José Sena Goulão / LUSA

Debate particularmente sensível, com (ainda) mais ofensas no Parlamento. Transcrição confirma versão de Rita Matias.
A sessão na Assembleia da República que originou a proibição de burcas em espaços públicos foi particularmente “quente”, com mais trocas de palavras – ou ofensas – do que o habitual.
Muitos apartes não são “apanhados” por quem está a assistir, ou nas galerias de São Bento, ou por quem está a ouvir na rádio ou a ver na televisão.
Mas o Parlamento tem um serviço que capta e transcreve muitos momentos que o espectador normal não capta: o Diário da Assembleia da República.
Nessas transcrições – muito bem reunidas por Sara Barros Leitão na peça Guião para um país possível – há frases que nem o próprio presidente da Assembleia da República ouve no momento.
A reunião plenária sobre as burcas (e não só) realizou-se a 17 de Outubro. Como é habitual, a transcrição foi publicada vários dias mais tarde, apenas na semana passada.
Ainda antes do tema “quente” da burca, quando se falava sobre os direitos e o bem-estar dos idosos, Rui Livre acusou o PSD de impedir a carta do Livre sobre os direitos de cidadania sénior.
“Chegou a acontecer o PSD inviabilizar e o Governo, logo a seguir, apresentar o Estatuto do Idoso, a partir do Governo! O que nos parece que é um bocadinho aquele tipo de…”
Sendo interrompido por protestos de Hugo Soares, deputado do PSD, reagiu: “Ouçam, somos todos adultos, toda a gente faz política, toda a gente conhece estas coisas, não vale a pena o senhor deputado Hugo Soares, agora, estar aí a rasgar as vestes”.
O líder parlamentar do PSD reagiu: “Até tiro a roupa!”.
Mais à frente, e agora sim sobre as burcas, quando a presidente da Mesa via que ninguém estava inscrito para falar depois do CDS, Rita Matias (Chega) atirou: “São coniventes com o fascismo islâmico!”.
Andreia Galvão (Bloco de Esquerda) inscreveu-se para dizer que o projecto-de-lei do Chega sobre o fim das burcas, e citando a Ordem dos Advogados, “não é neutro, tem como alvo uma comunidade religiosa, por isso, viola o princípio constitucional da liberdade, consciência e religião”.
Rita Matias, de novo: “Dos cristãos não falam vocês!”.
A esta altura, o ambiente já tinha aquecido. Andreia Galvão: “Num país livre, o Estado não deve impor modos de vida, não; deve proteger o direito de cada pessoa de se vestir à sua maneira. Senhoras e senhores deputados, o princípio é este: viver e deixar viver”.
Rita Matias: “Que vergonha! Têm de defender os maridos islâmicos!”.
Mariana Leitão (Iniciativa Liberal) também protestou: “São tratadas como lixo!”.
Perante os protestos de Eurico Brilhante Dias (PS, sem transcrição), Rita Matias disse: “Um machista a falar!”.
Rui Rocha (IL), pouco depois: “As religiões não são todas iguais, as civilizações não são todas iguais, as sociedades não são todas iguais. A nossa foi construída sobre séculos de história, sacrifícios e martírios; a nossa foi também construída sobre o ombro de gigantes. Fechar os olhos à burca significaria não estar à altura da dimensão desses gigantes”.
“A nossa é melhor!”, apontou Pedro Frazão, do Chega.
Rui Rocha continua a falar: “Há quem diga que esta discussão não é relevante, porque em Portugal poucas mulheres usam burca. Estão errados!”.
Rita Matias, outra vez: “Há demasiadas!”.
Quando o deputado da IL deixou de falar, mais uma vez, a Mesa não tinha inscrições. Mais uma vez, Rita Matias falou: “Feministas de pacotilha! Quem cala, consente! São coniventes!”.
Mas Rui Tavares inscreveu-se e, num discurso constantemente interrompido por Chega e CDS, a certa altura, comentou: “Ouçam o discurso, não estejam a adivinhar! A direita agora arranjou uma mania de que nunca foi hipócrita: nem no casamento gay, nem na igreja católica, nem nos abusos sexuais! E acha que adivinha o que é que a esquerda vai dizer. Esperem! A esquerda fala, não precisa que vocês adivinhem. Não vou gastar um segundo…”
Pedro Pinto (Chega) interrompe para gritar: “Tira a mão do bolso!”.
Tudo isto segundos antes do famoso episódio de se poder ou não dizer “gajo” na Assembleia da República – mas essa palavra dita por Rui Tavares e o debate seguinte foi bem perceptível na sala.
Ainda na disputa com Rui Tavares, quando o deputado do Livre alegava que o projecto-de-lei em causa está “mal feito, porque é uma armadilha” e porque “o que toda a gente quer não é discutir a sério este tema, mas apresentar uma coisa mal feita, para que haja quem vote contra, para depois irem para os plateaus de televisão dizer que as pessoas votaram contra”.
“E eu”, continuou Rui Tavares, “para o peditório de um político e de um partido viciado em atenção…” – protestos do Chega, aqui – “…não dou nem mais um minuto. É o meu discurso mais curto nesta casa! Entretenham-se!”.
Pedro Frazão reagiu: “Vai para o Afeganistão!”.
Esta transcrição também confirma a versão de Rita Matias sobre a polémica frase “Ainda bem que não foi abortada”. A transcrição mostra que, durante os aplausos à aprovação do fim das burcas em espaços públicos, Filipa Pinto (Livre) disse: “Falamos quando for o aborto!”. Rita Matias ouviu e respondeu: “Ainda bem que não te abortaram, Filipa!”.
Tudo com microfone desligado.
Nuno Teixeira da Silva, ZAP //