Mas acima de tudo, vale a pena recordar que se houve “facilidades”, chamemos-lhe assim, entre 1985 e 1995, também as houve depois. Cavaco Silva tem lembrado que a quantidade de fundos europeus postos à disposição do país durante a sua década de governo é comparável à quantidade posta à disposição do país na década seguinte. É verdade que o mundo se tornou mais exigente depois de 1995, com a intensificação da chamada globalização. Mas muitas condições em Portugal melhoraram, em grande medida graças à governação de Cavaco Silva, como o acesso ao crédito, a qualificação da mão-de-obra e as infraestruturas de transportes e comunicações.
No entanto, depois de 1995, a economia não cresceu como crescera nos dez anos anteriores. A meta de convergência com a Europa distanciou-se. No princípio do século XXI, Portugal foi ultrapassado nos rankings europeus por vários países muito mais pobres, mas que souberam aproveitar melhor o contexto da União Europeia. Algum factor fez diferença nesses países, e muito provavelmente foram políticas de abertura, de liberalização e de modernização. De mesma maneira, algum factor terá feito muita diferença em Portugal entre 1985 e 1995, e muito provavelmente a orientação e o trabalho dos governos de Cavaco Silva terão sido esse factor. Sem a orientação reformista desses governos, sem a revisão constitucional de 1989, sem os novos direitos e garantias consagrados na lei, sem a estabilidade fiscal e monetária, sem a atitude favorável ao trabalho e ao investimento, sem as liberalizações e as privatizações, nada teria sido como foi. A governação de Cavaco Silva não transformou o mundo. Mas transformou muitas coisas nesse mundo. Sem essas transformações, os tempos não teriam sido tão bons.
Há, entre os anti-cavaquistas, quem reconheça que não terá sido apenas “sorte”. Mas para sugerir logo a seguir que não teria havido mais do que “habilidade” e “gestão”, no notório sentido que recentemente “habilidade” e “gestão” adquiriram em Portugal: uma governação à vista, que teria feito obras, mas ocasionais, realizado reformas, mas parcelares, tudo sem uma visão geral e sem grande ousadia, seguindo o ar do tempo e os encontrões do momento. Mais uma vez, pressupõe-se que o governo de Cavaco Silva teria feito apenas o que qualquer outro governo, nas mesmas circunstâncias, teria feito, na medida em que todas as suas opções seriam meramente circunstanciais e desgarradas.
Como seria de esperar, não é assim que Cavaco Silva vê a sua própria governação. Ao falar das 13 grandes reformas do seu tempo de primeiro-ministro, no livro As Reformas da Década (1995) ou das suas 13 grandes obras, no livro Uma Experiência de Social Democracia Moderna (2020), Cavaco Silva explica todas e cada uma delas em função de uma visão, que definiu neste último livro como “uma experiência de social-democracia moderna”.
“Social-democracia” refere aqui a visão do Partido Social-Democrata, definida entre outros pelo seu fundador e líder, Francisco Sá Carneiro. Num Portugal pós-revolucionário, sob hegemonia cultural das esquerdas, a “social-democracia” (então rejeitada pelo Partido Socialista) foi a forma política possível que tomou uma orientação a que, nos países anglo-saxónicos, menos constrangidos pelo esquerdismo, se teria chamado “liberal-conservadora”. Não por acaso, a intransigente Margaret Thatcher ficou, nos conselhos europeus, com uma muito boa impressão do primeiro-ministro português. Podemos resumir a “social democracia” de Cavaco Silva em três pontos principais: primeiro, que o bem-estar e a “justiça social” (igualdade) são a grande prioridade política; segundo, que o bem estar e a justiça social dependem de uma economia em crescimento; terceiro, que o crescimento da economia só pode ser alcançado por empresários, trabalhadores e investidores a actuarem num mercado livre e aberto, com regras claras, num quadro de estabilidade legal e fiscal e dispondo das qualificações e das infra-estruturas mais modernas.