Foto: Felipe Rau/Estadão
Maria Edna de MeloEndocrinologista do Grupo de Obesidade e Síndrome Metabólica do Hospital das Clínicas e diretora da Abeso
Em agosto de 2025, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) decidiu não incluir na rede pública de saúde a liraglutida (princípio ativo do Saxenda) e a semaglutida (presente no Wegovy), conhecidas como canetas para obesidade.
Na época, o Ministério da Saúde informou, em nota, que as decisões “consideram as melhores evidências científicas disponíveis, abrangendo eficácia, segurança e análises de custo-efetividade”. Segundo a pasta, o impacto financeiro estimado seria de R$ 8 bilhões anuais.
Mas a recusa reacendeu um debate que vai além dos custos. Isso porque o órgão sequer reavaliou a sibutramina, opção mais barata proposta pela Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso) para pacientes sem comorbidades.
“Tem membro da própria Conitec que diz: ‘Não adianta tratar se as pessoas continuam expostas a ultraprocessados’. Condicionar o tratamento a um sistema alimentar ideal é a manifestação mais nua e crua da gordofobia, que é estrutural”, declara a endocrinologista Maria Edna de Melo, médica do Grupo de Obesidade e Síndrome Metabólica do Hospital das Clínicas e diretora da Abeso.
Na entrevista a seguir, ela critica a falta de uma linha de cuidado estruturada para obesidade e aponta a rigidez técnica e o preconceito estrutural como barreiras silenciosas para o avanço do tratamento no Brasil. “O que explica haver seis medicamentos para emagrecer aprovados pela Anvisa e não ter nenhum disponível no SUS? Essa negligência é uma forma de preconceito institucionalizada”.
A Conitec negou recentemente a incorporação da liraglutida e da semaglutida ao SUS, alegando custo elevado. E nem chegou a avaliar a sibutramina, que é mais barata.
No fim do ano passado, a Abeso solicitou à Conitec a incorporação de sibutramina, para pacientes sem comorbidades – sem diabetes, sem hipertensão – e liraglutida e semaglutida para o paciente no extremo, que teve um AVC, um infarto, que é de alto risco e o mais caro para o sistema. Os dois pedidos foram negados. No caso da sibutramina, a justificativa foi de que já tinha sido avaliada previamente em 2019.
Mesmo que tenha um custo menos elevado do que as famosas canetas.
Sim, mas quando a Conitec faz os cálculos, considera toda a população obesa. E a obesidade é muito prevalente, então mesmo uma medicação barata gera alto impacto orçamentário. Essa análise é como se fosse um bolo. Você vai colocando os ingredientes que achar mais pertinentes. Se você colocar mais ou menos pacientes, mais ou menos redução de dano, muda o resultado e se reflete no custo-efetividade.
E ignorar o tratamento tem custo alto para o sistema. Até porque a obesidade tem repercussão em muitas outras doenças…
Exato. O que a gente sabe é diferente do que a gente tem de dado na literatura. A gente sabe, por exemplo, que uma medicação que leva a uma perda de peso de 10% reduz glicemia, depressão, ansiedade. Mas isso não pode ser utilizado. Só entra na conta aquilo que tem estudo clínico randomizado. Então, por exemplo, a gente sabe que a sibutramina leva a uma perda de peso de 10% até 15%, e que esse tipo de resultado reduz a apneia do sono. Mas eu não posso fazer essa relação porque não tenho esse dado extrapolado (para a sibutramina).
Porque, ao desenhar um estudo clínico dos medicamentos, se considera apenas um “n” e não os vários benefícios associados. Um estudo mostra a perda de peso, o outro mostra redução de diabetes. A correlação é óbvia, mas não está no mesmo estudo clínico randomizado. Por isso é importante que a rigidez científica se encontre com a racionalidade.
A endocrinologista Maria Edna de Melo aponta que a gordofobia é estrutural e atravanca os avanços para o tratamento da obesidade Foto: Felipe Rau/Estadão
Hoje, um médico do SUS pode prescrever sibutramina?
Não, para tratamento de obesidade não pode. Por isso, muitos médicos acabam prescrevendo os análogos caros, porque não exigem receituário. E o que faz o paciente de baixa renda ao receber uma receita de Mounjaro ou Wegovy? Fica frustrado, porque chega na farmácia e vê que custa o salário inteiro. Às vezes, compra uma caneta, mas não consegue manter o tratamento. É uma sequência de erros, fruto da falta de uma linha de cuidado estruturada.
Como acontece em outros países?
No Reino Unido, na Escócia e em outros países europeus, eles definem perfis específicos para o tratamento com esses medicamentos, como IMC acima de 35, idade acima de 45, alto risco cardiovascular. Assim, reduzem para o perfil de paciente mais grave e, com isso, conseguem viabilizar acesso. No Brasil, o governo deveria negociar com as farmacêuticas preços menores para ampliar a oferta.
O estigma de que obesidade não é doença e, sim, falta de força de vontade da própria pessoa pesa nas decisões públicas?
Muito. Tem membro da própria Conitec que diz: “Não adianta tratar se as pessoas continuam expostas a ultraprocessados”. Isso é verdade, mas não pode ser argumento para negar tratamento. A cesta básica inclui produtos que não deveriam estar ali, e o subsídio à indústria de alimentos é muito maior que o à agricultura familiar. Condicionar o tratamento a um “sistema alimentar ideal” é a manifestação mais nua e crua da gordofobia, que é estrutural. O que explica haver seis medicamentos para emagrecer aprovados pela Anvisa e não ter nenhum disponível no SUS? Essa negligência é uma forma de preconceito institucionalizada.
A senhora participou da elaboração de um documento sobre obesidade no contexto de emergência. O que ele mostra?
É um trabalho da Abeso com a Associação Brasileira de Medicina de Emergência. Quando chega um paciente com obesidade grave, muitas vezes ninguém sabe o que fazer. É difícil conseguir acesso venoso quando tem suspeita de um tromboembolismo fulminante, e é preciso ficar atento para saber se esse paciente vai caber no tomógrafo ou não. Não é simples chegar à dose adequada dos antibióticos ou medicamentos usados para sedar antes de intubação. O corpo do paciente impõe desafios técnicos e até nesse momento há preconceito: ninguém está preparado para cuidar.
Essa negligência é uma forma de preconceito institucionalizada
Maria Edna de Melo, endocrinologista
E a prevalência da obesidade segue crescendo.
Sim. É um crescimento descontrolado. Antes se falava em “reduzir”, hoje estamos mais humildes e a meta é apenas “desacelerar”.
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E quanto às crianças e os adolescentes com obesidade?
Existe um documento muito bem feito, o “Instrutivo de sobrepeso e obesidade na infância e adolescência”, para atenção primária. Mas quando o caso é grave, o acesso à atenção especializada é ainda pior que para adultos. E os únicos medicamentos aprovados para essa faixa etária são os análogos de GLP-1, de alto custo. Ou seja, é uma população ainda mais à margem.
Além do acesso, há o preconceito desde cedo.
Em todo ambiente, o paciente com obesidade é estigmatizado. O olhar é de julgamento: “Tão bonita de rosto, como chegou nesse corpo”?, “como essa pessoa não se cuida?”. Essas pessoas sofrem preconceito até dentro do serviço de saúde. Vai no ortopedista e ouve: “Perca 20 kg e volte para operar o joelho”. Se é uma mulher que busca aconselhamento reprodutivo, escuta: “Emagreça para fazer fertilização”. Isso é devastador. E nas crianças e adolescentes é pior, porque são ainda mais sensíveis.
Isso acaba afastando a pessoa com obesidade dos tratamentos médicos…
Exato. Apenas 13% das pessoas com obesidade procuram o SUS. Isso de forma geral. Procurar o SUS para tratar obesidade é ainda mais raro. A gordofobia estrutural afasta os pacientes. Se alguém chega dizendo “preciso tratar minha obesidade”, recebe uma lista de proibições e a recomendação de caminhar. Mas e na vida real? A mulher da periferia, às 5h30, já está pegando o segundo transporte para trabalhar. O que mostra que a obesidade também tem recorte de gênero e raça. O aumento da obesidade é maior entre as mulheres, especialmente negras e periféricas. A branca da classe A está lá, magra, com seu Mounjaro, com seu Wegovy.
A gordofobia estrutural afasta os pacientes
Maria Edna de Melo, endocrinologista
A senhora costuma criticar o foco em práticas sem evidência no SUS, como o tai chi chuan. O que realmente funciona na mudança de estilo de vida?
As melhores evidências vêm dos programas intensivos de mudança de estilo de vida, com acompanhamento semanal. A nutricionista discute temas, orienta automonitoramento do peso e da alimentação, estimula registro e atividade física. Mas exigem sustentação a médio e longo prazo. Hoje seria possível aplicá-los até de forma virtual, com custo menor. Mas esses programas não existem no SUS. O que temos é uma doença com aumento descontrolado de prevalência e cujas terapias eficazes estão fora do alcance da maioria.