Rosa Casaco, o homem que matou Humberto Delgado; D. Eurico Dias Nogueira, o bispo que foi vigiado; Calouste Gulbenkian, o preso mais rico do mundo. São estes os protagonistas de “Histórias da PIDE: Quando Salazar Mandava”, de José Pedro Castanheira. O livro recorda um número — 29 510, os presos detidos pela polícia política portuguesa que operou durante a ditadura — mas foca a atenção em histórias particulares com protagonistas singulares, para demonstrar os métodos, as ações e algumas das figuras principais daquela entidade.
Mais uma personagem se junta a esta lista: Francisco Craveiro Lopes, marechal da Força Aérea que foi Presidente da República entre 1951 e 1958, mas que entrou em rutura com Salazar. O excerto que aqui publicamos aborda não só o estatuto que o militar e político conquistou de “observado” pela PIDE como, e de forma mais particular, descreve a forma como uma relação extra-conjungal se transformou em arma, por parte de um regime que, após a presidência, encontrou em Craveiro Lopes um (no mínimo) incómodo.
José Pedro Castanheira, o autor de “Histórias da PIDE: Quando Salazar Mandava”, nasceu em 1952 e é jornalista há mais de 50 anos. As histórias que fazem parte deste novo livro resultam de investigações feitas para o jornal Expresso, redação que integrou durante quase 30 anos. Este é o primeiro volume, abordando o período do Estado Novo que corresponde à governação de Salazar. O segundo tratará dos anos que correspondem à época de Marcello Caetano.
▲ A capa de “Histórias da PIDE, Vol. 1 — Quando Salazar Mandava”, de José Pedro Castanheira (Tinta-da-China)
Ao tempo em que Craveiro Lopes fez as bombásticas declarações ao Diário de Lisboa já a PIDE investigava, afanosa e pérfida, uma informação que lhe chegara sobre um alegado romance do marechal. Tratar‑se‑ia de uma senhora casada, de ascendência espanhola, bastante mais nova, bela e distinta, Elizabeth Humanes Dias.
Viúvo há cerca de cinco anos, vivendo sozinho no apartamento na Rua Sinel de Cordes, apreciador da companhia feminina, ignora‑se como é que Craveiro Lopes se travou de amores com Elizabeth — e muito menos quem os apresentou e onde se conheceram. Como se ignora quando e como a polícia política tomou conhecimento da paixão do ex‑presidente por Elizabeth. O que é indiscutível é que se iniciou nessa altura um processo de autêntica «agressão moral» a Craveiro.
A primeira referência existente no Arquivo PIDE/DGS data de 3 de setembro de 1963, quando um inspetor‑adjunto da Secção Central mandou averiguar a «identidade e modo de vida» de Carmen Garcia e Elizabeth Dias, aparentemente a residirem na Avenida da República, 44, 3.º direito. Consciente do que estava em causa, o responsável da polícia política sublinhou que, «dentro das possibilidades, estas averiguações devem ser efetuadas com discrição». A informação solicitada chegou um mês e meio depois, a 17 de setembro. «As duas senhoras citadas são sócias da casa Carmen Modas» — uma das mais distintas boutiques da alta sociedade lisboeta. Ambas possuíam ascendência espanhola. Elizabeth era casada e vivia na Rua Praia da Vitória; Carmen, por sua vez, era divorciada e habitava na Rua Tomás Ribeiro. «Ambas as senhoras» — lê‑se na informação, colhida por dois agentes da PIDE — «se deslocam frequentemente ao estrangeiro, a fim de, segundo consta, contactarem com os grandes centros da moda feminina».
A investigação sobre as duas mulheres prosseguiu. Foram solicitados dados à Divisão de Estrangeiros da própria PIDE, bem como à Direção dos Serviços de Identificação. Abertas as inevitáveis fichas individuais, as informações recolhidas foram guardadas num processo em nome de ambas. A este dossiê foi apenso, em data desconhecida, uma fotografia (de estúdio) de Elizabeth, bem como o respetivo negativo.
Elizabeth e Carmen tornaram‑se familiares aos olhos e ouvidos dos agentes encarregados de vigiar o marechal. O nome de Carmen Garcia foi mesmo referido numa das escutas telefónicas, efetuada pela PIDE a 11 de setembro. As duas mulheres foram vistas com frequência a tomar chá com o ex‑presidente na Pastelaria Versailles, um dos estabelecimentos mais in da capital, a três quarteirões de distância da Carmen Modas. Alguém que acompanhou o namoro notou que ao encontro de Craveiro e Elizabeth na Versailles comparecia sempre uma terceira pessoa — um chaperon, como se dizia —, para não provocar suspeitas.