A noite de 28 de outubro soltou a festa no Bairro da Abuxarda e no Grupo Desportivo e Recreativo das Fontainhas de Cascais, graças à felicidade do “menino” Salvador Uco Blopa, que bisou na estreia pela equipa principal do Sporting, frente ao Alverca, nos “quartos” da Taça da Liga (5-1). Em Alvalade, o avançado de 18 anos acalentou o percurso iniciado em 2015, quebrou o recorde fixado por Fernando Peyroteo em 1937 e acelerou a renovação de contrato.
Do sintético do Fontainhas à cobiça leonina, da fidelidade aos amigos à importância da academia de Alcochete, o Maisfutebol mergulhou na essência deste jovem de raízes guineenses, até terça-feira desconhecido pela maioria dos sócios do Sporting.
«Espero, um dia, estar em Alvalade como jogador. Vou batalhar todos os dias», disse em abril de 2024, aquando da assinatura do contrato profissional. Aquilo que para muitos foi interpretado como mote, para Salvador Blopa era a repetição da premissa que permitiu crescer.
Recuemos, então, ao Bairro da Abuxarda, casa de Salvador Blopa, nascido em junho de 2007.
A morar com mãe, avós e irmãos – duas irmãs mais velhas, um irmão e uma irmã mais novos – Blopa, então com 6 anos, encontrou motivos para sorrir no Grupo Desportivo e Recreativo das Fontainhas de Cascais. Pela mão de uma das irmãs, o menino – a princípio introvertido – revelou caraterísticas marcantes. O relato pertence a Jorge Martins, naquela altura treinador e coordenador da formação.
«Lembro-me de ele chegar ao clube com umas chuteiras completamente rebentadas, ainda desdentado. Falava pouco, era introvertido, algo que mudou rapidamente. Passou a ter um enorme sorriso, raramente o vimos triste. Sentia-se confortável e feliz. Não foi por jogar mais ou menos. Procurei ser o apoio do Salvador, senti que podia ajudar na alimentação e na segurança. Íamos sempre almoçar ao fim de semana depois dos jogos, por exemplo. E em vez de estar na rua a fazer asneiras, estava comigo», começa por revelar ao Maisfutebol.
Salvador Blopa no GDR das Fontainhas de Cascais (cortesia de Vasco Jardim Noronha)
Salvador Blopa no Fontainhas (cortesia de Jorge Martins)
À conta deste sentido de missão, Jorge Martins marcou uma era no Fontainhas, lembrado como figura paternal de várias crianças. Além de oferecer refeições, também se responsabilizava por transportar os pupilos da escola para o treino, e dali para casa.
«Clubes há muitos, mas difere a forma de tratamento. Naquela fase são crianças, ninguém sabe o futuro. Para lá do treino, é importante formar pessoas. O Salvador deu jogador, mas outros meninos também cresceram com valores. Também conseguimos autênticas vitórias com esses meninos», prossegue.
Em todo o caso, o elo de Jorge Martins com Blopa foi maior, distinto, uma vez que a criança até partilhava as férias de verão com a família do «tutor».
Salvador Blopa no Fontainhas (cortesia de Jorge Martins)
Jorge Martins, Salvador Blopa e outras crianças formadas no GDR das Fontainhas de Cascais (cortesia de Jorge Martins)
Neste porto seguro, Salvador Blopa encontrou espaço para se evidenciar, ora pelos dotes técnicos, ora pelo rápido desenvolvimento físico. De olho no potencial, Benfica e Sporting lançaram-se a este talento, uma fase acompanha de perto por Luís Dias, antigo treinador e coordenador técnico da formação dos leões.
«O Salvador era mais alto do que as crianças da sua idade, rápido, com facilidade de ganhar metros, calmo, educado e humilde. Apesar do contexto, tinha um perfil diferenciado, era um jovem muito bem formado, sempre correto e focado. Depois de acordo com o Fontainhas, foi inscrito no Sporting em julho de 2017», conta ao Maisfutebol.
Todavia, esta não era a vontade da criança de 10 anos, que já havia escapado a treinos dos leões: «Em setembro disse-me que queria ficar mais um ano futebol de sete do Fontainhas, porque – sem ele – os colegas iriam perder. Apesar do risco de o perder para um rival, passámos a carta de desvinculação».
Também na perspetiva de Luís Dias – responsável pelo despontar de dezenas jovens, como Nuno Mendes – a prioridade era a felicidade do «menino». Assim, em 2017/18, Salvador Blopa jogou oficialmente pelo Fontainhas e disputou alguns torneios pelo Sporting.
«Esse sentido de solidariedade com os amigos deve ser enaltecido, hoje estou muito satisfeito. Essas decisões acabaram por fazer sentido. Mas nunca foram pacíficas, porque o assédio é imenso sobre as crianças», acrescenta Luís Dias.
«Blopa não foi aposta de futuro, tem muito mais mérito»
De leão ao peito desde 2018/19, Jorge Martins continuou a ser um apoio decisivo, desta feita levando o «miúdo» a treinar no Estádio Universitário. Contudo, as subidas de escalão obrigaram o adolescente a viajar até Alcochete, onde passou a residir aos 14 anos. A esse propósito, Luís Dias identifica semelhanças com Nuno Mendes, uma das referências de Blopa.
«Ambos residiam na Grande Lisboa e, em condições normais, não ficariam na academia. Mas um jogador com este potencial deve ver garantidas condições de conforto, alimentação e acompanhamento ao estudo. Caso contrário, o Sporting não teria essa segurança. A partir dos sub-14, o Sporting passa a ter maior controlo, em prol de uma formação escolar e social», explica.
Mas interrompe o raciocínio. É o primeiro a reconhecer que Blopa «nunca foi um jogador em quem o Sporting depositasse as expectativas mais altas», o que exigiu resiliência redobrada. O ala serviu como remendo para problemas urgentes.
«Jogou onde foi necessário, nos dois corredores, como lateral e extremo. Já jogou como extremo esquerdo no Sporting e lateral direito por Portugal. Na II Liga jogou a extremo esquerdo contra Portimonense durante 45 minutos e marcou pouco depois de passar para ala direito – é esse o ponto mais forte dele. Não foi aposta de futuro no Sporting, jogou onde havia espaço, onde era preciso. Chega à equipa principal fruto do seu trabalho. Tem muito mais mérito», atira.
Reconhecendo que este jovem precisa de trabalhar a especialização posicional e tática, até porque guarda «elevada margem de progresso», Luís Dias sublinha a capacidade de explosão e a utilização dos dois pés – como rematou contra o Alverca: «É um jogador universal e talhado para o futebol moderno. Não é uma caraterística vulgar. O Salvador já provou que é bom a executar e que não treme quando recebe uma oportunidade».

«Golo ao Alverca? Estava a gritar antes de a bola entrar»
A poucos meses de concluir o Ensino Secundário, Salvador Blopa viveu a estreia pela equipa principal do Sporting em Alvalade, depois de acumular créditos por juniores e “bês”, que lideram a II Liga. Como na infância, foi livre e brilhou. Porventura não terá escutado, mas havia um homem muito feliz na bancada.
«O Salvador ofereceu um bilhete. Acho que já estava a gritar antes de a bola entrar no [primeiro] golo. Foi um momento de muito orgulho. Ele sempre foi realista, teve de trabalhar muito. Foi resiliente e, agora, deu mais um passo. Ainda tem muito para crescer, até na equipa B. Ele sabe disso», conta Jorge Martins, com a voz embargada.

No rescaldo, o antigo coordenador da formação do Fontainhas reencontrou o pupilo: «Estava tranquilo, ainda não lhe tinha caído a ficha. Vai continuar exatamente como o conheci, humilde e respeitador».
E não só Jorge Martins se comoveu na terça-feira. Em Cascais, noite dentro, o telemóvel de Vasco Jardim Noronha vibrou. Era Salvador Blopa, queria agradecer ao presidente do Fontainhas.
«É capa de jornais e motivo de orgulho. Falei com ele e emocionei-me, porque ele está grato ao nosso clube. Ele visita-nos com regularidade, sobretudo no verão, para treinar e manter a forma. O Salvador destacou-se porque era brincalhão, queria a bola só para ele. Começava na própria área e acabava a fazer golo. Era um miúdo muito divertido, de sorriso fácil. Jogava pela equipa dele e ajudava os mais velhos», recorda ao Maisfutebol.
Por tudo isto, Vasco Jardim Noronha adianta que o avançado vai ser homenageado num mural organizado junto aos balneários do centro de treinos, na companhia, entre outros, de Toti Gomes, defesa dos Wolves e internacional português que também passou pelo Fontainhas.
Ao Maisfutebol, o presidente do emblema de Cascais revelou a frase que Salvador Blopa escreveu para acompanhar a fotografia.
«O Fontainhas é mais do que um clube, foi sempre segunda casa, onde me acolheram muito bem. Serei sempre grato.»
Mural no centro de treinos do GDR das Fontainhas de Cascais (cortesia de Vasco Jardim Noronha)
O destino de Salvador Blopa está, sobretudo, na palma da própria mão. Para lá dos números na equipa principal do Sporting, nesta época leva sete jogos, um golo e uma assistência pela equipa B, e três jogos pelos juniores na Youth League.
De olho no grupo às ordens de Rui Borges, o sucesso e a felicidade deste jovem serão equivalentes à energia para sorrir às adversidades e contrariar probabilidades, sem esquecer o ponto de partida e o trajeto edificado a pulso.
