Está em curso uma purga aos próprios apoiantes do regime russo  

Durante anos, pessoas que se demonstraram apoiantes de Vladimir Putin e da invasão da Ucrânia prosperaram na Rússia, onde a lealdade e o apoio entusiástico à guerra eram recompensados com influência, prestígio e dinheiro. No entanto, atualmente são alvos da mesma máquina repressiva que ajudaram a legitimar.  

Alguns exemplos são o analista político Sergei Markov, que durante anos saudou Vladimir Putin nos meios de comunicação estrangeiros, e o blogger Roman Alyokhin, que angariou fundos para as tropas russas enquanto espalhava discursos abertamente genocidas sobre a Ucrânia. Ambos foram designados como “agentes estrangeiros”, uma classificação que durante anos serviu para silenciar críticos do regime. Com origens no léxico soviético, esta etiqueta implica restrições financeiras severas e a obrigação de se identificarem publicamente como tal.  

Após ser rotulado de “agente estrangeiro”, Sergei Markov tentou minimizar o caso, classificando-o como “um mal-entendido”. Já Roman Alyokhin recorreu a argumentos usados por defensores dos direitos humanos, dizendo que a lei “viola a Constituição russa” e representa “uma grave violação das liberdades civis”. 

“Primeiro, perseguiram as vozes antiguerra. Agora não há mais nenhuma, e a máquina repressiva não pode ser parada”, diz a cientista política russa Ekaterina Schulmann, citada pelo The Guardian

Já Tatyana Montyan, nascida na Ucrânia e comentadora num canal russo, foi incluída na lista de “terroristas e extremistas” – um rótulo reservado aos considerados inimigos mais perigosos do Kremlin, como os antigos colaboradores de Alexei Navalny.  

Segundo especialistas, estes casos ilustram uma nova tendência em que o sistema russo está a purgar os seus próprios apoiantes, à medida que rivais dentro do regime se viram uns contra os outros. Moscovo não deu qualquer explicação oficial para as medidas de repressão e cada caso parece ter sido desencadeado de forma diferente. 

Roman Alyokhin e Tatyana Montyan foram acusados de desvio de fundos destinados às forças militares russas, após exibirem sinais de riqueza nas redes sociais. Sergei Markov, que é conhecido por manter laços com as elites políticas do Azerbaijão, terá caído em desgraça depois de as relações entre Moscovo e Baku se terem deteriorado drasticamente. 

Contudo, para além destes incidentes isolados, os analistas detetam uma fratura mais profunda, descrita por Ekaterina Schulmann como um conflito interno, uma disputa entre dois blocos: os “lealistas”, propagandistas veteranos ligados ao Ministério da Defesa e ao Kremlin; e os “militaristas” ou “bloggers Z”, um movimento popular de ultranacionalismo e do fervor pró-guerra.  

Este último grupo, composto por centenas de bloggers e voluntários, emergiu em 2022, quando o exército russo revelou falhas logísticas graves. Angariaram fundos, compraram drones e equipamentos e levaram mantimentos à linha da frente. A sua autonomia crescente acabou por despertar desconfiança por parte de Moscovo, que apoiou ataques ao grupo. 

“As autocracias temem qualquer forma de mobilização civil”, explica a cientista política. “Mesmo um movimento pró-guerra pode ser visto como uma ameaça”. O Kremlin já havia reprimido vozes do mesmo campo, como o comentador de extrema-direita Igor Girkin, que foi preso em 2024. 

A disputa por dinheiro também se tornou um fator de tensão. “No fundo, é uma batalha pelos recursos”, observa o investigador Ivan Philippov, que explica que Vladimir Solovyov, propagandista e figura central entre os “lealistas”, liderou a ofensiva contra bloggers e voluntários independentes, alegadamente irritado com o facto de muitos conseguirem angariar mais fundos do que a sua própria instituição do estado. 

É “curioso ver como aqueles que nunca se opuseram à prisão de liberais descobrirem, de repente, que a justiça na Rússia é seletiva, literalmente qualquer pessoa pode ser presa sem motivo”, comentou Ivan Philippov, recordando o eco das purgas estalinistas que também atingiram os seus seguidores mais fiéis. 

“O aparelho repressivo russo tem de continuar a funcionar. A máquina precisa de se alimentar a si própria”, referiu Ekaterina Schulmann. Para a cientista política russa, é apenas o início e devem seguir-se mais detenções – com a oposição silenciada ou exilada, o regime precisa de novos alvos.