Cristóvão de Aguiar reservou uma parte significativa da sua escrita a memórias da sua comissão na Guiné, deixou-nos páginas singulares tanto no romance como da diarística.
O Braço Tatuado foi originariamente publicado em 1985 no romance Ciclone de Setembro, entendeu o autor que devia desafetar deste título a segunda parte, que se prendia na sua experiência de combatente na Guiné. Sucederam-se edições em 1990 e 2008. No arranque desta comovente e duríssima narrativa, o autor transporta-nos à sua infância, à sua terra-berço, ele veio do Pico da Pedra, ilha de São Miguel:
“Nos contrafortes do mar, súbito construiu-se a minha-nossa aldeia. Espantados, os rostos das casas cobriam-nos mantilhas de desencanto e um veio velho de sal subterrâneo atravessava as ruas, as árvores, os olhos. Estreitara-se a rua do meu pião de giesta, do arco de gancheta de ferro, da caranguejola do Calca-Sacos sempre atrasada e com pulmoeira pelo Caminho Novo acima, da procissão do Santíssimo com a Sucata e a Caçoila superando atrás marchas graves. Tudo dantes cabia naquela avenida larga, airosa de hortências e bosta, encapotada de sol antigo e do som chiante dos carros carregados de balseiros de uvas.”
E depois Coimbra, a recruta em Mafra, depois a CCAÇ 666 (já entrámos na ficção), companhia de intervenção, ele é alferes, chama-se Arquelau Mendonça, vai para Dunane, leste da Guiné, atravessaram o pontão sobre o Rio Geba, passaram por Jabicunda, seguem viagem pela estrada de Sonaco, ficamos a saber que o Chefe de Posto é um cabo-verdiano odiado pela maior parte dos autóctones, vai se seguir Dunane, e por muito tempo. Antes de cá chegar já houve muito foguetório, cumpriram-se diversas operações. Caminhar à noite pode ser um verdadeiro tormento:
“O pior é a escuridão. Nada se enxerga. De vez em quando quebra-se o comboio, desfaz-se a fila indiana. Andamos então às apalpadelas, enrodilham-se-nos as lianas nos pés, entrevando os passos. Alguns homens vão caindo, mas não soltam pio – pensamento proibido despentear o cadaveroso silêncio que, desde o princípio da noite, sobre nós se abateu. Os alvores da antemanhã ainda se encontram nos ensonados quintos do inferno…
Paramos para descansar. Veio o aviso da dianteira em passa-palavra. Deitamo-nos então ao lado uns dos outros, prefigurando uma enorme vala-comum, mas com os cadáveres alinhados. Estamos de papo para o ar. O ar é um covão de sombra onde nenhum apelo penetra nem de onde nenhum aceno nos chega. Fica de súbito cada um mais sozinho e mais chegado à sua pequenez. O companheiro da ilharga é um volume cozido e atado de escuridão. E tocamo-nos, tocamo-nos numa repentina necessidade de nos sentirmos irmanados na rifa do destino que nem sequer adivinhamos qual seja…”
O autor tem uma clara propensão para descrições apocalípticas, de validade muito discutível, é o caso das execuções dos guias, prática corrente do Capitão Castelar, um especialista a raspar-se da barafunda do tiroteio. Escreverá sempre nos seus relatórios que o guia procurou fugir, disparou-se para o intimidar, aconteceu morrer. Ocorreram desastres a esta Companhia, logo numa espécie de tirocínio, seguia o Capitão Miranda acompanhado pelo seu guarda-costas, o soldado Barrancos que resolve despoletar uma granada de mão ofensiva, num momento que se julgava haver confronto, afinal não havia inimigo à vista, mas o Barrancos meteu a granada no bolso do dólman, esquecido de que lhe tinha retirado a cavilha… houve feridos graves.
Sucedem-se as descrições de grandes desastres, há também menção a interrogatórios sanguinários, no meio da bestialidade até se degolam crianças, há uma coluna a que se dirige a Piche, há uma emboscada e um morticínio de dez homens. Tudo isso faz parte de um passado, é só de lastimar que o autor não nos fale mais dessas operações da sua companhia de intervenção, estamos agora focados em Dunane. Toda a medonha burocracia militar é posta a descoberto, voltamos a ter recordações do passado como o Tenente Batista que treinada os filhos gémeos nas artes marciais, sempre que fazia prisioneiros na mata chamava os filhos e incitava-os a picar com as suas navalhinhas amoladas o tronco nu dos capturados, o mesmo Capitão Batista que em Angola, face a uma infidelidade conjugal, se enforcou.
Temos a rotina em Dunane, mas a memória não deixa de pôr a escrito outras desgraças que vão acontecendo aqui e acolá. “O destacamento de Dunane fica no mamelão da planície que se estende de Piche a Canquelifá. Dele se pode avistar léguas de terra arborizada, às vezes concentrada em mata virgem, outras raleando nas valas, ou então despindo-se por completo nas bolanhas. Dunane, que dava um esplêndido título de livro de poemas de combate neorrealistas, como o exemplo, Dunânicas, não tem mais que meio hectare de superfície.”
Ficamos a saber que há dois cães, a fêmea, a Andorinha, merecerá alta pontuação de ternura quando parir seis cachorrinhos. Aparece-lhe do abrigo, esgravata a terra, o alferes pega ao colo acaricia-lhe o alto da cabeça, a cadela é mesmo mimalhenta, seguem-se as dores de parto: “Acaba de ser parida a primeira cria, é macho e tem pelo castanho-escuro como o pai; a mãe, após cortar o cordão umbilical e comer a placenta, lambe-o, lava-o, embevecida. Vão seguindo os outros em intervalos de quinze, vinte minutos, até à consumação do sexto, que é fêmea e tem ares das feições da mãe quando andava de bibe na parada.”
Caminhamos para a catástrofe de caiu em cima do Niza, no mesmo dia em que a Andorinha pôs cá fora os cachorrinhos chegou carta da Lena, ele pede ao alferes que lhe explique com toda a franqueza o que é que a Lena lhe está a dizer com meias palavras, Arquelau esfarrapa uma argumentação, ó Niza, espera nova carta da Lena, vais ver que tudo se compõe, nada se veio a compor, chegou carta dos pais do Niza, “a rapariga que namoravas, essa tal Lena da Maria Calva, roeu-te a corda, a grande galdéria, anda agora de namoro pegado com o filho mais velho do Rolo, aquele que está para a França, ele veio cá de visita, pelas festas da Senhora da Piedade e corre pelo povo que se vão casar breve, que Deus o proteja e a ti te dê muitas forças para aguentares com este grande coice da mula sabida.”
O resto é de prever, o Niza anda aos tiros, acusa o alferes de ser o maior culpado, devia o ter proibido de se tatuar, agora que tem a vida toda lixada, vai dar cabo da vida dos outros. Lá o conseguem prender, o cabo-maqueiro injeta-lhe uma dose dupla de largactil. O Niza irá dormir como uma pedra, acaba por ser recambiado para a sede do batalhão. Não vou trair o leitor revelando-lhe o desfecho desta história. Ainda há mais desastres, o furriel Simões sinistra-se ao pisar uma mina. A história caminha para o fim, embarca-se em Bambadinca para Bissau, há discurso do Comandante Militar. O alferes só sonha com a sua ilha de fantasmas, caminha para um tempo que não existe mais.
Há belos parágrafos em O Braço Tatuado, um depoimento forte, com muita ênfase na crueldade, talvez com o objetivo de não nos esquecermos que nenhuma guerra escapa ao horror, sobretudo das vítimas inocentes.
Mário Beja Santos
Toda a sua vida profissional, entre 1974 e 2012, esteve orientada para a política dos consumidores. Além da atividade funcional, foi representante associativo, tendo exercido funções no Comité Consultivo dos Consumidores, na Comissão Europeia, e na direção da Associação Europeia de Consumidores. Foi autor de programas televisivos e radiofónicos, bem como de dezenas de trabalhos no campo específico do consumo. Ao nível da sua participação cívica e associativa, mantém-se ligado à problemática dos direitos dos doentes e da literacia em saúde, domínio onde já escreveu algumas obras orientadas para o diálogo dos utentes de saúde com os respetivos profissionais, a saber Quem mexeu no meu comprimido?, 2009, e Tens bom remédio, 2013. Doente mas Previdente, dá continuidade a esta esfera de preocupações sobre a informação em saúde, capacitação do doente, o diálogo entre os profissionais de saúde, os utentes e os doentes.
Colabora frequentemente com a imprensa regional e blogues, e exerce benevolato com associações de consumidores, como seu representante. Desde 2006 que se dedica igualmente a estudos sobre a colónia da Guiné portuguesa e a vida política na Guiné-Bissau, temas sobre os quais publicou uma dezena de livros.