Dia de bola, dia de finados. No Olímpico de Roma, a Lazio pôe-se em vantagem com um golo de Giordano, e consente o empate a dez minutos do fim da partida, com um autogolo de Brigani. Pier Paolo falha a partida do Bolonha na quarta jornada. Por essa hora, é já cadáver, brutalmente cilindrado, na madrugada de domingo, 2 de novembro de 1975. Depois de ter sido assassinado na avenida costeira de Ostia, nos arredores de Roma, o seu corpo é despejado numa zona de lixo e barracas, que os miúdos haviam transformado em campo da bola, num espécie de remate tão trágico quanto coerente.
Pasolini não foi o primeiro, não seria o último, a promover a subida de escalão do desporto rei, da humildade das ruas aos corredores do intelecto, arbitrando preconceitos. Para ele, marxista convicto, lavrador do sagrado e do profano, a política e o futebol terão entrado em campo no mesmo instante. Nascido em 1922, o escritor, poeta, cineasta, diretor, ensaísta italiano vem do tempo em que o calcio começa a medir forças contra a propaganda fascista, rumando à explosão futebolística, entre fusões, fundação dos primeiros estatutos e alinhamento nas principais divisões dos campeonatos nacionais. De berço bolonhês, quiseram os astros da bola que testemunhasse os anos mais fulgurantes do clube local, que em 20 anos arrancou cinco scudetti. A devoção rossoblù era visível no espólio pessoal do miúdo Pier Paolo, que deu os primeiros toques em Prati di Caprara: um poster com as cores azul e encarnada na parede do quarto. Devoto de nomes como Amedeo Biavati, ganhou a alcunha de Stukas pelo estilo de torpedo.
Quando em 1970 a Itália perdeu a taça do Mundo para o Brasil, discorreu sobre a “A Linguagem do Futebol” distribuiu vocações por futebolistas, e sorteou versos consoante o estilo artístico. Gigi Riva garantia o posto de poeta realista, Mario Corso era entronizado poeta maldito e Gianni Rivera consagrava-se como prosador poético. De um lado o futebol de prosa, um guião de técnica, disciplina e eficácia. Do outro, a estrofe que interessava a Pasolini, forjada no improviso e na beleza do instinto.
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A jogar com amigos nos arredores de Roma, em 1971
O cineasta não foi mero praticante da teoria e do texto. Por diversas vezes calçou as botas, esticou as meias, inspecionou as alas. Também correu por pelados de fato e gravata, como quem acrescenta gravidade ao hobbie com a formalidade da eucaristia dominical, alinhando com garotos na periferia de Centocelle. Lá vai ele na perseguição à bola. “Pasolini vive com prazer a contradição do intelectual que adora com fervor um desporto por muitos considerado ‘o ópio do povo’, escreveu em “O futebol segundo Pasolini” o autor Valerio Curcio (2018). Qualquer uma das imagens dá gosto de goleada.
Em campo ou no banco, desalojou a modalidade do canto dos incultos, selvagens e pobres de espírito. Chamou-lhe o terceiro prazer da vida, rematando um pódio liderado pela literatura e pelo sexo. E naquele 16 de março de há 50 anos ano terá disputado a última, ou pelo menos das mais simbólicas das partidas.
Rezam as crónicas que fazia frio. E Bernardo Bertolucci fazia 34 anos. No norte de Itália, naquelas semanas, escassos quilómetros separavam as equipas de produção de dois titulares obrigatórios do cinema italiano: “1900” (ou Novecento, no original), e “Salò, ou os 120 dias de Sodoma” O desaguisado entre cineastas, entre mestre e ex pupilo, vinha de trás. O até então protegido Bertolucci não teria gostado das críticas de Pasolini a “O Último Tango em Paris” (1972) – e o ajuste de contas, ou caminho para a trégua, improvisou-se ali mesmo, no campo da Cittadella, com os carros estacionados em redor do retângulo.
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Bernardo Bertolucci a gritar no set de rodagem de “1900”, em Parma, 1975
Coube a Laura Betti, amiga de um, atriz no filme de outro, amadrinhar os planos para quebrar o gelo entre os génios. Em Parma, o relógio marcava 9h30 quando o juiz de jogo soprou no apito – na segunda parte seria rendido por um elemento afeto à outra turma. Defrontavam-se as equipas de produção de ambos os lados – o aniversariante, que rodava o drama épico com Robert De Niro e Gérard Depardieu, ficou na assistência. Os seus cabeças de cartaz internacionais também não alinharam. Se as estrelas de sétima arte eram baixa no conjunto de Bertolucci (que não tinha grande queda para o futebol) um jovem craque chamado em cima da hora fez a diferença. Carlo Ancelotti, ele mesmo, um discreto pormenor guardado na gaveta durante 46 anos, que em 1975 vestia a camisola da equipa local.
Pier Paolo Pasolini (à esquerda do goleiro) e Carlo Ancelotti (à direita da foto) alinhados para a partida Pasolini-Bertolucci, em 1975. pic.twitter.com/4gGWE9KAb7
— MUBI Brasil (@mubibrasil) November 25, 2022
A Pier Paolo, juntaram-se os protagonistas do seu documentário Love Meeting. O rigor estendeu-se ao guarda-roupa. A equipa de Saló seguiu os tons bolonheses entre azul e encarnado. Os Novecento tiveram até direito a equipamentos especiais, confecionados pela figurinista e diretora de produção. Para além dos cerca de 4 mil figurinos que tinha que supervisionar para a produção de “1900”, Gitt Magrini desenvolveu ainda as camisolas roxas brilhantes, com a referência ao filme no peito em amarelo, e ainda umas vistosas meias coloridas capazes de encadear o adversário. De Super 8 na mão, Clare Peploe, produtora e mulher de Bertolucci filmou as andanças, uma gravação que só seria vista anos mais tarde. Como se tornou habitual,o grupo de Carlo ganhou o troféu. No rescaldo do encontro, até a Gazeta de Parma deu conta dos 5-2 finais, distinguido o efeito das “meias psicadélicas”. Terminada a segunda parte, os dois realizadores selaram as pazes comendo um grande bolo de aniversário à mão.
Pier Paolo Pasolini no set de rodagem de “Saló ou os 120 Dias de Sodoma”, em 1975
“Com cuidado a reconstruir os acontecimentos daquele domingo e ao juntar as lembranças ainda vivas de muitos dos que lá estavam, o filme toca em vários temas: a atmosfera sobre os cenários desses dois filmes italianos memoráveis, a relação entre Pasolini e seu ex-aluno Bertolucci, e o vínculo deste último com Parma e sua comunidade rural. A linha comum que corre ao longo do filme é a ligação entre Pasolini e futebol – uma paixão inesgotável, que ele praticava quase obsessivamente, e que via como uma expressão de pura vitalidade, talvez até mesmo de uma possível felicidade.”, descreveu Alessandro di Nuzzo, que escreveu o guião de “Centoventi contro Novecento”, o documentário de 2009, realizado por Scillitani, que conta a história desta partida para a eternidade. Quando o transgressor Saló se estreia, em janeiro de 1976, PPP já não estava lá para ver o efeito provocado pela sua alegoria da era fascista italiana que toma emprestado cenas de uma obra do Marquês de Sade. “No fim de contas”, notou Michelangelo Antonioni, “ele foi vítima dos seus próprios personagens – a tragédia perfeita expressa nos mais diferentes aspectos – sem saber que um dia o iriam ultrapassar”, citava-se no obituário do The New York Times, no dia seguinte à morte que chocou o país.