Deve ser difícil encontrar portugueses da Geração Z (nascidos entre 1997 e 2012) ou da Geração Millenial (nascidos entre 1981 e 1996) que não conheçam Kiko is Hot, o nome artístico, pode-se assim dizer, de Francisco Soares.
Chamar-lhe criador de conteúdos pode ser redutor. Aliás, em entrevista à VERSA, acabou mesmo por se autointitular de “Barbie das Profissões”. Gosta de experimentar tudo. Começou há 15 anos por fazer vídeos no YouTube, acompanhando a adolescência de muitos.
É ator, DJ e, nos últimos anos, começou a dar cartas no TikTok, no qual partilha vídeos sem filtros, literalmente, com milhões de visualizações, em que fala sobre tudo um pouco, da política à sexualidade, passando por temas mais leves como hauls de compras por impulso, viagens ou rankings das suas comidas favoritas.
Kiko is Hot | Fotografia: D.R.
Também é sem tabus e de forma vulnerável que aborda assuntos como a saúde mental e, agora, abraça um novo projeto, o podcast na Cidade FM, Terapia de Segunda. Todas as segundas-feiras, às 22h00, lança um episódio em que dá conselhos aos ouvintes, acompanhado de um amigo e do seu já conhecido humor, uma espécie de terapia, tal como o nome indica, mas que não deve “substituir a terapia clínica”, claro. Já podes, aliás, assistir ao primeiro episódio.
É, talvez, por ser tão vulnerável e verdadeiro que já tem mais de 500 mil seguidores no TikTok e mais de 300 mil no Instagram. Falámos com Kiko sobre o seu percurso, a loucura que têm sido os últimos anos, a “concretização de um sonho” com o novo projeto em rádio e o que podemos esperar do seu futuro brilhante … porque ainda não “basta” de Kiko.
Como surgiu esta oportunidade? Aceitaste sem hesitação?
Ninguém me fez um convite, fui eu que me auto-convidei. Vim reunir com o Manuel [Cabral, diretor de programas da Cidade FM] há dois anos. É um projeto que idealizei por completo — a Cidade foi incrível em aceitar isto, mas a ideia toda veio de mim. Vim cá, literalmente, chateá-los: “Temos de fazer isto aqui, vá lá, vá lá.” E, passados dois anos, aqui estamos nós.
“Tenho feito coisas que nunca imaginava e tem sido muito recompensador”
Porquê na rádio?
Era muito importante para mim isto passar na rádio. Era um sonho meu fazer rádio e ter um programa da minha autoria. Poderia ter feito um podcast fora da rádio, de uma forma menos tradicional, mas para mim era importante fazer isto desta forma. Estar assim em meios mais mainstream é algo que tenho explorado mais.
Explica-me o conceito.
Tenho sempre um convidado e, juntos, respondemos a dilemas reais que as pessoas mandam para o meu WhatsApp — que já está cheio de dilemas. Cheio, cheio, cheio. Já temos centenas para escolher.
Passamos os áudios no ar e eu e o meu convidado damos o nosso melhor conselho possível. Não profissional, atenção. É uma terapia de segunda porque passa às segundas, mas também é assim de segunda categoria. Não é um conselho profissional, nem deve substituir a terapia clínica.
Escolheste o Nuno Markl como primeiro convidado. Porquê?
Porque era alguém aqui do edifício e, para mim, fez todo o sentido. É alguém que faz rádio há muito tempo e eu queria estar confortável — e quem não está confortável ao lado do Nuno Markl?
Senti que, se ficasse nervoso — o que aconteceu, porque estava super ansioso no meu primeiro episódio —, sabia que ele ia continuar a falar e encher de conversa.
Terapia de Segunda | Fotografia: D.R.
O mundo dos podcasts não é completamente novo para ti…
Já tive um podcast há muitos anos, chamado HotCast — ótimo nome, por acaso. Gravava sozinho no meu quarto dentro do armário, literalmente, que era onde tinha a melhor acústica. Era uma coisa super amadora. Tinha um pequeno microfonezinho e gravava.
Isso também é a beleza da internet hoje em dia. Claro que agora tenho a oportunidade e a honra de estar a fazer isto em rádio, mas acho que a internet veio democratizar esta vontade que as pessoas possam ter de explorar essa veia. Qualquer pessoa que tenha coisas para dizer pode ter essa oportunidade, e isso é bom.
Mas foi uma evolução muito grande, não?
Estes últimos anos têm sido evoluções atrás de evoluções. Estou a agarrar-me com muita força, porque têm sido fases incríveis. Tenho feito coisas que nunca imaginava e tem sido muito recompensador.
“As pessoas dizem sempre que tens de te focar numa só coisa, acho que isso é uma parvoíce”
Já sabemos que no TikTok não tens filtros… E no podcast, vais tentar ser igual?
Olha, só se me proibirem. Acho que faço um trabalho melhor quando não estou preocupado com algum tipo de censura — não funciono muito bem com isso. Claro que tenho de respeitar, porque estou numa empresa e não nas minhas redes. Se tiverem coisas que não possam passar no ar, por exemplo, asneiras que disse no primeiro episódio. Há coisas que eles vão ter de cortar e eu respeito isso.
Durante o primeiro episódio surgiu alguma pergunta mais difícil de responder?
Houve uma que foi muito relatable. Era alguém que sentia que estava numa amizade em que já não queria estar e perguntou se devia ter uma conversa ou não. Eu e o Nuno estivemos ali um bocado a debater, porque não é uma coisa fácil. De certa forma, acabar relações amorosas até parece mais fácil ou óbvio. Uma amizade é estranho pode ser mais complexo.
Estás sempre a abraçar novos projetos… Qual será a próximo?
Ufa… Deixa-me acabar este antes de pensar sequer no próximo. Para o ano tenho um projeto de que não posso falar muito, mas é de representação. Espero voltar a representar, porque estou com saudades. Desde A Casa do Cais [série da RTP] que não faço esse trabalho como ator.
Não consigo ficar muito tempo no mesmo sítio — é algo que já percebi sobre mim. Tenho a sorte de conseguir explorar várias áreas. Portanto, se calhar, para o ano, representação. Quem sabe.
Já exploraste (e ainda exploras) várias áreas. Qual é a tua favorita?
Gosto de tudo. Não sei. É normal — as pessoas dizem sempre que tens de te focar numa só coisa, acho que isso é uma parvoíce. As pessoas mudam. Não é suposto querermos sempre comer um prato só. Comemos vários pratos e acho que a vida também deve ser um bocado assim. Se uma pessoa tem diferentes sonhos, porque não há de ir atrás deles?
“Quanto mais vivo, mais percebo que sou só um e que o mundo é muito difícil de mudar, mas não quer dizer que a gente não tente”
E o que mais gostas de fazer acima de tudo? Não consegues mesmo escolher?
Comunicar. É a base de tudo aquilo que faço de formas diferentes. Na representação, através de um texto que alguém escreveu, de um argumento; na rádio, falo diretamente com os ouvintes.
Foi isso que te incentivou a criar o canal de YouTube?
Exato. É igual, exatamente igual. Nunca mudou — e isso é incrível. Agora, com o TikTok, sinto que redescobri essa paixão de gravar vídeos, que já vinha desde muito cedo. É engraçado: parece que, às vezes, quando somos muito pequenos já sabemos o que devemos fazer ou que até gostamos de fazer. Depois crescemos e temos de fazer outras coisas, mas, no meu caso, foi quase como voltar a casa.
O que mudou em ti nos últimos anos e o que se manteve?
Eu acho que foi um bocado a minha vontade de mudar o mundo. Se calhar é uma vontade idílica. Quanto mais vivo, mais percebo que sou só um e o mundo é muito difícil de mudar, mas não quer dizer que a gente não tente.
Os projetos que tenho abraçado e o que tenho feito têm sido sempre uma forma de mudar um bocado o paradigma: como olhamos para as coisas e o tipo de pessoas que vemos sempre nos mesmos meios. Tentar diversificar. Se os seres humanos são tão diversos, porque vemos sempre só um tipo de pessoa em cargos de poder ou nos principais cargos?
A minha ideia passa por dar a oportunidade de os miúdos sonharem e não terem de se encaixar numa certa caixa para poderem chegar aos sítios a que querem chegar.
Consideras importante que os digital influencers de hoje em dia, independentemente da área em que trabalham — seja moda ou beleza, por exemplo —, usem a sua plataforma para falar sobre a atualidade sem tabus?
Não acho que seja uma obrigação, mas acho que é bom. Para mim, faz sentido. Se tenho uma plataforma tão grande, estou a receber tantas visitas e tenho tanta gente a olhar para mim, no meio disso porque não posso encaixar mensagens que defendo – de igualdade e de aceitação ao próximo? Acho que é importante.
“Percebi que posso ser várias coisas: posso ser político, posso ser engraçado, às vezes polémico, às vezes problemático”
O que fazias na altura em que começaste o YouTube que agora não repetias?
Uma coisa que me aconteceu muito — e isso foi sem querer, algo normal porque comecei muito cedo, com 16 anos — foi ter-me perdido um bocado na personagem. Já sabia mais ou menos o que ia resultar; nem era aquilo que queria fazer, mas sabia o que ia resultar. Houve ali uma fase do meu YouTube em que senti que estava só a dar aquilo que as pessoas esperavam de mim, e hoje em dia é muito mais aquilo em que acredito, o que quero e o que me apetece. Se as pessoas gostarem, ótimo — tem acontecido e é incrível. Tenho percebido uma coisa: às vezes, quando é mesmo aquilo que nós queremos fazer e é o mais honesto possível, é aí que as pessoas se relacionam mais e que tenho mais resposta. Acho que é ser o mais genuíno possível.
Sentes que eras quase uma personagem no início?
Sim, porque tinha 16 anos e, de repente, imensas pessoas começaram a gostar de um tipo de vídeo. E eu só queria ser gostado naquela altura. Pensava: “Então deixa-me fazer mais isto, que é o que as pessoas querem.” Achava quase que nem era válido se não fizesse aquele tipo de vídeos. Depois percebi que posso ser várias coisas: posso ser político, posso ser engraçado, às vezes polémico, às vezes problemático. Posso ser tudo. Está tudo certo — não é suposto sermos só uma coisa.
E como se deu essa mudança? Aconteceu alguma coisa em ti ou foi apenas algo gradual e natural?
Acho que foi crescer. Quando era muito jovem tinha muito medo de crescer, mas agora sinto que é das melhores coisas da vida, ter a possibilidade de envelhecer. Há muita gente que não consegue, e isso é triste, não é? Portanto, só a parte de envelhecer já é quase um milagre, em muitos casos.
E depois dá-te um conhecimento diferente, acho eu. Também te sentes mais capaz de lidar com tudo. Acho que foi com o tempo — e com terapia também. Real, não de segunda.
Eu acho que foi viver, não é? Houve uma fase em que nem estava a produzir tanto conteúdo e, na altura, até pensava que estava a ser preguiçoso — que não estava a fazer o que devia. Mas, na verdade, estava a viver, o que é tão importante como produzir conteúdo. Quando se produz conteúdo também é importante ter experiências de vida e coisas para falar, no fundo. Acho que foi isso, sim.
Pensando em momentos mais negativos e mais positivos da tua vida, o que destacas?
Este é, sem dúvida, um marco importantíssimo para mim. Chegar aqui significa que o país já está um sítio diferente do que quando comecei. Estar na rádio é um sonho concretizado.
O pior eu não me lembro — esqueço-me. É o trauma faz isso. Tento não ficar muito tempo a pensar nisso, porque acho um desperdício de energia estar a pensar no que não resultou.
“Quando comecei, era impensável que as marcas trabalhassem comigo e, hoje em dia, consigo trabalhar com imensas”
O teu objetivo acaba por ser, então, mudar o paradigma e acabar com certos tabus. Achas que estás a conseguir?
Espero que sim, à minha maneira. Não acho que vá mudar o mundo — sou só uma pessoa. Também não me quero meter numa posição em que tenha essa responsabilidade.
Acho que este projeto é prova disso. Quando comecei, era impensável até as marcas trabalharem comigo e, hoje em dia, consigo trabalhar com imensas.
Falando um pouco do teu TikTok… Já contaste alguma história e ficaste completamente arrependido no dia seguinte?
Por exemplo, pintei as unhas com um verniz que era suposto secar naquela luz que eu não tinha, então nunca secava, e falei super mal do verniz. Tive de voltar à loja e, às vezes, penso: será que as pessoas viram os meus vídeos todos?
Outro exemplo é o carteiro. Fiz imensos vídeos sobre o carteiro. Será que ele já viu? Nunca tivemos uma conversa sobre isso. Às vezes sinto vergonha em pensar que as pessoas possam já ter visto as parvoíces que eu disse.
Mas nunca eliminaste um vídeo?
Não, não. Hoje em dia fica tudo para sempre na internet. A única coisa é que, se calhar, vou dizer algumas parvoíces, cometer calinadas, e está tudo certo. Eu não sei tudo. É só isso.
Como reagem os teus fãs quando se cruzam contigo na rua?
Às vezes encontro pessoas na rua que me falam de vídeos específicos que as marcaram. Há uns quantos que são recorrentes – o “basta”, os do carteiro… Há várias dinâmicas que por algum motivo as pessoas adoram.
O “basta” ganhou uma proporção…
Gigante, maior do que eu.
O que mais te surpreendeu nisso?
Isto é tão aleatório. De repente faço um vídeo a dizer “basta” e isso torna-se num movimento. Para mim é super interessante e estimulante, porque parece que sempre que acho que sei mais ou menos o que vai resultar, depois não resulta.
Parece que estou sempre sem perceber este bicho da internet. Acho que é por isso que faço isto há tantos anos — porque é sempre desafiante, estimulante e diferente.
Começaram a surgir vídeos do movimento “basta” nas redes sociais, incluindo alguns de caras conhecidas. Qual te deixou mais boquiaberto?
O [Manuel Luís] Goucha ama o “basta”. O Goucha disse montes de vezes “basta” no programa dele e, quando me vê, diz sempre “basta”. Ele adorou. Para mim foi tipo: ok, o Goucha. Depois a Catarina Furtado, que também conheci há pouco tempo, foi um amor para mim. Tem sido surreal.
Também tens uma carreira como DJ. Como surgiu a ideia?
Eu sou a Barbie Profissões… Se for completamente honesto, surgiu numa altura em que estava super sem trabalho. Pensei: “O que é que posso fazer agora? DJ.” Porque não sei cantar, nem dançar. E pensei: “DJ, ok, consigo mexer em coisas e clicar em botões — isso eu consigo.”
Começou como um hobby. Na altura, o meu melhor amigo disse: “Devíamos ser uma dupla de DJs.” E eu “está bem”, só para experimentar. De repente, tornou-se a minha paixão. Adoro tocar. É mais uma forma de chegar às pessoas e de comunicar, através da música. Foi um bocado isso – fui experimentando.
És sempre bem recebido?
Nem sempre corre bem, mas sou sempre bem recebido. Às vezes a música para. Já aconteceram coisas… interessantes.
se queres que seja DJ na tua festa, contacta: joaofjcardoso@gmail.com
E onde gostas mais de tocar?
Adoro Lisboa — é a minha cidade do coração. Mas sempre que saio de Lisboa, as pessoas são tão mais fervorosas, têm mais energia, dão mais amor. Nós aqui estamos mais habituados a ter tudo, e lá, como não sou de lá [fora da capital], as pessoas dão-me mais amor. Sinto mesmo isso.
“Voltou um bocado a moda das pessoas procurarem alguém com quem se relacionam e que sintam que é como elas”
Qual foi o melhor elogio que já recebeste?
Ui… O melhor elogio… Sempre que recebo mensagens de pessoas a dizer que estão a passar por maus bocados na vida e que aquele vídeo que publiquei foi a primeira vez que riram hoje, ou a primeira vez que não se sentiram miseráveis nesse dia. Para mim é incrível. É incrível perceber que podemos ter esse impacto real nas pessoas.
Tu sentes que isso acontece pelo facto de partilhares tanto de ti nos teus vídeos?
Eu acho que sim. É por ser vulnerável, não esconder que também já tive depressão e que já passei por momentos mais difíceis. Acho que as pessoas procuram mais influencers assim hoje em dia. Durante uns tempos esteve ali meio naquela coisa mais estética, mais profissional, mas agora acho que voltou um bocado a moda das pessoas procurarem alguém com quem se relacionam e que sintam que é como elas.
Para além do novo podcast que é um grande marco para ti, o que te deixa mais orgulhoso na tua carreira até agora?
Acho que uma coisa que amo é nunca mudei. Nunca tive de mudar. O mundo — o país, neste caso — teve de se adaptar a mim. Tenho orgulho em continuar a ser quem sempre fui, em não ter de mudar e a conseguir chegar aos sítios que sempre sonhei, sendo eu próprio.
Isto também é ótimo para quem está a ler… Perceber que às vezes o problema não é propriamente nosso – só há novas portas para abrir e somos nós que as temos de abrir.
Fico feliz por nunca ter desistido. Dou uma palmadinha nas minhas costas a mim mesmo, porque podia ter desistido várias vezes. A regra é ficar pelo caminho quando fazes isto há tanto tempo como eu faço. São 15 anos já. Tenho orgulho de nunca ter desistido – e de nunca ter mudado.