trabalho, muda estas palavras”, conta Mar. Depois há o hábito.“Já ouvi pessoas que começaram só a pedir umas coisas e agora já nem lêem nada”, acrescenta. João Tomás garante que sabe que “se ceder uma vez” será uma bola de neve. “Eu sei que tenho de estabelecer uma linha que não quero passar”, afirma.
“Começamos a pedir ajuda para tarefas mais difíceis e maçadoras, depois pedimos para as que não são assim tão maçadoras e quando damos por ela pedimos ajuda para tarefas que não o são de todo”. O estudante acrescenta que “o principal problema é não saber onde está a linha, ou ir fazendo cedências e ir avançando a linha”.
O medo de deixar de fazer o que gostam de forma autónoma distancia-os ainda mais destas ferramentas. João Tomás vê isso acontecer com os colegas – “muito facilmente utilizamos este tipo de programas para algo que nos é chato, e passamos rapidamente a utilizar este tipo de programas para coisas de que nós gostamos, para coisas que nos dão prazer”. Jéssica acrescenta que se alguém tem “o privilégio de estudar algo que gosta”, então “não há necessidade de pôr um sistema a formular trabalhos” por si.
A necessidade de recorrer sempre a ferramentas de IA generativa é uma realidade para alguns jovens. João Pina diz que “entende essa dependência”, e considera preocupante a “ilusão que os chatbots transmitem de que há alguém do outro lado com quem falar”, especialmente num mundo em que a solidão “é a epidemia mais preocupante”. Jéssica acredita que esta ferramenta se torna “mais necessária quanto mais a usarmos”, o que pode contribuir para um aumento dessa dependência, aponta.
O impacto ambiental
Além de tudo isto, há ainda a questão ambiental. O ChatGPT gasta cerca de uma garrafa de água por cada 100 palavras que o chatbot gera. Mar sabe que “há pessoas que reviram os olhos” quando ouvem esta razão, mas não se abstém de criticar. “Acho que o ChatGPT é tão desnecessário, pelo menos para aquilo que as pessoas estão a usar, como para gerar imagens delas como desenhos animados, ou para pedir que lhes faça os trabalhos”.
Todos estes jovens, que têm contrariado a onda da IA, têm hábitos que os ajudam a exercitar o pensamento crítico no dia-a-dia. Livros, documentários, notícias. “Acho que até é difícil não termos pensamento crítico sobre as coisas, desde que não passemos essa parte da análise para as ferramentas o fazerem”, diz João Tomás – que mantém a música e a leitura como hábitos diários.
Para promover e exercitar a criatividade no dia-a-dia, Mar insiste na importância de consumir informação de diferentes meios e de forma diversificada – televisão, rádio e imprensa. E no “clichê”: eu “leio, leio muito”. João Pina fala de uma “paixão que tinha em criança” e que recuperou recentemente, desenhar e pintar. Jéssica diz que “o journaling (manter uma espécie de diário) ajuda muito”. Escreve sobre livros, sobre os eventos a que vai, sobre animais. Além disso, vai ao cinema com alguma frequência e workshops de leitura.
Ninguém sabe o futuro da inteligência artificial, mas estes jovens acreditam que “certamente a IA vai estar cada vez mais presente em todas as indústrias”. João Pina confessa que não tem medo da evolução da IA, mas diz que tem “medo, sim, do uso que as pessoas lhe vão dar”.