Galeria Distribuidora / DivulgaçãoShirley Cruz protagoniza “A Melhor Mãe do Mundo” (2025), filme escrito e dirigido por Anna Muylaert.Galeria Distribuidora / Divulgação

A Netflix adicionou na quarta-feira (5) ao seu menu o novo filme de uma das principais cineastas brasileiras. Top 4 da plataforma de streaming neste sábado (8), A Melhor Mãe do Mundo (2025) é o oitavo longa-metragem da diretora e roteirista paulista Anna Muylaert, 61 anos, autora de Durval Discos (2002), ganhador de sete Kikitos no Festival de Gramado, de É Proibido Fumar (2009), vencedor de oito Candangos no Festival de Brasília, e de Que Horas Ela Volta? (2015), premiado em Berlim e em Sundance.

A Melhor Mãe do Mundo também já conquistou prêmios, como os de melhor atriz (Shirley Cruz), melhor roteiro (da própria Anna Muylaert) e melhor fotografia (Lílis Soares) no Festival de Guadalajara, no México, e os cinco Calungas no Festival Cine PE, em Recife: melhor filme, atriz, atriz coadjuvante (Rejane Faria), roteiro e edição (Fernando Stutz).

A trama é ambientada em São Paulo, onde Shirley Cruz — que atuou no longa anterior da cineasta, O Clube das Mulheres de Negócios (2024) — interpreta Gal, uma catadora de materiais recicláveis

Galeria Distribuidora / DivulgaçãoJoão Victor (vivido por Beni Ayo) e Rihanna (personagem de Rihanna Barbosa) em “A Melhor Mãe do Mundo”.Galeria Distribuidora / Divulgação

As cenas que mostram a rotina da protagonista ilustram uma declaração dada por Anna à coluna em novembro de 2023, ao falar sobre os desafios das diretoras na indústria cinematográfica: “O dinheiro prefere os homens”. Nessa sequência de A Melhor Mãe do Mundo, só se vê mulheres trabalhando — na coleta do lixo, na separação, na pesagem etc. —, mas a grana aparece em mãos masculinas. Por outro lado, são apenas as personagens femininas que ajudam e acolhem sem segundas intenções.

Gal está presa a um relacionamento abusivo com Leandro, papel de Seu Jorge, que trai, humilha, rouba, agride. Um dia, ela resolve dar uma basta na violência doméstica. Enquanto o companheiro toma banho, pega às escondidas seus dois filhos, a pré-adolescente Rihanna (a promissora Rihanna Barbosa) e o guri João Victor (o carismático Benin Ayo), ambos frutos de outra relação, coloca-os no carrinho de reciclagem que usa para coletar lixo nas ruas da cidade e foge. 

Galeria Distribuidora / DivulgaçãoProtagonista de “A Melhor Mãe do Mundo” faz da vida na rua uma aventura para os filhos.Galeria Distribuidora / Divulgação

Às crianças, porém, Gal conta que eles estão vivendo uma aventura. Os perigos da falta de moradia e os desafios da falta de dinheiro são edulcorados pela mãe à la A Vida É Bela (1998), o oscarizado filme italiano dirigido e estrelado por Roberto Benigni em que um pai judeu lança mão da fantasia para esconder do filho pequeno os horrores de um campo de concentração nazista. Enquanto acomoda Rihanna e João Victor no carrinho estacionado em uma praça pública, Gal diz:

— A gente não vai dormir aqui, a gente vai acampar!

Em outro momento, ela se permite uma ironia:

— Vive querendo jantar biscoito, agora que te dou tu reclama?

GLEESON PAULINO / DivulgaçãoAnna Muylaert, 61 anos, diretora e roteirista do filme “A Melhor Mãe do Mundo”.GLEESON PAULINO / Divulgação

Em entrevista à jornalista Lou Cardoso publicada em GZH, Anna Muylaert afirmou que a referência a A Vida É Bela está ancorada na vivência das carroceiras e das recicladoras, conforme observou em suas pesquisas para escrever o roteiro:

— Essa história é muito comum: criar uma realidade paralela para lidar com essas situações de fuga e relacionamentos violentos. Uma das meninas que eu conheci fugiu para a Bahia com quatro filhos, dizendo que era uma aventura e tal. 

Na mesma entrevista, a cineasta contou que há um tanto de si própria em Gal. Quando tinha 50 anos, Anna também viveu, sem perceber, uma relação abusiva. Ao choque da descoberta, somaram-se a dor, a vergonha e a reflexão que acabou originando A Melhor Mãe do Mundo:

— Tem uma fala do Paul Schrader, o roteirista de Taxi Driver (1976), que diz: “Se você quer fazer um filme vivo, tem que botar o seu machucado em cima da mesa. Mas aí escolhe um personagem que seja o mais longe possível de você, para que não seja autobiográfico”. Então, você parte de um machucado que é seu, tudo ali você conhece e precisa falar, mas, ao mesmo tempo, a forma não tem nada a ver com você.

Galeria Distribuidora / DivulgaçãoLeandro (papel de Seu Jorge) e Gal (Shirley Cruz) em cena de “A Melhor Mãe do Mundo”.Galeria Distribuidora / Divulgação

Anna Muylaert fez um filme tão doloroso quanto bonito, tão aflitivo quanto afetuoso. 

Shirley Cruz tem um desempenho extraordinário, equilibrando a mulher “quebrada” com a mulher altiva, a tristeza com a esperança, o medo com a coragem, o reconhecimento de que Leandro faz mal a ela com o restinho do que sobrou da paixão. Quando o personagem de Seu Jorge surge de surpresa em um churrasco, a comemoração na casa da prima de Gal, Valdete (a cantora Luedji Luna), vira um velório. Sua voz não é de carinho: é de comando.

O filme conta com pelo menos uma cena lindíssima, que tem potência e significados sob sua aparente simplicidade. É o momento em que, sem a menor pressa, a câmera acompanha Gal, de corpo inteiro, tomando banho no chuveiro de uma ocupação.

E também é arrepiante o emprego, na trilha sonora, de Maria, Maria (1978), canção composta por Milton Nascimento e Fernando Brant (1946-2015) sobre uma mulher que vivia à beira dos trilhos do trem e cuidava dos filhos sozinha. Gal e todas as mães que enfrentam agruras diárias e não raro sofrem caladas são mulheres que merecem viver e amar, como outra qualquer do planeta. Ela ri quando deve chorar, tem força, tem raça e tem gana sempre. Mistura a dor e a alegria, tem manha, tem sonho e a estranha mania de ter fé na vida.

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