Os incêndios que lavram desde sábado no Parque Nacional da Peneda-Gerês (PNPG), no Norte de Portugal, levaram à destruição de seis milhares de hectares de área protegida. “O coração da Área de Protecção Total em torno da Mata de Albergaria não foi afectado, mas o fogo entrou nos limites da Área de Ambiente Natural”, lamenta Miguel Dantas da Gama, membro do conselho estratégico do PNPG.

Miguel Dantas da Gama defende que as áreas protegidas de relevância nacional deveriam voltar a ter um director dedicado e recursos próprios (incluindo meios aéreos) de prevenção e combate aos fogos – uma visão que é partilhada por organizações ambientais portuguesas como a Íris e a Zero. Actualmente, os parques naturais são administrados por comissões de co-gestão, que reúnem diversos actores locais.

“Em territórios onde a prioridade tem de ser a preservação da natureza, exige-se que no combate aos fogos as equipas e entidades criadas localmente e especificamente para esse efeito, com um conhecimento do terreno que nem bombeiros, nem protecção civil possuem, tenham um papel central. Refiro-me a corpos especiais da GNR, sapadores locais, vigilantes da natureza”, afirma ao Azul Miguel Dantas da Gama.

O especialista afirma que é crucial estar presente no terreno com “postos de vigia permanentes, patrulhas de primeira intervenção reforçadas, mais vigilantes a quem devem ser valorizadas as respectivas carreiras”.


Serra Amarela devastada

“Infelizmente, 80% da serra Amarela está queimada”, afirma Dantas da Gama, que esteve esta sexta-feira no PNPG a acompanhar a situação dos fogos. “Muitos animais se terão perdido, nomeadamente répteis e pequenos mamíferos. Outros, fugidos às chamas, nomeadamente as aves, vão procurar espaços alternativos, numa movimentação geradora de stress”, acrescenta o autor de diversos livros sobre a região.

O PNPG consiste num mosaico de habitats que acolhe uma biodiversidade formidável, incluindo várias espécies icónicas e protegidas. É o caso, entre os mamíferos, do lobo-ibérico (Canis lupus signatus), da lontra-europeia (Lutra lutra), do corço (Capreolus capreolus), do gato-bravo (Felis silvestris) e do morcego-de-ferradura-grande (Rhinolophus ferrumequinum).

Num artigo publicado em 2022 no Azul, o botânico Jorge Paiva notava ainda que, “das plantas do Parque Nacional, 19 espécies são raras, duas são vulneráveis – o teixo (Taxus baccata) e o lírio-do-gerês (Iris boissieri) – e duas estão em perigo de extinção – o pinheiro-de-casquinha (Pinus sylvestris) e o Narcissus asturiensis”.

O coberto vegetal que emergirá deste incêndio, explica Miguel Dantas da Gama, “será ainda mais dominado por extensas e contínuas manchas de matos, muito pobres em termos de biodiversidade, e que no futuro potenciarão incêndios ainda mais devastadores”.

Dantas da Gama acrescenta que as “manchas dispersas de carvalhos e salgueiros junto às linhas de água”, bem como “as ocorrências isoladas de pereiras-bravas e de azevinhos” são cada vez mais raras. Acresce que o solo está exposto, destituído de nutrientes, nas zonas de maior declive. “Menos água será retida, menos água chegará às aldeias do parque. É um círculo vicioso cada vez mais mortal”, lamenta.

Para quebrar este círculo, sugere Dantas da Gama, é necessário recuperar o coberto vegetal natural, tornando a vegetação mais resiliente e disseminando espécies arbóreas nativas a partir de sementes recolhidas no interior do parque.




Vista panorâmica para o vale de Cabril, ainda intacto na tarde de sexta-feira, no Parque Nacional de Peneda-Gerês
Miguel Dantas da Gama / Canhões de Pedra

“A recuperação só é possível sem fogos, num processo que durará décadas até que as novas árvores passem a dominar a paisagem ou, o mesmo é dizer, se sobreponham aos matos que hoje dominam mais de 70% do território desta área protegida”, refere Dantas da Gama.

O PNPG está inserido em territórios dos distritos de Braga (concelho de Terras de Bouro), Viana do Castelo (Melgaço, Arcos de Valdevez e Ponte da Barca) e Vila Real (Montalegre). O parque apresenta uma área total de 70.290 hectares, dos quais seis mil arderam nesta vaga de incêndios, segundo a plataforma Bombeiros.pt.

Conservação vs. turismo

A Íris também critica o actual modelo de gestão do PNPG, defendendo o regresso de uma direcção unicamente dedicada àquela área protegida. Esta figura estaria mais bem posicionada para gerir a tensão natural que existe entre a necessidade de conservação da natureza e a de desenvolvimento local, segundo Paulo Pimenta de Castro, presidente da direcção nacional da associação ambientalista.

“É um jogo complicado e nem sempre compatível. Os autarcas estão interessados no desenvolvimento e no turismo, o que é legítimo, mas a bicharada não gosta de gente a passear no parque. Pode haver turismo, mas não de massas, com bons acessos e iluminação. É preciso fazer escolhas e, se quisermos proteger o parque nacional, temos de diminuir a pressão humana”, afirma Pimenta de Castro, engenheiro silvicultor.

Nesse modelo de gestão com uma direcção dedicada, a associação Íris destaca ainda a importância de haver “sistemas de vigilância e defesa próprios” que permitam “uma intervenção rápida logo após a ignição”.

“Claramente, durante décadas, o PNPG, a par de outras Áreas Protegidas em Portugal, tem sido vítima de inadmissível falta de atenção por parte dos vários governos, designadamente na predisposição de eficazes meios de prevenção e combate. Um mero exemplo: no país vizinho, o Parque Monfrague, na região de Cáceres, tem disponível a tempo inteiro um meio aéreo para defesa contra os incêndios. Prioridade distinta do caso luso”, refere uma nota da organização.

No documento, a Íris pede ao Governo “maiores esforços na protecção da Rede Nacional de Áreas Protegidas, em particular do PNPG”, expressos de forma concreta “já no próximo Orçamento do Estado, designadamente no que respeita à defesa contra incêndios, em prevenção, vigilância e combate”.

A organização recorda que, entre 2015 e 2024, arderam em Portugal mais de 100 mil hectares em áreas protegidas, “o equivalente a mais de dez vezes a superfície da capital portuguesa”.

Defender “a jóia da coroa”

A associação ambientalista Zero, por sua vez, também defende que áreas protegidas devem ser alvo de prevenção e combate aos fogos diferenciados, com equipas especializadas capazes de defender os diferentes habitats da “jóia da coroa”. O PNPG, criado há 54 anos, é o único parque nacional em Portugal.

“Numa área protegida, não podemos estar limitados a assistir ao fogo a avançar e a esperar cá em baixo, porque quando a serra toda arder a situação está resolvida. Temos de ter um plano para cada área protegida, analisar as mais susceptíveis e ter planos específicos para actuar”, afirma Paulo Lucas, da Zero, citado pela Lusa.

O dirigente da associação invoca as “lições aprendidas pela Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais” e espera que deste longo incêndio no parque nacional saia um “relatório para saber o que aconteceu”, como foi o caso depois do incêndio de 2022 na serra da Estrela.

“Na serra da Estrela, houve um relatório. Vai haver também um relatório relativamente ao Gerês? Porque é que o fogo alastrou tanto? Tem de haver um relatório, temos de saber o que aconteceu, para depois aprendermos”, conclui Paulo Lucas.