Defensor oficioso pediu 48 horas para conhecer o processo, mas tribunal recusou. Juristas dizem que o coletivo “violou o direito de defesa” e pode ter tornado nula a sessão

O julgamento de José Sócrates voltou a ser palco de polémica e de debate jurídico, depois de o advogado de defesa do antigo primeiro-ministro, Pedro Delille, ter renunciado ao mandato ao fim de 11 anos, deixando o arguido sem representação. O tribunal reagiu de imediato e nomeou um defensor oficioso para assegurar a continuidade da audiência.

O novo advogado pediu um prazo de 48 horas para consultar o processo e falar com o arguido antes de prosseguir com o julgamento por, alegadamente, só conhecer o processo pela imprensa, no entanto a juíza recusou e manteve a inquirição das testemunhas, entre elas o primeiro ministro das Finanças dos governos Sócrates, Luís Campos e Cunha.

A decisão gerou polémica e levantou dúvidas sobre se o tribunal violou o direito de defesa do antigo primeiro-ministro, num processo já marcado por uma sucessão de adiamentos e incidentes processuais.

“É impossível defender alguém sem saber o que está a fazer”

Telmo Semião, presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, diz à CNN Portugal que “o tribunal devia ter concedido, no mínimo, as 48 horas pedidas” pelo defensor oficioso.

“É impossível uma pessoa ser nomeada na hora e começar a defender alguém sem saber minimamente o que está ali a fazer. Mesmo num processo sumário de condução sob efeito de álcool, por exemplo, o defensor tem direito a consultar o processo antes. Num caso de especial complexidade como este, o mínimo seria conceder esse prazo”, defende.

Segundo o advogado, a decisão de manter o julgamento “compromete o exercício do direito de defesa” e pode vir a ser considerada uma violação das garantias fundamentais do arguido.

“Há já decisões do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos a condenar Portugal em casos idênticos. Ao não dar essas 48 horas, o tribunal impede que a defesa seja eficaz”, lembra.

O advogado Manuel Nobre Correia reforça a mesma crítica: “A juíza esteve mal, processualmente e substancialmente. Resolveu o problema de forma atabalhoada e acabou por abrir o flanco para que a defesa de José Sócrates invoque a nulidade do julgamento e até a violação de um direito constitucional.”

O especialista explica ainda que a renúncia de um advogado não tem de produzir efeitos imediatos. “O advogado pode renunciar sem precisar da autorização do cliente, mas a renúncia só se torna efetiva depois de notificada ao arguido. E, até lá, o advogado renunciante deve manter-se em funções, pelo menos durante o tempo necessário à notificação, o que são, no mínimo, uns dias.”

Porém, perante a nomeação de um oficioso, para Manuel Nobre Correia o tribunal podia e devia ter suspendido o julgamento por 48 horas, permitindo ao novo defensor inteirar-se do processo.

“Ao não o fazer, a juíza atropelou o direito do arguido a uma defesa efetiva, um direito constitucionalmente garantido.”

O que diz a lei

O artigo 67.º do Código de Processo Penal prevê a substituição de defensor, mas não regula expressamente o efeito da renúncia. Nesses casos, aplica-se o Código de Processo Civil, que determina que a renúncia deve ser notificada ao cliente e que este tem 20 dias para nomear novo advogado.

Durante esse período, entende parte da jurisprudência que o advogado renunciante deve manter-se em funções, garantindo que o arguido não fica sem representação.

O novo advogado de José Sócrates – seja o oficioso ou um mandatário que venha a ser constituído – pode agora requerer a nulidade dos atos processuais realizados na sessão em que não teve tempo de preparação e a repetição das provas produzidas, nomeadamente dos depoimentos de testemunhas.

Segundo Telmo Semião, “pode ser declarada a nulidade de tudo o que aconteceu hoje, pelo menos”. 

A decisão da juíza, caso venha a ser contestada, pode assim ter o efeito oposto ao pretendido, atrasando ainda mais o processo.

“Para poupar 48 horas, o tribunal pode acabar por perder meses. Se houver requerimento de nulidade, recurso para a Relação e eventual subida ao Supremo, dificilmente haverá decisão antes de três ou quatro meses”, adverte Telmo Semião.

E, no limite, a questão pode mesmo chegar ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. “Se os tribunais portugueses não reconhecerem a violação do direito de defesa, não é impensável que Estrasburgo venha a dar razão a José Sócrates porque não lhe terá sido dada a possibilidade de uma defesa adequada, justa e equitativa neste processo”, acrescenta.

“Desta vez, José Sócrates tem razão”

A recusa do adiamento, dizem os juristas, “pode virar o processo contra o próprio tribunal”.

“Durante anos, José Sócrates foi acusado de se vitimizar e de procurar manobras dilatórias. Mas desta vez tem razão, existe um fundamento para isso”, considera Telmo Semião.

Segundo o dirigente da Ordem dos Advogados, a decisão da juíza pode abrir caminho a um incidente de escusa, questionando a imparcialidade do coletivo, e a mais recursos que acabem por atrasar o desfecho do julgamento.