ENTREVISTA || Distinguido com o Prémio Dwight D. Eisenhower da Associação Atlântica dos Países Baixos com a sua tese sobre a “Grande Estratégia” dos Estados Unidos e da Rússia, Markus Iven esteve em Lisboa a convite da embaixada da Alemanha para falar sobre a “nova arquitetura de segurança europeia”, em particular face à desvinculação dos EUA e à guerra da Rússia na Ucrânia. À CNN Portugal, o analista do Hague Centre for Strategic Studies fala sobre o real motor dos ataques híbridos russos à UE e o que podemos esperar num futuro próximo e não tão próximo, agora que o grande concorrente direto dos EUA é a China. “Para quem acredita que o próximo governo norte-americano voltará a priorizar a NATO: isso parece muito improvável”, avisa
Começando com esta ordem de Donald Trump para que o Departamento de Defesa retome os testes de armas nucleares, sob o argumento de que os EUA têm de estar “em pé de igualdade” com a Rússia e a China. Como encara este anúncio e como é que ele se relaciona com a sua tese da Grande Estratégia?
Em primeiro lugar, não há confirmação de que a Rússia e a China estejam atualmente a realizar novos testes com armas nucleares. Recentemente, vimos que regimes de controlo de armas como o Novo START e o Tratado INF, que mantiveram a estabilidade global durante décadas, estão a deteriorar-se ainda mais. Isso começou com a não renovação dos acordos de controlo de armas entre os EUA e a Rússia, mas também com o rápido aumento do arsenal nuclear chinês.
Do ponto de vista estratégico, é possível compreender por que razão Trump está agora a tentar pressionar as outras potências nucleares com o anúncio de novos testes atómicos potenciais. Ao mesmo tempo, isso não faz muito sentido na prática, uma vez que o arsenal nuclear dos Estados Unidos está bem testado e a sua força destrutiva não está em causa. Desse ponto de vista, o anúncio pode ser interpretado como um sinal: uma forma de persuadir a China e a Rússia a regressarem às negociações sobre o controlo de armas. Trump já utilizou esta técnica anteriormente nas negociações tarifárias, começando com uma posição maximalista ou provocadora para ganhar vantagem antes das negociações.
Portanto, de certa forma, considera que é, acima de tudo, uma demonstração de força?
É um sinal de determinação. Sinalizar que os Estados Unidos estão dispostos a retomar os testes nucleares mostra que não serão dissuadidos pela Rússia ou pela China. Na prática, não é muito provável que os Estados Unidos realmente levem isso adiante tão cedo, mas o simples ato de sinalizar essa disposição serve como mensagem em si. Ainda é apenas a primeira fase da negociação nuclear: a fase de sinalização. O próximo passo poderia ser uma fase de negociação ou, é claro, um teste nuclear.
No início da semana, no seminário em que participou aqui em Lisboa, defendeu que o governo Trump deve ser encarado “mais como um sintoma do que a razão” que explica a atual ordem geopolítica. Em que sentido?
As placas tectónicas do poder global começaram a mudar novamente. De um sistema bipolar durante a Guerra Fria passámos para um sistema unipolar dominado pelos Estados Unidos. Mas agora a ordem mundial está a mudar mais uma vez, principalmente devido à ascensão da China. É nesse sentido que podemos dizer que a política da administração Trump é apenas um sintoma, não a causa.
Isto significa que os futuros governos dos EUA, sejam eles democratas ou republicanos, provavelmente não mudarão a sua política básica em relação à China ou à Europa. E, estrategicamente, isso faz sentido, porque apenas a China tem a base económica, o arsenal nuclear e as forças convencionais para se tornar uma potência hegemónica na Ásia e, por meio dessa posição, uma ameaça de longo prazo para os Estados Unidos. Portanto, para quem acredita que o próximo governo norte-americano voltará a priorizar a NATO: isso parece muito improvável.
Analista do The Hague Centre for Strategic Studies e oficial na reserva do gabinete do representante militar da Alemanha na NATO, Markus Iven serviu 14 anos nas Forças Armadas alemãs, com missões no Mali e no Níger, tendo sido condecorado com a Cruz de Honra em parta da Bundeswehr. No início da semana, esteve em Lisboa a convite da embaixada alemã para participar num seminário sobre a nova arquitetura europeia de segurança. foto HCSS
Não é o único especialista a defendê-lo, a maioria dos especialistas considera que a China é o único país capaz de alterar a ordem global. Nesse sentido, como avalia o encontro desta semana entre Donald Trump e Xi Jinping?
A reunião desta semana entre Trump e Xi revelou algo importante para os europeus. Quando Trump se encontrou com Xi na Coreia do Sul, muitos na Europa esperavam que ele pressionasse Xi a reduzir as compras chinesas de petróleo russo, que continuam a ser cruciais para financiar a guerra da Rússia. Mas, no final da reunião, Trump reconheceu que eles não tinham realmente discutido a questão do petróleo. Em vez disso, foi mais uma troca transacional focada na redução das tarifas dos EUA sobre a China e na restauração do acesso a terras raras que havia sido restringido por Pequim. Então, o que vemos novamente é que, quando os interesses dos EUA estão em jogo, a segurança europeia está simplesmente ausente da agenda, e isso é algo que nos deve preocupar.
Nesse contexto, isso também está bastante alinhado com a posição do governo chinês de que “Putin não pode perder a guerra na Ucrânia”, como um oficial chinês admitiu há alguns meses. A menos de um mês do prazo estabelecido por Trump para impor sanções às empresas petrolíferas pública e privada da Rússia – e tendo em conta o que o Markus também afirmou aqui em Lisboa, ao dizer que é uma ilusão acreditar que a Rússia está à beira do colapso económico -, acha que estas sanções americanas podem mudar isso? E acha que estas sanções vão realmente avançar?
O que já vemos agora é que cerca de um terço do orçamento federal da Rússia está a ser gasto direta ou indiretamente na guerra na Ucrânia. Isso é muito significativo. Muitos esperavam que a economia russa entrasse em colapso rapidamente, especialmente no início da guerra, mas isso não aconteceu. O PIB da Rússia até cresceu ligeiramente este ano, impulsionado pela produção bélica e pelos gastos públicos muito elevados.
Ao mesmo tempo, as novas sanções dos EUA contra as exportações de petróleo russo podem ser as medidas mais eficazes que vimos em muito tempo. Elas congelam todos os ativos da Rosneft e da Lukoil sob jurisdição dos EUA, proíbem quaisquer transações por parte de cidadãos americanos e ameaçam bancos ou empresas estrangeiras com sanções secundárias se continuarem a fazer negócios com elas.
Visar a Rosneft e a Lukoil é um dos melhores pontos de pressão que o Ocidente ainda tem contra a Rússia, porque as exportações de energia representam agora mais de 40% das receitas do Estado russo. Juntas, essas duas empresas produzem cerca de 5% da produção global de petróleo, pelo que atingi-las com sanções dos EUA é significativo. Isso atinge diretamente o fluxo de dinheiro que financia a guerra.
A Rússia tem utilizado a sua chamada “frota fantasma” de navios comerciais envelhecidos para escapar às sanções sobre as exportações de petróleo impostas no seguimento da invasão em larga escala da Ucrânia em 2022. Mas, para Markus Iven, é melhor visar com sanções as petrolíferas russas, como Trump promete fazer, do que esta frota-fantasma. foto Getty Images
Alguns analistas consideram que estas sanções poderiam, na verdade, ter um impacto maior na Europa, dado que ainda há muitos países europeus a comprar petróleo russo, o que basicamente significa que temos financiado a máquina de guerra da Rússia contra nós mesmos, em nosso próprio prejuízo. Concorda? Como é que a Europa seria afetada por estas sanções à Rússia?
A Europa conseguiu efetivamente dissociar-se da energia russa em grande medida após a guerra de 2022, quando ninguém pensava que isso seria possível. Os russos até usaram isso como propaganda para dizer que os europeus iriam congelar no inverno, e não vimos nada disso acontecer. Por isso, acho muito improvável que as últimas sanções ao petróleo russo nos prejudiquem substancialmente aqui na Europa.
Antes da guerra, cerca de metade do gás e aproximadamente um quarto do petróleo da Europa vinham da Rússia. Hoje, as importações de petróleo russo caíram mais de 90%. Os maiores consumidores de petróleo russo agora são a China e a Índia, que juntas compram cerca de 80% das exportações de petróleo bruto da Rússia. Portanto, apenas alguns mercados na Europa, como a Hungria e a Eslováquia, ainda dependem desses fornecimentos e podem agora ficar sob pressão.
Falando das ameaças que a Europa realmente enfrenta no curto e médio prazo: parece fazer parte do grupo que pessoas que considera que não estamos perante uma questão de “se” mas sim de “quando” é que a Europa vai enfrentar ataques diretos da Rússia, isto numa altura em que já estamos a braços com ataques híbridos. Com base na sua experiência, o que acha que irá acontecer nos próximos cinco anos? E nesse contexto, acha que estamos na rota certa para estarmos mais preparados para lidar com agressões diretas da Rússia do que estávamos em 2022?
Sim, vimos que a União Europeia, através do novo programa SAFE – que disponibiliza até cerca de 150 mil milhões de euros em empréstimos a juros baixos para ajudar os Estados-Membros a adquirir as capacidades militares necessárias para atingir os objetivos individuais estabelecidos pela NATO -, está a começar a agir como um interveniente mais sério em matéria de segurança.
Ao mesmo tempo, temos assistido a um claro aumento dos ataques híbridos contra nós. Os ataques híbridos são geralmente a estratégia do lado mais fraco; essa é a lógica estratégica normal. A lógica dos russos é que os Estados confrontados com ataques contra as suas infraestruturas críticas ou o seu espaço aéreo darão naturalmente prioridade à sua defesa nacional. Portanto, a verdadeira razão pela qual a Rússia está cada vez mais envolvida nestes ataques híbridos é porque quer desviar a atenção e os recursos europeus da guerra na Ucrânia. E eles têm uma vantagem estrutural aqui.
“No momento em que os russos atacarem as nações europeias com drones muito baratos ou ataques subaquáticos muito baratos, com cortes de cabos subaquáticos, teremos de aumentar a nossa resiliência, e a resiliência nunca pode ser perfeita. E no momento em que isso acontece, com os recursos limitados disponíveis, os europeus gastam menos no apoio à Ucrânia, que já está esgotada depois de os EUA terem interrompido o seu apoio militar direto. É esse essencialmente o objetivo final da Rússia”. foto Yevhen Titov/AP
De que forma?
No momento em que atacam nações europeias com drones baratos que custam apenas 20 mil dólares, ou realizam sabotagens subaquáticas de baixo custo, como cortes de cabos, os europeus precisam de aumentar a sua resiliência. Mas a resiliência nunca pode ser perfeita. Não é possível defendermo-nos contra todas as potenciais ameaças.
Portanto, o mais importante para os europeus agora é compreender a lógica russa. Na verdade, uma das melhores medidas dissuasoras seria declarar que, por cada ataque híbrido russo em solo europeu, aumentaríamos automaticamente a nossa ajuda à Ucrânia. No momento em que fizéssemos isso, tornaríamos estrategicamente irracional para eles continuarem com esses ataques.
Assumindo que isso não acontece, e tendo em conta relatórios dos serviços de informação de alguns Estados-Membros da UE que afirmam que a Rússia poderá lançar ataques diretos contra o território europeu nos próximos cinco anos, particularmente contra os países bálticos e do flanco leste, acha que a Rússia estará mais inclinada a manter essa estratégia de ataques híbridos para nos esgotar e desviar a nossa atenção da Ucrânia? Ou diria que existe uma possibilidade real de ataques diretos da Rússia nos próximos anos?
Devemos ser cautelosos sempre que considerarmos uma ação russa irracional ou improvável. Tanto políticos quanto analistas afirmaram o mesmo antes de 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia, e novamente antes de 2022, quando poucos acreditavam que lançaria uma invasão em grande escala da Ucrânia, mas foi o que aconteceu.
Agora, mais uma vez, as pessoas dizem: ‘não é completamente irrealista que os russos ataquem um país da NATO? Porque é que fariam isso?’ A melhor resposta é que a Rússia fará tudo o que lhe permitirmos que faça. Vai sempre identificar vulnerabilidades e explorá-las.
É importante notar que, nos Estados Bálticos, por exemplo, temos uma população total de apenas cerca de seis milhões, em comparação com mais de 140 milhões na Rússia. E a Rússia nunca parou o seu recrutamento militar obrigatório, pelo que seria capaz de mobilizar, se realmente quisesse, uma enorme força, atualmente com cerca de 1,5 milhões de soldados ativos e até dois milhões de reservistas. Embora a guerra esteja a tornar-se mais automatizada, num futuro previsível ainda precisaremos de pessoas para comandar drones e tripular tanques, navios e aeronaves. Portanto, a geografia e a demografia resultam numa vulnerabilidade estrutural no flanco oriental da Europa.
Perante este desequilíbrio, é muito importante que os países da NATO se envolvam mais diretamente a nível militar na frente oriental, porque um soldado que se encontra algures na Alemanha, em França ou em Portugal teria muita dificuldade em chegar a tempo ao local onde é realmente necessário. Isto é especialmente relevante para os países da Europa Ocidental e Meridional. Precisamos de investir na defesa avançada para deixar claro, militar e psicologicamente, a Moscovo que atacar um aliado seria uma tarefa impossível: um conceito conhecido como dissuasão por negação. E, mesmo assim, continuariam com os seus ataques híbridos. O único momento em que os ataques híbridos cessariam seria quando a guerra na Ucrânia chegasse ao fim.
A polícia e o exército verificam os danos causados a uma habitação pelos destroços de um drone russo abatido na aldeia de Wyryki-Wola, no leste da Polónia, a 10 de setembro de 2025. foto Wojtek Raswanski/AFP/Getty Images
A UE tem estado em intensas discussões nos últimos tempos sobre este “muro de drones” para travar as ameaças russas. Isto alinha-se com o que defende? Como olha para esta estratégia?
O conceito de uma barreira contra drones tem uma fraqueza: é que, uma vez construída num local, os russos encontrarão outra fraqueza na defesa europeia noutro local. Por isso, construir uma barreira estática contra drones desde a Noruega até ao Mar Negro é, no mínimo, extremamente dispendioso e provavelmente uma tarefa impossível.
Assim, em vez de pensar em como podemos impedir perfeitamente qualquer intrusão no espaço aéreo da NATO, é melhor perguntar como podemos alterar o cálculo decisório da Rússia. Para cada intrusão no espaço aéreo da NATO, poderíamos responder impondo custos que superem os ganhos para a Rússia. O custo mais eficaz que a Europa poderia impor é intensificar o seu apoio à Ucrânia, porque é aí que a Rússia está a perder recursos e mão de obra. A Rússia provavelmente já tem mais de um milhão de soldados mortos ou feridos. Isso também deixa claro que a Ucrânia não está apenas a lutar pela sua própria liberdade e dignidade, mas também é a primeira linha de defesa europeia.
Num artigo seu, intitulado “Porque é que os EUA, a Rússia e outras grandes potências entram em guerra”, cita em determinado momento o realismo ofensivo de Mearsheimer, sob o qual “nenhum Estado pode ter certeza do que os outros farão no futuro, mesmo que atualmente ajam de forma pacífica”. Isto está diretamente relacionado com o que temos vindo a discutir e questiono-me: de que forma é que o que está acontecer na Europa se relaciona também com a sua tese da Grande Estratégia?
Então, o que fizemos nesta pesquisa foi analisar 38 guerras travadas pelos Estados Unidos e pela Rússia desde 1945, não apenas como elas foram travadas, mas porquê. E o que realmente se destaca é que o tipo de ordem mundial muda a lógica da guerra. Durante a Guerra Fria, o objetivo era manter regimes amigos vivos. Nos anos unipolares que se seguiram, os Estados Unidos travaram guerras de coerção e mudança de regime. E agora, com a ascensão da China, estamos provavelmente a regressar a um mundo bipolar, onde a sobrevivência dos regimes e as esferas de influência voltam a ser os principais objetivos.
A razão por trás disso é, na verdade, bastante simples. Os Estados nunca têm certeza absoluta sobre as intenções uns dos outros. Um país que hoje é amigo pode parecer muito diferente amanhã, então todos acumulam poder apenas por segurança, e isso faz com que os outros se sintam menos seguros. Na literatura académica, isto seria chamado de dilema de segurança. É por isso que, a longo prazo, a segurança europeia dependerá novamente do controlo de armas e da diplomacia de dissuasão, também com a Rússia, para encontrar algum tipo de coexistência estável.
A conclusão positiva é que, se compreendermos esses padrões, poderemos gerir a competição entre grandes potências, mesmo em lugares como o Indopacífico, sem que ela se transforme numa guerra direta.