O mundo da tecnologia é feito de ciclos, de inovações e, por vezes, de gigantes que tropeçam em obstáculos que eles próprios criaram ou criados por outros. Foi o que aconteceu à Huawei, que, em 2020, chegou à liderança do mercado global dos smarpthones, mas que se viu “de pernas cortadas” quando deixou de poder, por razões de geopolítica, usar fornecedores e tecnologias norte-americanas, incluindo Google (sistema operativo Android e serviços) e processos de fabrico de chips.

O cenário levou o fabricante chinês a ter de recorrer apenas a tecnologias próprias, resultando numa evolução de produtos de grande dualidade: por um lado, manteve a posição de liderança em tecnologias em que não dependia de terceiros, mas, por outro, passou a apresentar muitas limitações em áreas importantes, onde depende de tecnologias ocidentais.

O Huawei Pura 80 Ultra encarna esta dualidade de forma evidente. É, sem qualquer margem para dúvidas, uma peça de engenharia absolutamente extraordinária, um objecto de desejo que faz virar cabeças e que alberga tecnologia de ponta. Contudo, é também um equipamento que me obriga a começar esta análise com um aviso muito claro: este não é, infelizmente, o smartphone que a maioria das pessoas deve comprar. Ao longo dos próximos parágrafos, vou explicar detalhadamente porquê, mas também celebrar o que este Pura 80 Ultra faz de forma brilhante.

Triunfo fotográfico

Vamos directos ao assunto que domina todas as conversas sobre este aparelho: o sistema de câmaras. Nos últimos anos, temos assistido a uma corrida tecnológica impressionante neste campo, mas o que encontramos aqui é um salto qualitativo que deixa a concorrência a reflectir.

O Pura 80 Ultra não tem apenas um bom conjunto de câmaras; tem, muito provavelmente, o melhor sistema fotográfico alguma vez colocado num smartphone, pelo menos no que toca à captura de imagens fixas. O segredo está no sensor principal. Falamos de um sensor de uma polegada, um tamanho que, até há pouco tempo, estava reservado a câmaras compactas de alta gama.

O que significa isto na prática, para o utilizador comum? Significa que o sensor capta muito mais luz. Em condições de pouca luminosidade, onde a maioria dos telemóveis recorre a processamento de software agressivo para “inventar” luz, o Pura 80 Ultra capta-a naturalmente.




Esta foto foi feita apenas para demonstrar as capacidades técnicas da câmara: já era noite e estava nevoeiro. É impressionante como nestas condições, em que outras câmaras gerariam “borrões”, o detalhe foi mantido. Vê-se a “textura” do nevoeiro, os pormenores dos carros com grande nitidez e as variações da luz
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O resultado são fotografias nocturnas com um detalhe, uma ausência de ruído e uma naturalidade que são, francamente, de cortar a respiração. Mas a “magia” não fica por aqui. Este sensor principal é acompanhado por uma abertura variável. Traduzindo, o telefone consegue ajustar fisicamente a quantidade de luz que entra, tal como a pupila do olho humano ou a objectiva de uma câmara profissional. Isto permite um controlo sobre a profundidade de campo que é inédito num telemóvel. Quer o retrato perfeito com o fundo suavemente desfocado (o chamado “bokeh”)? Fácil. Quer uma paisagem onde tudo, do primeiro ao último plano, está focado? Também faz, e fá-lo com uma mestria óptica, não apenas com truques de software.

A isto junta-se uma lente teleobjectiva igualmente impressionante, capaz de zooms ópticos de grande qualidade, e ainda mais inovadora. Isto porque tem algo que nunca vimos antes num smartphone: duas objectivas (periscópicas) associadas ao mesmo sensor, uma com zoom ótico de 3,7x e outra com zoom óptico de 10x. Isto é possível porque o sensor está instalado sobre um sofisticado sistema que permite movimentá-lo para poder comutar entre as duas lentes.




As duas lentes periscópicas associadas à câmara de zoom são uma inovação que se traduz numa maior polivalência focal
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Finalmente, a ultra-angular também é competente. Em quase todas as situações fotográficas testadas, desde retratos a macros, passando por cenários urbanos complexos, o Pura 80 Ultra entregou resultados que me fizeram questionar a necessidade de andar com uma câmara dedicada. É, neste aspecto, uma maravilha. Onde a máquina falha em ser a melhor, no entanto, é no vídeo. Não me interpretem mal, o vídeo é bom, mas falta-lhe a resolução (não tem 8K), o nível de estabilização, a gestão de cor e a performance em HDR (High Dynamic Range) que encontramos nos líderes habituais deste segmento. É competente, mas não é revolucionário como o é na fotografia.

A barreira intransponível

Se a análise terminasse nas câmaras, estaríamos perante o telefone do ano. Infelizmente, temos de falar do software, e é aqui que o Pura 80 Ultra colide violentamente com a realidade da maioria dos utilizadores ocidentais. Este dispositivo não tem acesso aos serviços Google (GMS). Parece um detalhe técnico, mas é o factor que define toda a experiência de utilização. Após vários dias a usar este aparelho como o meu smartphone pessoal, a frustração instalou-se de forma profunda. Viver sem a Google Play Store significa que uma vasta maioria das aplicações que usamos diariamente não está disponível de forma directa. Sim, existe a AppGallery da marca, que tem crescido, mas faltam pilares essenciais da vida digital moderna.

A ausência do Google Maps foi a primeira grande dificuldade. As alternativas existentes não têm a mesma precisão, informação de tráfego em tempo real ou integração. A falta do Android Auto transformou as minhas viagens de carro num exercício de paciência, voltando aos suportes de telemóvel no vidro.

A sincronização de contactos, calendário e, claro, o acesso a ferramentas de trabalho como o Google Drive ou o Gemini, para mim essenciais, simplesmente não existem. É verdade que existem soluções de recurso, aplicações de terceiros que tentam “emular” os serviços Google, mas na minha experiência, são soluções frágeis, que consomem mais bateria, falham actualizações e quebram a integração fluida que esperamos de um dispositivo de topo. Para o utilizador comum, é pedir que faça um “bypass” técnico complexo para ter uma experiência que, ainda assim, será sempre inferior à normal.

Interface datada e IA tímida

Este problema do ecossistema é agravado por um sistema operativo que, francamente, parece datado. A interface, embora funcional, revela as fundações de uma versão já antiga do Android na qual é baseada. As animações, a gestão de notificações e a estética geral parecem pertencer a uma geração anterior de software. Falta-lhe a fluidez, a coesão e a modernidade que vemos nos sistemas concorrentes. Quando pegamos num topo de gama, esperamos que o software seja tão polido quanto o hardware. Aqui, o contraste é gritante.

Além disso, numa era em que a inteligência artificial generativa se tornou o grande campo de batalha, o Pura 80 Ultra apresenta-se com uma aplicação de IA que é, na melhor das hipóteses, mínima. Comparando com o que a Google oferece nos Pixel ou a Samsung na linha Galaxy, com as edições de fotografia avançadas, traduções em tempo real ou resumos inteligentes, a oferta deste Pura 80 parece pouco evoluída. Limita-se a algumas funções básicas de edição de imagem que a concorrência já tem há algum tempo, falhando em apresentar qualquer ferramenta verdadeiramente inovadora que justifique o “hype” da IA.

Veredicto

Chegamos ao momento da verdade. O Pura 80 Ultra é talvez o smartphone mais frustrante que analisei, porque é simultaneamente um dos melhores e um dos piores. É uma obra-prima de hardware, um vislumbre do que é tecnicamente possível fazer no campo da fotografia móvel. Tem, ainda, um design requintado e uma qualidade de construção irrepreensível.

Então, quem deve comprar este telefone? A resposta é muito restrita. Deve comprá-lo o entusiasta de fotografia que procura a melhor câmara de bolso do mercado e que está disposto a sacrificar toda a conveniência do ecossistema Google para a ter. Talvez um fotógrafo que o use como uma segunda linha, quase como uma câmara compacta com funções de telefone. Ou, eventualmente, utilizadores em geografias onde os serviços Google não sejam dominantes.

Quem não deve comprar? Infelizmente, quase todos os outros. Para a esmagadora maioria dos utilizadores em Portugal, a ausência dos serviços Google não é um inconveniente; é um factor de exclusão. A experiência de utilização diária fica irremediavelmente comprometida. A falta de aplicações essenciais, a interface datada e a fraca implementação de IA fazem com que este Pura 80 Ultra, apesar do brilhantismo óptico, seja um gigante acorrentado. É um triunfo da engenharia de hardware e uma vítima das circunstâncias da geopolítica.

Tipo

Smartphone

Ecrã

6,8 polegadas, 1260×2844 píxeis, 120 Hz, OLED LTPO 

Sistema operativo

EMUI 15 (sem serviços Google)

Processador

Kirin 9020, oito núcleos

Memória e armazenamento

16 GB de RAM e 512 GB de armazenamento

Câmaras

Traseiras: 50 MP (grande angular, abertura variável f/1.6–f/4.0, sensor tipo 1”), 50 MP (zoom óptico 3,7), 12,5 MP (zoom óptico 9,7x), 40 MP (ultra grande angular)

Video: 4K

Selfie: 13 MP

Bateria

Capacidade: 5170 mAh

Carregamento: 100 watts (com fios), 80 watts (sem fios)

Dimensões e peso

163×76,1×8,3 mm, 219 gramas

Conectividade

Wi-Fi 7, Bluetooth 5.2, USB-C, NFC, 4G (sem 5G)

Testes

Não correu

Preço

1499€ (com oferta de smartwatch Huawei Watch GT 5)