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Olá.

Hoje escrevo-te para que leias. Não este texto especificamente, mas uma coleção de sugestões que fui acumulando nos últimos dois anos, numa prateleira da estante cá de casa com a etiqueta “Palestina”. Páginas que julguei serem apenas para partilhar e comentar entre amigos, mas que a 7 de outubro de 2023 ganharam uma renovada urgência e importância. Nesse dia de desespero, um dia que dura até hoje, procurei nos livros respostas para a impotência. Sabendo que nada começou aí.  

Qual o plano para se apanhar um comboio em movimento há mais de um século? O trabalho está facilitado para quem lê inglês. É que a tradução de literatura palestiniana ou com um ângulo palestiniano escasseia no mercado português. Uma desigualdade gritante no acesso à informação que continua por resolver. 

Tentei começar pelo que tantos reclamam como a origem de tudo: A Bíblia, numa versão traduzida por Frederico Lourenço a partir da versão septuaginta. Esta é considerada a versão completa mais próxima dos textos originais, escrita na língua em que Jesus Cristo teria lido os textos judaicos, o grego. Aqui está a raiz da moral judaico-cristã e um dos pilares fundamentais do sionismo. Um livro sociologicamente fascinante, historicamente falso.

Para relatos historiográficos, fui aos mais reputados. Para desconstruir parte da mitologia bíblica, judaica e sionista, os três livros de Shlomo Sand traduzidos para português: Como Uma Raça Foi Imaginada, Como a Terra de Israel Foi Inventada, e Como Deixei de Ser Judeu. Para um enfoque na história e cultura árabe, especialmente palestiniana, são extraordinários para leigos, como eu, História dos Povos Árabes, de Albert Hourani, Palestina – Uma Biografia, de Rashid Khalidi, História da Palestina Moderna, de Ilan Pappé, e Palestine: A Four Thousand Year History, de Nur Masalha. São livros introdutórios, mas abrangentes, que ousam sintetizar grandes períodos históricos. Algo académicos, mas acessíveis. 

Se preferires um livro introdutório, mas um pouco mais curto e simples, Dez Mitos Sobre Israel, de Ilan Pappé, e Porque Teme Israel A Palestina, de Raja Shehadeh, são boas opções. E, aparentemente mais específico no tema, mas tão vasto como os restantes, Nine Quarters of Jerusalem, do jornalista britânico Matthew Teller – uma biografia da cidade, que vai da cultura cigana às origens das Mil e Uma Noites (outro título para a lista).

Se gostares da escrita biográfica de Raja Shehadeh, qualquer livro dele que te apareça à frente é bom. A sensação que tenho é que cada um é melhor do que o anterior. O mais conhecido será Palestinian Walks, sobre as suas viagens a pé pela Cisjordânia e o impacto ambiental da ocupação. Os que mais gostei foram We Could Have Been Friends, My Father and I e Where The Line Is Drawn – o primeiro sobre a relação com o pai, Aziz Shehadeh, famoso advogado palestiniano, que defendeu a solução de dois estados desde os anos 50 e que morreu assassinado à porta de casa; o segundo sobre a (tentativa de) relação com um amigo de infância israelita, sionista cultural. Há ainda o relato do seu crescimento e formação sob um regime militar ocupante em Strangers In The House, e uma longa tarde a caminhar por Ramallah e a refletir sobre os seus 50 anos a viver sob ocupação em Going Home

Talvez a melhor descoberta que fiz nesta obsessão literária tenha sido Ghassan Kanafani. Cheguei a ele tarde e envergonhado desse tardar. Escritor, jornalista e porta-voz da Frente Popular para a Libertação da Palestina, conhecido como “o comando que nunca disparou uma arma”, é um prosador como li poucos, um dos mais inteligentes e articulados analistas do que se passa na Palestina. Em Beirute, em 1972, aos 36 anos, foi assassinado com a sobrinha pela Mossad, que armadilhou com explosivos o seu carro. Mais de 50 anos depois, o que escreveu é atual. Para coleções de contos e pequenas histórias, há Men In The Sun and Other Palestinian Stories (a história referida no título é um dos textos mais conhecidos da literatura palestiniana, adaptada para filme, em 1973, em al-Makhdu’un). Para uma continuação desta colectânea, lê Palestine’s Children

Se a escrita de Kanafani for a tua praia, aventura-te em All That’s Left To You, uma novela curta, mas complexa, em que o tempo e o deserto são personagens – tudo passado em 24 horas da vida de dois irmãos em Gaza. No final deste mês, poderemos mergulhar no pensamento político dele quando sair Ghassan Kanafani: Selected Political Writings, a primeira compilação dos seus textos políticos em inglês.

Para encerrar o capítulo da boa prosa palestiniana que tive o tempo e o acaso de ler, tenho de te deixar ainda estas recomendações: Um Dia Na Vida De Abed Salama, do jornalista norte-americano Nathan Thrall, que denuncia o estado de apartheid a partir de um acidente com um autocarro de crianças; a comédia negra Sharon and My Mother In Law, de Suad Amiry, sobre os absurdos risíveis do apartheid sionista; The Secret Life of Saeed the Pessoptimist, de Emile Habibi, palestiniano que foi deputado no parlamento israelita e que pensa aprofundadamente sobre as contradições sionistas e levantinas (traduzido para português, mas esgotado fora de alfarrabistas); The Tale of a Wall, de Nasser Abu Srour, refugiado do campo de Aida, preso político há mais de 30 anos e que conseguiu fazer chegar clandestinamente o manuscrito ao editor; e Homes of the Heart, de Farouq Wadi, sobre o choque de uma visita à terra natal, Ramallah, depois de anos no exílio.

E foram as coletâneas de cultura palestiniana que me levaram aos próximos autores que queria descobrir. Foi o caso de Corpos na trouxa – Histórias-artísticas-de-vida de mulheres palestinianas no exílio, escrito por Shahd Wadi, palestiniana a viver em Portugal, filha de Farouq Wadi. This Is Not a Border, uma enorme coletânea do PalFest, festival de literatura da Palestina, foi o livro que mais livros me fez comprar, a par de A Map of Absence, uma antologia de textos sobre a Nakba, editada por Atef Alshaer. Já Palestinian Cultures of Resistance, de Michael Lavalette, académico britânico, foca-se na vida e obra de quatro nomes maiores da arte palestiniana: Ghassan Kanafani; o cartoonista Naj Al Ali, autor de Handala, o menino de costas que só revelará o rosto quando a Palestina for livre (também Naj Al Ali, como Kanafani, foi assassinado); a poeta Fadwa Tuqan, de quem se disse que por cada poema que escrevia, dez novas pessoas se alistavam na resistência; e Mahmoud Darwich, de quem não sei sugerir nenhum livro de tão conhecido, reconhecido, publicado e extraordinário que é.

Começo a ficar sem espaço e acabo esta já demasiada grande lista precisamente com poesia. Fundamental na vida palestiniana, moldada por uma longa tradição oral, a quantidade e qualidade de poetas e textos é verdadeiramente notável. As coletâneas, novamente, foram fundamentais, três delas em português: As Pedras Têm Entranhas, Se Eu Tiver de Morrer e Um Árabe é um Árabe, é um Árabe, um Árabe. Mohammed El-Kurd, que ficou conhecido ainda criança ao documentar a limpeza étnica no bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém, escreveu Rifqa (que será editado em português no próximo mês); You Can Be the Last Leaf, de Maya Abu Al-Hayyat, é dos livros mais comoventes desta lista; In Jerusalem and Other Poems, de Tamim Al-Barghouti, expandiu-me os horizontes palestinianos para todo o mundo árabe; então, veio depois O Arco-Íris do Instante, de Adonis, o poeta sírio, tornado libanês, que é uma das maiores referências contemporâneas da poesia árabe.

O monte a que chamo “os que vou ler a seguir” não pára de crescer. Agora posso ver por lá, entre tantos outros, Memoirs of an Early Arab Feminist, da libanesa Anbara Salam Khalidi, Gate of the Sun, do também romancista libanês, recentemente desaparecido, Elias Khoury, Wild Thorns, de Sahar Khalifeh (publicado, na Palestina, em 1976), Palestinian Identity, de Rashid Khalidi, A Limpeza Étnica da Palestina, de Ilan Pappé, e A Questão da Palestina, de Edward Said. Neste momento, ocupo-me com o compêndio de pequenos diários, reportagens e memórias que é Daybreak in Gaza, de Mahmoud Muna e Matthew Teller, acabado de sair. Fico feliz se tiver contribuído com uns livros para o teu monte “vou ler a seguir”, e estou sempre disponível para poder aumentar o meu com sugestões tuas. O importante é apanhar e não perder mais o comboio.

Até já,

Bernardo Afonso