A pianista Maria João Pires disse este sábado que terminou a carreira como intérprete, depois de em junho ter sofrido um problema de saúde que a afastou dos palcos, e está agora num “processo de mudança radical”.

No discurso de agradecimento pelo prémio Helena Vaz da Silva, entregue este sábado numa cerimónia na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, a artista de 81 anos afirmou que adoeceu porque tentou “ultrapassar-se e ir até limites proibidos”.

Agora encontro-me num processo de mudança radical, numa procura de verdade, verdades, num caminho de aceitação, talvez de compreensão daquilo que nunca aceitei antes. É bom pensar que o futuro é incerto, desconhecido, talvez surpreendente. Essa incerteza coloca-nos a todos num estado de insegurança, só que muitas vezes criativa. A segurança afinal não abre assim tantas portas, talvez até nos feche uma maior compreensão do universo e do infinito”, afirmou a mais conhecida das pianistas portuguesas.

No discurso, expressou gratidão — sentimento que considera inato e que deve ser “guardado e respeitado ao longo de toda a vida” — não só a quem a apoiou e acompanhou ao longo da vida e carreira, mas mais além: “Gratidão por tudo o que nos é dado, por tudo o que ouvimos e vemos, por tudo o que nos encanta, por tudo o que gera felicidade em nós, nos permite sonhar, mover ou cantar ou sorrir”.

Ao lembrar que começou a tocar piano com 3 anos, idade com a qual se apaixonou pela música, Maria João Pires também declarou nunca se ter sentido “verdadeiramente adaptada nem incluída apesar de todos os grandes esforços para [se] sentir aceite, para [se] aceitar, para [se] reconhecer como parte de uma sociedade, de um grupo de amigos e colegas”.

Pianista Maria João Pires sofreu “AVC ligeiro” e cancela concertos

“Fiz a aprendizagem da vida prática, do trabalho, do quotidiano, da casa, dos filhos, das alegrias, dos desgostos, dos sofrimentos e muito particularmente das deceções. Fiquei entre dois mundos, o mundo sonoro, sempre muito rico em flexibilidade, em movimento, em conexão com todos os fenómenos da arte e da imaginação. E o outro, aquele a que chamamos mundo real, embora ambos me pareçam na verdade muito reais”, afirmou a artista.

Maria João Pires realçou ter-se “assumido” como “pianista durante muitos anos”, uma escolha que fez parte da sua vontade de “inclusão, do desejo profundo de não ser rejeitada e, ao mesmo tempo, de nunca rejeitar os outros”.

“Trabalhei muito, planeei muito pouco, interessei-me profundamente por ciência, por literatura, por filosofia, também como meio de compreender e pertencer”, disse a pianista, para quem a “verdadeira arte é a atividade de não-agressão”.

No seu discurso a pianista Maria João Pires sublinhou que os direitos humanos são para todos, algo que nunca deveria ser posto em causa, numa altura em que se questiona se o ser humano é capaz de evoluir, face às tragédias do mundo.

“A competição leva-nos muitas vezes a esquecer o essencial, a comunidade, o grupo e a nossa profunda natureza. Faz-nos esquecer que os direitos humanos são para todos e que isso não deveria nunca ser motivo de dúvida ou hesitação. Ganhar, no sentido em que normalmente o entendemos, não é uma solução para a arte de viver. Ganhar significa querer possuir, desejar que alguém perca a nosso favor”, declarou.

A pianista acrescentou que “a capacidade ilimitada que o ser humano desenvolveu ao longo da história para matar, destruir, aniquilar, é realmente assustadora e inexplicável”, e num século tido como o da “esperança da paz, o século da ciência, do avanço extraordinário da tecnologia, da medicina e do aparecimento da Inteligência Artificial”, o “impensável está a acontecer”.

“Assistimos ao mesmo tempo a massacres hediondos, à destruição de povos, de culturas, e, sem piedade, ao massacre do planeta. Parece que de repente temos de nos interrogar, afinal o ser humano será não inteligente ou simplesmente incapaz de evoluir com a experiência adquirida? É de certo modo explorar, tirar, não se importar, ficar indiferente ao Outro, recusar a realidade do grupo e a pertença comum. E perder é ficar de fora“, afirmou, perante uma audiência que incluía o antigo ministro e administrador executivo da Gulbenkian Guilherme d’Oliveira Martins e a ministra da Cultura, Juventude e Desporto, Margarida Balseiro Lopes.

Maria João Pires realçou que “a ação artística e criativa pressupõe e implica a ausência de sentimentos de conquista, de posse e de sedução”, sendo “a verdadeira arte a atividade de não-agressão”.

Em junho, a pianista anunciou um afastamento dos palcos “por algum tempo” devido a um “problema de saúde cerebrovascular”. “Estimados amigos, lamento informar-vos que terei de me afastar dos palcos por algum tempo. Surgiu-me um problema de saúde cerebrovascular, que encaro como um sinal, talvez um aviso”, escreveu Maria João Pires, nas redes sociais.

“Vou dedicar este período a reencontrar o equilíbrio entre o corpo e o espírito, e a encontrar alegria em me retirar, ler, meditar e aprender com as lições que a vida me quer ensinar”, prosseguiu a pianista, agradecendo a todos “a paciência, o apoio e as palavras de conforto”.

Após sofrer AVC ligeiro, Maria João Pires anuncia pausa temporária na carreira

A pianista Maria João Pires recebeu hoje, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva para a Divulgação do Património Cultural. “Este reconhecimento europeu presta homenagem à excecional contribuição de uma das maiores pianistas do nosso tempo para a promoção do património cultural e dos valores europeus”, justificou o Centro Nacional de Cultura (CNC), em setembro, aquando do anúncio.

O Prémio Europeu Helena Vaz da Silva foi instituído em 2013 pelo CNC, com a organização Europa Nostra e o Clube Português de Imprensa, com apoio dos ministérios da Cultura, Juventude e Desporto, e dos Negócios Estrangeiros, da Fundação Calouste Gulbenkian e do Turismo de Portugal.

Além de Maria Calado, o júri foi composto por Francisco Pinto Balsemão, fundador do grupo Impresa, Piet Jaspaert, vice-presidente da Europa Nostra, João David Nunes, pelo Clube Português de Imprensa, Guilherme d’Oliveira Martins, administrador da Fundação Gulbenkian, Irina Subotic, presidente da Europa Nostra Sérvia, e Marianne Ytterdal, do Conselho da Europa Nostra.