Cerca de uma hora e meia depois, Kim Cattrall voltaria a este tema no painel “Sem morada fixa: uma vida dedicada a contar histórias globais”, ao lado de Daniela Ruah e perante meia casa no Lisbon Stage — a este respeito, o Observador questionou a organização do Tribeca se a afluência tinha diminuído face à chuva que se fez sentir em Lisboa; a resposta foi de que aumentou.
Questionada por Carlos Moedas, a servir de moderador, quanto a que tipo de histórias faz falta contar, a atriz foi lacónica: “A vida de qualquer mulher pode ser transformada num filme fantástico. E essas são histórias das quais não temos o suficiente”. Para realçar esse ponto, inclusive, colocou na sua mira um dos mais celebrados cineastas da história.
“Sou uma grande fã de Martin Scorsese, mas, caramba, gostaria que ele escrevesse mais papéis para mulheres! Adoro-o, porque ele é brilhante. Mas o que é que ele poderia fazer? Como seria a sua Cleópatra num filme? Às vezes não temos essas oportunidades de trabalhar com um realizador como ele porque somos mulheres. É por isso que é tão importante criarmos o nosso próprio mundo e fazê-lo juntas. Não somos fortes separadamente, mas juntas. E podemos fazer a diferença e contar essas histórias de que todas precisamos. Elas são como um alimento quando são boas. Para mim, são como comida, saio do cinema e sinto-me tão saciada. Mas é uma longa jornada para chegar lá”, apontou.
Será possível afirmar que essa “longa jornada” já foi iniciada, mesmo que de forma titubeante? Recordando o que tinha afirmado quanto à seca de papéis que atrizes passam a dispor a partir dos 50 anos, o Observador perguntou a Kim Cattrall o que pensava do reconhecimento crítico que várias atrizes mais velhas têm vindo granjear nos últimos anos, de Demi Moore a Jamie Lee Curtis, passando por Pamela Anderson ou Michelle Yeoh. “Veio com atraso, já não era sem tempo!”, respondeu.
“Hollywood foi construída com base em mulheres incríveis como Bette Davis e Marlene Dietrich, e o que elas realmente representavam era poder. Entretanto perdemos isso e tentámos recuperá-lo nos anos 60 e 70. E agora estamos a lutar por isso novamente. Então, assim continua. Mas há uma coisa sobre a história que é reconfortante: já passámos por isto antes, talvez não exatamente nas mesmas circunstâncias, e no final vamos sair por cima novamente. Pelo menos é o que espero”, completou.
A esse respeito, Cattrall foi também questionada quanto ao que podia fazer pelas mulheres na indústria num momento de ascensão do antifeminismo a nível global. “Espero que, com o meu nome, a minha experiência e as minhas conexões, possa realizar projetos que abordem as mulheres em situações difíceis em todo o mundo. Eu protestei pelo caso Roe versus Wade, isso fez parte do meu despertar como jovem mulher na cidade de Nova Iorque no início dos anos 70 e agora estamos a fazê-lo novamente. Então, sim, precisamos de histórias sobre mulheres, para lhes dar a tranquilidade de saber que não estão sozinhas. Acho que o lugar mais difícil para uma mulher estar é sentir-se sozinha no que está a passar”, advertiu.
No que toca ao futuro, Cattrall considera a ascensão da inteligência artificial algo “aterrador” para os atores. “Ainda nem começámos a entender o que está por vir. Infelizmente, parece que isso vai deixar muitos de nós sem emprego”, lamenta. A atriz, no entanto, tem para já assegurados dois papéis para o futuro próximo, como adiantou numa entrevista à revista People. Em Lisboa, no entanto, nada revelou sobre os mesmos.
Não foi apenas do presente e do futuro que Cattrall quis falar no Tribeca. Dada a longevidade da sua carreira, havia muita curiosidade quanto ao que podia partilhar em relação à sua experiência e ao seu percurso de vida. No painel, por exemplo, contou como foi dar os primeiros passos como atriz no Canadá.
“Não tinha nenhuma ligação com o mundo do espetáculo na minha família, por isso, nos anos 70, ao crescer na ilha de Vancouver, que tinha uma população muito pequena, dizer que queria ser atriz era como dizer que queria ser astronauta. Era uma coisa extraordinária de querer ou fazer, mas tive muita sorte porque tive muito apoio”, revelou. Também por isso, e porque a conversa estava centrada na ideia de como uma identidade migrante influência o trabalho dos atores e a forma como se conta histórias, ressalvou o choque cultural que foi mudar-se para Nova Iorque para entrar na famosa American Academy of Dramatic Arts.
“Uma pessoa sente-se separada do que conhece. Mas, para mim, achei fascinante. Eu não sabia quem era o Johnny Carson [apresentador televisivo] quando me mudei para Nova Iorque. E adorava fazer palavras cruzadas, mas nunca conseguia acertar nenhuma das respostas fora do Canadá, porque era essa a sociedade em que eu passava mais tempo. São essas pequenas pistas que se tem de aprender ou reaprender, mas achei fascinante que éramos todos tão semelhantes, mas tão diferentes”, lembrou.