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Notícias recentes sobre o Sudário de Turim, com base num estudo que analisa um excerto atribuído a Oresme, apresentaram uma interpretação académica como se se tratasse da descoberta de um manuscrito perdido. Mas a história não se escreve, nunca se poderá escrever, com ecos — mas sim com arquivos.
Embora a designação científica e internacional seja Síndone de Turim, opta-se neste texto pelo uso da expressão Santo Sudário, por ser a forma mais enraizada e compreensível no contexto português.
Esta escolha tem por objetivo facilitar a leitura e preservar a continuidade terminológica sem prejuízo do rigor histórico.
Trata-se assim do lençol de linho de grandes dimensões onde se observa a impressão frontal e dorsal de um corpo humano com marcas de flagelação e crucifixão, conservado em Turim desde 1578.
1. A polémica recente em torno de Nicolau de Oresme
Em finais de agosto de 2025, diversos meios de comunicação europeus anunciaram que teria sido encontrado um texto medieval atribuído a Nicolau de Oresme (Nicole Oresme), bispo de Lisieux e intelectual francês do séc. XIV.
A notícia teve por base um estudo académico publicado nesse ano no Journal of Medieval History. Este estudo analisa um excerto atribuído a Oresme, no qual se critica a proliferação de relíquias duvidosas e se menciona genericamente uma igreja da região de Champagne, no nordeste de França, onde se “dizia estar o Sudário de Nosso Senhor Jesus Cristo”.
No plano interpretativo, o estudo sugere que o excerto poderia referir-se ao pano venerado em Lirey, o que teria antecipado, em cerca de trinta anos, a controvérsia de Pierre d´Arcis. No entanto, essa hipótese não é demonstrada de forma conclusiva no próprio artigo e deve ser entendida como leitura académica, não como descoberta documental.
Importa sublinhar que, até ao momento, o excerto foi divulgado no Journal of Medieval History mas ainda não foi dada a referência de arquivo, o que impede a sua verificação independente.
A divulgação do estudo teve ampla repercussão mediática
O jornal La Stampa, noticiou o caso em 28 de agosto de 2025, com o título Sindone, lo scritto più antico: serviva a truffare i fedeli.
Publicações internacionais como The Independent (Newly uncovered medieval document adds evidence that the Shroud of Turin is fake), CNN Science (Researchers find oldest written claim that the Shroud of Turin was faked) e Popular Mechanics (Historian found a 600-year-old document declaring the Shroud of Turin a fraud) retomaram a história com o mesmo enquadramento sensacionalista, apresentando a interpretação académica como se se tratasse da descoberta de um manuscrito perdido.
2. Enquadramento histórico
A existência histórica do Santo Sudário em Lirey está documentada a partir de cerca de 1355, quando o cavaleiro Geoffroi de Charny mandou construir uma colegiata onde o pano foi exposto publicamente.
Em 1389, o bispo Pierre d´Arcis, da diocese de Troyes, redigiu um Memorandum dirigido ao Papa Clemente VII, no qual afirmava que o pano exposto em Lirey era uma pintura executada subtili modo (“de modo subtil”). (cf. Chevalier, Le Saint Suaire de Lirey–Chambéry–Turin et les textes historiques, 1900; Rinaldi, A Response to Pierre d’Arcis’ Memorandum, 2002.)
Contudo, nem Pierre d’Arcis nem o seu antecessor, Henri de Poitiers, conseguiram provar qualquer falsificação. Não é conhecido qualquer relatório técnico ou investigação episcopal realizada sobre o pano, e nos arquivos da diocese de Troyes não existe documentação que demonstre que o tecido tenha sido examinado.
A investigação moderna mostra que o Memorandum surgiu num contexto de disputa jurisdicional e económica entre o bispo de Troyes e os cónegos da colegiada de Lirey, quanto ao direito de expor a relíquia e receber as ofertas dos fiéis. Nos estudos especializados, este enquadramento é amplamente reconhecido.
Em 1390 (6 de janeiro de 1390 e 1 de junho de 1390), o Papa Clemente VII não declarou o Santo Sudário uma falsificação, permitindo a sua exibição sob condições por ele decretadas. Posição documentada em The Lirey Controversy.
É absolutamente imperativo esclarecer o ponto relativo a Nicolau Oresme, frequentemente citado nas notícias de 2025, como se tivesse condenado o Santo Sudário em pleno séc. XIV:
- Até ao presente, nenhum texto autêntico de Oresme conhecido faz menção direta ao Santo Sudário, à igreja de Lirey ou a qualquer relíquia têxtil. As obras reconhecidas do bispo de Lisieux incidem sobre astronomia, filosofia natural, economia e teologia
- O artigo publicado em 2025 Journal of Medieval History interpreta uma passagem genérica atribuída a Oresme, na qual se criticam clérigos por enganarem os fiéis, mencionando “uma igreja da região de Champagne, onde se dizia estar o Sudário de Nosso Senhor Jesus Cristo”.
O texto, porém, não identifica Lirey nem descreve o pano.
Assim, a leitura proposta é uma hipótese académica, não uma prova documental de que Oresme tenha conhecido ou referido o Santo Sudário.
3. Registos anteriores à exposição em Lirey
Para além das referências medievais ocidentais, existem indícios iconográficos e históricos que sugerem que um pano com características semelhantes ao Santo Sudário era conhecido antes do séc. XIV:
- O manuscrito húngaro Códice Pray, datado de finais do séc. XII (1192-1195 d.C), é apontado por alguns investigadores como indício iconográfico, pois conserva uma ilustração da preparação do corpo de Cristo, que mostra um pano com padrão de tecido em espinha de peixe (herringbone weave) e marcas em forma de “L”. Esta interpretação permanece debatida na literatura especializada.
- Na tradição bizantina, alguns autores sugerem paralelos entre as moedas de Justiniano II, datadas do final do séc. VII, e certos traços faciais observados no Santo Sudário.
- As fontes orientais descrevem predominantemente o Mandylion de Edessa, venerado no Oriente como a imagem do rosto de Cristo não feita por mãos humanas. Alguns historiadores, como Ian Wilson, correlacionam o Mandylion com o Santo Sudário, considerando que este estaria dobrado em modo tetradiplon (quatro dobras sucessivas que formam oito camadas, permitindo a exposição apenas do rosto).
- Também o cavaleiro Robert de Clari, entre 1203 e 1204, menciona em Constantinopla, um pano exibido às sextas-feiras “no qual se via a figura do Senhor”.
Estes testemunhos sugerem que a existência de um tecido associado à figura de Cristo é anterior ao contexto de Oresme e à exposição em Lirey.
4. Método histórico / investigação científica e prudência documental
Seria absolutamente inédito que uma única notícia, baseada numa leitura de um texto medieval, pudesse invalidar décadas de investigação científica internacional.
A avaliação de um objeto histórico como o Santo Sudário requer a convergência entre crítica documental e análise científica empírica. Nenhuma hipótese isolada, seja textual, iconográfica ou laboratorial, pode, por si só, definir a origem do tecido sem um conjunto de provas coerente e verificável.
No Memorandum enviado ao papa Clemente VII, o bispo d’Arcis afirma que o Santo Sudário era uma pintura, executada “subtili modo”, expressão que sugere não se tratar de uma obra pictórica comum.
Acrescenta que o seu predecessor, Henri de Poitiers, teria concluído que se tratava de uma falsificação, embora nada mais refira sobre o assunto.
Desconhece-se se chegou sequer a ver a peça, e nos arquivos da diocese de Troyes não existe qualquer registo que indique ter sido realizada alguma investigação sobre o caso.
Os dados físicos e químicos do Santo Sudário não sustentam a hipótese de uma pintura medieval.
Em termos histórico-científicos, a afirmação feita por um bispo ou pelos seus peritos, segundo os recursos de investigação disponíveis na época, de que a imagem do Santo Sudário seria uma pintura, não tem qualquer valor determinante se o tecido por eles examinado for o mesmo que os cientistas dos séc. XX e XXI analisaram e sobre o qual concluíram, com base em métodos laboratoriais, que não há vestígios de pigmentos, tintas ou técnicas pictóricas.
A investigação científica conduzida pelo STURP (Shroud of Turin Research Project) entre 1978 e 1981 concluiu que não existem pigmentos, corantes ou substâncias aplicadas manualmente que expliquem a imagem, e que o mecanismo exato de formação não foi reproduzido por nenhum processo físico ou químico conhecido, como se descreve em A Chemical Investigation of the Shroud of Turin.
A imagem tem características tridimensionais, encontrando-se apenas na superfície das fibras. Não há traços de direccionalidade de pincel ou de aplicação manual.
Apresenta um efeito de negativo fotográfico (inversão de tons) identificado desde 1898, mas sem inversão de lateralidade (característica típica de uma fotografia, o que confirma que se trata de um fenómeno análogo mas não fotográfico).
Salienta-se que a datação por radiocarbono (AMS, 1988), publicada na revista Nature em 1989, situou o linho no intervalo 1260 – 1390 d.C., resultado que tem sido debatido quanto a amostragem, contaminação e procedimentos inadequados.
É particularmente relevante, entre os contributos recentes de investigação histórica-artística, citar a tese La Sábana Santa y sus implicaciones histórico-artísticas (Universitat de València, 2017), de Jorge Manuel Rodríguez Almenar, atual Presidente do Centro Espanhol de Sindonologia.
5. Conclusão
A controvérsia que invocou o nome de Nicolau de Oresme não acrescenta um novo documento à história do Santo Sudário. É simplesmente mais um (entre muitos) exemplo de como o nosso tempo lida com o passado. Uma rapidez gigantesca na formulação de certezas e uma intermitência constante na exigência de provas.
A História não se pode construir com frases repetidas nem com títulos insistentes. Deverá construir-se com manuscritos identificáveis, com fontes e leitura crítica.
A publicação de uma interpretação académica em 2025 é um exercício legítimo. Mas essa legitimidade não pode transformar a leitura em “descoberta”.
Só existe uma descoberta, quando esta é acompanhada de verificação material, da sua transcrição crítica, localização em arquivo e sujeita um estudo exaustivo.
E enquanto o manuscrito atribuído a Oresme não for plenamente identificado, transcrito e estudado, a relação entre o bispo de Lisieux e o Santo Sudário deve ser considerada uma hipótese sem valor probatório.
Por isso, eco não é prova, nem repetição é evidência. Oresme pode ter sido invocado e citado, mas a história não se escreve, nem nunca se poderá escrever com ecos, mas sim com arquivos.
Com ecos, permaneceremos no território do rumor. E nesse território, nenhuma conclusão merece o nome de História.
António Ribeiro Ferraz, ZAP //
Investigador especializado em Estudos Sindonológicos, Delegado do Centro Espanhol de Sindonologia em Portugal, autor convidado no ZAP
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