ENTREVISTA || Ruy Teixeira é implacável e não pede desculpas. Filho de pai português e mãe americana, autor da newsletter The Liberal Patriot e colunista em jornais como o Washington Post, o cientista político deu uma longa entrevista à CNN Portugal sobre o passado, o presente e o futuro dos democratas, um partido a que chama seu e que, considera, perdeu completamente o rumo nesta era de populismos e extremismos
John B. Judis e Ruy Teixeira erraram nalgumas previsões feitas num livro publicado em 2002 que rapidamente se tornou numa espécie de bíblia para o Partido Democrata no arranque do século XXI. Até à eleição de Barack Obama em 2008, as previsões que faziam em “A Maioria Democrática Emergente” (numa tradução livre) pareceram comprovar-se: a ideia de que o destino demográfico dos EUA pertencia aos democratas, por via de uma coligação de esquerda formada por minorias, jovens, mulheres e profissionais liberais. Mas o cenário mudou em 2016, com a chegada inesperada de Donald Trump à Casa Branca.
No seu livro mais recente, Judis e Teixeira assumem que estavam errados e são duros, por vezes controversos, na leitura que fazem dos falhanços de um partido que chamam seu, apontando os dois culpados que estão a prejudicar o potencial do Partido Democrata a médio e longo prazo: as políticas neoliberais pró-Wall Street e pró-Silicon Valley adotadas por Bill Clinton, Obama e outros líderes da elite democrata, e o que chamam de “radicalismo cultural” do movimento progressista, na forma do que apelidam de “partido-sombra”, que está a alienar os eleitores da classe trabalhadora em questões como a raça, a imigração, os direitos das pessoas transgénero e as alterações climáticas.
“Os democratas precisam de se olhar ao espelho e examinar até que ponto os seus próprios fracassos contribuíram para o surgimento das tendências mais tóxicas da direita”, apontam na introdução do livro, lançado um ano antes da reeleição de Trump e baseado em dados demográficos, estudos e sondagens das duas últimas décadas. “Não previmos até que ponto os democratas iriam enfraquecer a sua própria mensagem”, adianta Ruy Teixeira nesta entrevista.
O novo mandato de Trump está a ser “muito mais agressivo” e isso “cria oportunidades e perigos para os democratas”, defende o lusodescendente – “o problema é que os democratas estão a substituir qualquer tipo de reforma do partido pelo antitrumpismo”.
Quando o último livro foi lançado, Teixeira dizia ao New York Times: “Há algumas pessoas que acham que eu perdi completamente a cabeça, mas sinto que estamos a fazer algum progresso.” Um ano depois, soa menos otimista na conversa com a CNN Portugal. “Os democratas estão a ter dificuldade em entender as coisas porque eles são o sistema e as pessoas acham que o sistema não funciona.”
Sobre o “fenómeno Mamdani”, o jovem imigrante muçulmano que acaba de vencer as autárquicas de Nova Iorque, Teixeira afasta a hipótese de representar um caminho a seguir pelo Partido Democrata a nível nacional. “O facto de Mamdani ganhar não significa que seja uma fórmula vencedora para o país como um todo.”
Cientista político e autor da newsletter The Liberal Patriot, Ruy Teixeira é filho de um militar português que emigrou para os EUA durante a II Guerra Mundial, onde viria a ser diretor do gabinete de imprensa da embaixada de Portugal em Washington DC. Intelectual importante em muitas das instituições de prestígio da esquerda norte-americana (The New Republic, Center for American Progress e Brookings Institution), Teixeira tem, com John B. Judis, sido muito criticado por alguns dentro do partido a que chamam seu desde a publicação do seu mais recente livro. “Quando lançámos o livro em novembro de 2023, um ano antes das eleições, recebemos muita resistência das pessoas. Diziam-nos ‘Como podem dizer isto? Os democratas estão a safar-se bem!'” foto AEI
Há mais de 20 anos, publicaram um livro, The Emerging Democratic Majority, sobre como as mudanças demográficas em curso nos EUA iam favorecer o Partido Democrata. A previsão provou-se errada, o que nos leva a este livro mais recente, Where Have All The Democrats Gone? – The Soul of the Party in the Age of Extremes. Ao lê-lo, dei por mim a questionar até que ponto é que os EUA continuam a estar divididos entre uma classe profissional em expansão concentrada nos grandes centros urbanos e uma classe trabalhadora que vive nas cidades mais pequenas. Até que ponto é que esta fórmula de colarinho branco vs. colarinho azul ainda se aplica, dado o quanto os Estados Unidos mudaram demograficamente desde a viragem do século?
Quando escrevemos “The Emerging Democratic Majority” no início dos anos 2000, estávamos a olhar para algumas dessas mudanças demográficas, ideológicas e económicas, e a analisar como é que isso iria ajudar os democratas, senão para sempre, pelo menos durante uns tempos. E penso que elas ajudaram de facto o partido por um período. O problema foi que havia outras coisas a acontecer no país que, basicamente, foram reduzindo essa vantagem demográfica ao longo do tempo.
Que tipo de coisas?
Uma coisa em que nos focámos no [primeiro] livro foi o grupo de eleitores da classe trabalhadora, particularmente os eleitores brancos da classe trabalhadora. Os democratas vinham a perder terreno entre eles há muito tempo e, se isso piorasse, então, matematicamente, a sua coligação ficaria enfraquecida. Então achámos que isso era um problema. E isso está intimamente relacionado com outra coisa que referiste, que é a questão da América rural e das pequenas cidades vs. a América urbana e urbanizada, que acabou por se tornar num grande problema ao longo do tempo.
Essa divisão acentuou-se?
A diferença que surgiu entre os eleitores da classe profissional, que agora se voltavam ainda mais para os democratas, e os eleitores da classe trabalhadora média, incluindo um número crescente de não-brancos, ficou ainda maior. Isto é uma forma resumida de falar sobre o assunto: os democratas, no início do século XXI, tinham uma vantagem emergente que poderia levá-los à maioria, e temporariamente isso aconteceu, mas houve outras mudanças que basicamente os enfraqueceram. E agora, digamos, ninguém tem vantagem.
Essa é uma das teses do nosso último livro: os democratas não têm necessariamente uma coligação maioritária nem uma mensagem maioritária, mas os republicanos também não têm. Estamos neste estranho equilíbrio de vai-e-vem entre os partidos, e parece que isso vai continuar em 2025 e 2026, eu diria. É esta a nossa avaliação da situação.
Depois também há coisas que não previmos quando escrevemos o primeiro livro. Não previmos, por exemplo, até que ponto os democratas iriam, de certa forma, enfraquecer a sua própria mensagem ao tornarem-se muito mais radicais.
“Vê o que aconteceu com Joe Biden. Acho que ele foi eleito com bastante solidez e tinha o vento a seu favor. Prometeu devolver o país à normalidade, mas não o fez. E as pessoas cansaram-se dele muito rapidamente. Portanto, apenas ganhar uma eleição não é suficiente. É preciso governar de uma forma que seja consistente com algumas das ideias e princípios de que os democratas parecem ter-se esquecido, como governar bem, governar com eficiência, não estar à frente do eleitor mediano, não estar culturalmente desligado da realidade e, acima de tudo, pura e simplesmente focar-se em melhorar a vida das pessoas.” foto Shawn Thew/EPA
Isso toca noutra questão que abordam neste último livro: argumentam que o Partido Democrata, mais do que esquecer a classe trabalhadora, alienou essa classe trabalhadora, certo?
Sim, é isso mesmo. Eles assumiram todo o tipo de posições que estão completamente fora do alcance desses eleitores, em questões como imigração, questões raciais, questões de ideologia de género e, cada vez mais no século XXI, em questões climáticas, elevando a questão do combate às alterações climáticas acima de quase todas as outras questões relacionadas com a economia.
Tudo isto não só não atraiu os eleitores da classe trabalhadora como os repeliu ativamente. E não repeliu apenas os eleitores brancos da classe trabalhadora, mas também os eleitores não-brancos da classe trabalhadora. Isso está relacionado com a nossa tese original e com a forma como ela foi, de certa forma, sobreinterpretrada por muitos democratas. Era algo como “Bem, os não brancos, negros, latinos, asiáticos, etc, vão sempre estar do nosso lado e são todos iguais, classe trabalhadora, classe profissional, liberais, moderados, conservadores…”
Quando os dados mostram que nenhum grupo étnico ou racial é monolítico…
Sim, mas os democratas acharam “nós temo-los a todos do nosso lado, são uma base confiável para nós e, portanto, à medida que isto cresce, só vai trazer-nos coisas boas”. Isso acabou por não ser verdade, porque os eleitores não-brancos da classe trabalhadora moderados a conservadores são, na verdade, bastante hostis a algumas das posições atuais dos democratas. E, ao longo do tempo, começaram a votar mais pela sua ideologia do que por identificação partidária, mais por ideologia do que pela sua cor da pele. Os democratas não estavam preparados para isto. Não anteciparam isto. Eu tentei avisá-los [risos], mas eles não prestaram atenção.
Tenho alguma curiosidade em saber como seria o capítulo final do vosso livro se o tivessem publicado depois das eleições presidenciais de 2024 e não um ano antes delas. A dado momento, o Ruy e o John referem, falando do primeiro mandato de Donald Trump, que ele “provou ser muito mais competente enquanto candidato do que enquanto presidente”. Em pleno Trump 2.0, como é que este mandato se compara com o primeiro e como é que isso pode servir para orientar a estratégia do Partido Democrata daqui para a frente?
Na verdade, nós sugerimos lançar uma edição de capa mole do livro com um posfácio que tivesse em conta os resultados das eleições de 2024, mas a editora não quis fazer isso. Caso tivéssemos escrito o livro logo após as eleições, acho que teríamos interpretado muito do que aconteceu como uma simples confirmação de muitas das vulnerabilidades que considerávamos que os democratas tinham entre esses grupos demográficos específicos, porque praticamente de A a Z tudo se alinhava com o que estávamos a argumentar.
Trump tem sido muito mais agressivo do que foi no seu primeiro mandato e isso cria oportunidades e perigos para os democratas”
Quando lançámos o livro em novembro de 2023, um ano antes das eleições, recebemos muita resistência das pessoas. Diziam-nos “Como podem dizer isto? Os democratas estão a safar-se bem, vejam as eleições intercalares de 2022, nas quais superaram as expectativas, para além de terem ganhado o voto popular em sete das oito eleições anteriores. Porque é que estão tão preocupados? As coisas estão ótimas! Estamos à beira de um grande avanço.” Ao que nós respondemos: “Não, não achamos que isso seja verdade. Olhem para os dados do nosso livro. Vejam todas as formas através das quais os democratas estão, na verdade, a perder o rumo em termos de apelo aos eleitores da classe trabalhadora.”
Portanto, no fundo, seria um capítulo ou um posfácio a dizer “tínhamos razão e vocês não”?
Sim, acho que sim. Quero dizer, se estivéssemos a escrever agora, quando levamos já dez meses de administração Trump, provavelmente também falaríamos sobre como os democratas reagiram a isso, como Trump tem sido muito mais agressivo no governo do que foi no seu primeiro mandato, e como isso cria oportunidades e perigos para os democratas.
Que oportunidades e que perigos?
Oportunidades porque ele está a estragar algumas coisas. Perigos porque basicamente os democratas fizeram o que eu, infelizmente, teria previsto que fariam, que é basicamente opor-se de forma incondicional a tudo o que Trump faz ou diz e, basicamente, defender ou pelo menos não falar sobre todas as posições anteriores que realmente os afastaram dos eleitores da classe trabalhadora.
Por outras palavras, estão a substituir qualquer tipo de reforma da imagem do partido pelo antitrumpismo, e acho que isso é um problema. E acho que estamos a ver isso hoje, e provavelmente veremos isso até 2026, é esse o meu palpite. Se acompanhas a política americana, sabes que há um grande debate dentro do Partido Democrata sobre como devem responder à situação. Devem tornar-se mais progressistas? Devem tornar-se mais moderados? Devem concentrar-se em denunciar Trump como fascista? Ou devem tentar chegar aos eleitores que votaram em Trump, ou pelo menos considerar fazê-lo?
“Obama candidatou-se contra Washington, mas enquanto Presidente, tornou-se refém dos seus círculos internos”, escrevem Teixeira e John B. Judis no seu mais recente livro. foto Getty Images
Nada está resolvido neste momento. Achei mesmo que, no rescaldo das eleições, haveria uma reformulação mais profunda do pensamento democrata sobre estas coisas. Mas acho que há muita resistência a isso. Muita gente não quer mudança. Muitos grupos dentro do partido, muitos doadores, muitos grupos da sociedade civil, muitas organizações não-governamentais…
Aquilo a que, no livro, chamam de partido-sombra?
Exato. O partido-sombra não mudou assim tanto. E olha para isto como “sim, até pode ser verdade que algumas destas posições não são populares, entendemos isso, mas talvez não queiramos falar muito sobre isso e não vamos mudar a nossa posição; em vez disso, vamos falar muito sobre o custo de vida e questões semelhantes”. O exemplo número 1 disso foi a corrida para governador de Nova Jérsia, até certo ponto, e também, claro, a corrida para autarca de Nova Iorque.
No livro cita uma combinação de “economia neoliberal e liberalismo social que alienou os eleitores da classe trabalhadora” como a raiz do declínio moderno do Partido Democrata e, mais adiante, sublinha que “infelizmente a lição de 2012 perdeu-se entre muitos democratas” – a lição sendo a fórmula de sucesso usada por Barack Obama nesse ano, baseada numa “política populista que posicionava os democratas como o partido das ‘vítimas inocentes’ de um ‘punhado de gananciosos’”, que poderia ajudar a reconquistar muitos desses eleitores da classe trabalhadora. Neste contexto, acha que a plataforma de acessibilidade de Zohran Mamdani em Nova Iorque serve como exemplo local do que o partido deveria fazer a nível nacional? Porque a campanha dele foi muito focada na economia e no custo de vida, como o Ruy e o John argumentam no livro…
Não creio. Primeiro, ele não se moderou propriamente nas questões culturais, isso foi varrido para debaixo do tapete, mas, eventualmente, há de voltar a surgir. E está a candidatar-se numa área onde, francamente, é muito difícil que um democrata perca. Quero dizer, assim que ele conseguiu a nomeação nas primárias contra opositores imperfeitos, a estrada estava bastante aberta para se tornar o presidente da câmara.
Sendo Mamdani o candidato democrata, concorreu contra outro democrata, Andrew Cuomo, ainda que este tenha sido forçado a manter-se na corrida como independente…
Cuomo tem muitos defeitos. As pessoas estão fartas dele. Carrega demasiada bagagem. E Mamdani, por seu turno, teve a linhagem do Partido Democrata e uma grande campanha de organização popular atrás de si. Agora, o facto de ele ganhar não significa que seja uma fórmula vencedora para o país como um todo.
“Mamdani teve a linhagem do Partido Democrata e uma grande campanha de organização popular atrás de si. Agora, o facto de ele ganhar não significa que seja uma fórmula vencedora para o país como um todo.” foto Yuki Iwamura/AP
O que eu diria é que, se tudo o resto for igual, é verdade que assumir uma postura pelo menos um pouco populista em questões económicas e agir como quem se importa com o bem-estar económico das pessoas é melhor do que não dizer nada. É melhor do que falar sobre, digamos, alterações climáticas, mas provavelmente não é suficiente por si só. Digamos que é necessário, mas não suficiente.
Para uma grande quantidade de jovens eleitores, a campanha de Mamdani foi como erva para gatos”
Também diria que a maneira como ele fala sobre questões económicas é basicamente… Eu sei que isso é um pouco cliché neste momento, mas é como se fosse dar um monte de coisas de graça, sabes? Vamos ter autocarros gratuitos, comida gratuita, basicamente, não vamos tornar o teu apartamento gratuito, mas vamos controlar as rendas. É um tipo de política económica que é difícil enquanto presidente da câmara de Nova Iorque e que não me parece que seja muito promissora para um programa económico do partido a nível nacional.
Porquê?
Quero dizer, repara, 95% do que ele falou ele não pode fazer de qualquer maneira, porque é Albany [capital estatal] que controla as finanças do estado de Nova Iorque. Então, é tudo um pouco ilusório, é bastante retórico. Foi concebido para atrair a base liberal democrática de Nova Iorque, particularmente os eleitores profissionais mais jovens que tendem fortemente para o lado democrata.
Há o chamado corredor comunista na cidade de Nova Iorque que vai de Astoria, Queens, passando por Brooklyn até Sunset Park. Aí, há uma grande quantidade de jovens eleitores, profissionais de vários tipos, que estão a ter dificuldades em viver na cidade, porque é uma cidade incrivelmente cara, e que estão certamente abertos a este tipo de enfrentamento do sistema, do establishment democrata. E por isso adoraram esta campanha de Mamdani, foi como erva para gatos. Mas não acho que isso venha a provar-se uma fórmula muito eficaz, nem mesmo que seja uma fórmula muito eficaz para os Estados Unidos como um todo.
Só poderá resultar em Nova Iorque, é o que está a dizer?
Acho que pode funcionar na cidade de Nova Iorque. Mas se o que eu digo for verdade – e acho que é – sobre como é improvável que ele tenha sucesso no executivo, então será só mais um problema para os democratas, porque uma pessoa até pode ser eleita, mas uma vez eleita, tem realmente de fazer coisas de que as pessoas gostam e que melhorem as suas vidas e tem de ser visto como um sucesso. E acho que as hipóteses de Mamdani conseguir isso são muito pequenas.
Quer dizer, vê o que aconteceu com Joe Biden. Acho que ele foi eleito com bastante solidez e tinha o vento a seu favor. Prometeu devolver o país à normalidade, mas não o fez. E as pessoas cansaram-se dele muito rapidamente. Portanto, apenas ganhar uma eleição não é suficiente. É preciso governar de uma forma que seja consistente com algumas das ideias e princípios de que os democratas parecem ter-se esquecido, como governar bem, governar com eficiência, não estar à frente do eleitor mediano, não estar culturalmente desligado da realidade e, acima de tudo, pura e simplesmente focar-se em melhorar a vida das pessoas.
Se não fizer isso, tudo o resto desaparece. E portanto, sim, acho que podemos dizer que é bom Mamdani não estar a praticar a economia neoliberal – só que não praticar a economia neoliberal não é suficiente. Só porque se rejeita um paradigma não significa que aquilo que não se rejeita vai funcionar. Acho que isso será um desafio.
A revista The Atlantic publicou um artigo esta semana sobre como a política já não é local e como cada eleição nos EUA parece agora ser um referendo sobre Trump, sobre política nacional e até mesmo assuntos internacionais. Um ano após a eleição de Trump, muitos olham para estas eleições na tentativa de antecipar o que poderão significar para os EUA e, especificamente, para o Partido Democrata. Concorda que a política e as eleições já não são locais? E devemos fazer essa extrapolação, olhar para estas eleições locais como um prenúncio do que está para vir a nível federal?
A resposta curta a essa pergunta seria não. Acho realmente um exagero dizer que as eleições se tornaram completamente nacionalizadas. Acho que o que é verdade é que, com o tempo, a componente nacional das eleições locais aumentou, certo?
“Para neutralizar algumas destas questões culturais, os democratas podem literalmente ter de mudar a sua posição em certas questões, de certa forma tornar-se mais conservadores, mover-se para a direita em questões como a raça, a imigração e o clima. Têm literalmente de mudar a sua posição para que se aproxime mais da posição de Trump e do seu partido.” foto Kevin Dietsch/Getty Images
Em que sentido?
No sentido em que é mais difícil para os políticos fugirem da marca do seu partido, da imagem do partido ao qual estão filiados e das questões com as quais o seu partido está associado. Então, nesse sentido, sim, as eleições estão de certa forma nacionalizadas. Por outro lado, elas também são locais e refletem questões que importam numa determinada área.
É por isso que vai ser tão difícil, acho eu, para as pessoas interpretarem corretamente esta eleição, porque, só porque as coisas estão mais nacionalizadas do que costumavam ser, não significa que isso vai transformar áreas profundamente azuis como a cidade de Nova Iorque em áreas de direita. Não significa que [Abigail] Spanberger vai perder na [corrida a governadora da] Virgínia, certo?
Nota: Esta entrevista foi conduzida antes de se conhecerem os vencedores das eleições em Nova Iorque, Nova Jérsia e Virginia.
Se ela realmente ganhar por seis ou sete pontos, como dizem as sondagens, isso não é diferente do que Kamala Harris conseguiu em 2024. Já se ambos os estados, Nova Jérsia e Virgínia, excederem amplamente essa margem, acho que se pode tirar alguma conclusão disso, suponho. Contudo, acho que a eleição de Mamdani é completamente impossível de interpretar em termos de reação contra Trump ou como uma espécie de eleição nacional. É um reflexo das mudanças dentro do Partido Democrata, porque foi realmente disso que se tratou toda a eleição.
Se os democratas estivessem dispostos a partir a louça dentro do partido, isso contribuiria para lhes dar uma imagem mais antielitista”
Mamdani basicamente fez uma oferta ao eleitorado democrata nas primárias que ele estava disposto a ouvir. Mas o problema com os democratas não é que os democratas não apoiem os democratas. O problema são todos esses outros eleitores mais centristas que não os apoiam. O tipo de pessoas que comparecem às primárias democratas na cidade de Nova Iorque é muito diferente do tipo de eleitores que os democratas perderam em 2024 e com os quais precisam de se preocupar. E, portanto, não tenho a certeza de quanto se poderá deduzir dessas eleições além do que se pode deduzir, por exemplo, da taxa de aprovação de Trump.
Que está bastante baixa neste momento…
Ele não é popular, mas eu sabia disso, embora esteja à frente dos seus índices de popularidade no seu primeiro mandato, o que é interessante. Não há dúvidas de que há muito descontentamento com Trump por aí, mas não está nada claro que se possa interpretar estas eleições específicas como um referendo sobre Trump. Quero dizer, é um pouco mais plausível se começarmos a olhar para as eleições intercalares de 2026, certo? Aí teremos um sinal mais claro. Se houver uma reação ao governo em exercício, deverá haver uma grande penalização para os republicanos, porque o governo em exercício costuma ser sempre penalizado nas primeiras eleições intercalares após a eleição presidencial. Além disso, como observámos, Trump não é assim tão popular.
Após as presidenciais, ao discutir o dilema do Partido Democrata, um analista político ressaltava que aquilo que os democratas não parecem entender é que já não estamos numa batalha de direita vs. esquerda, que a dicotomia hoje é mais pró vs. antissistema, populismo vs. o que está estabelecido ou que é visto como tradicional. Se Trump é a grande figura antissistema do Partido Republicano, aquele que é mais orientado para a mudança, qual é a figura correspondente do outro lado? Existe alguma?
Acho que essa é uma forma justa de caracterizar a situação. Quero dizer, vivemos numa era populista. Vocês também o sabem em Portugal, as coisas também estão a mudar aí. A animosidade contra o establishment e as elites é enorme, particularmente entre os eleitores da classe trabalhadora, que estão cada vez menos interessados em apoiar apenas os partidos que costumavam apoiar ou políticas do sistema. E isso é realmente verdade nos EUA.
Essa é uma das razões pelas quais os democratas estão a ter tanta dificuldade em entender as coisas. Eles são o sistema. Eles dirigem a maioria das instituições dominantes na sociedade. O século XXI foi dominado pela ascensão dos democratas e por uma espécie de controlo dos pontos altos da produção cultural e, na verdade, apesar de tudo, eles também estão a sair-se muito bem nas eleições em certos estados, em certas áreas do país. E as pessoas acham que o sistema não funciona, acham que o establishment não funciona. Elas odeiam todas as elites. E os democratas são claramente mais identificados com isso do que os republicanos. É por isso que estão com dificuldades em entender: ‘OK, como saímos disto? Apenas atacando a oligarquia? Atacando os bilionários? Mas espera aí, as pessoas acham que nós somos a oligarquia.’ Talvez isso não funcione. Atacar os bilionários? J.B. Pritzker [governador democrata do Illinois] é um bilionário!
Quer dizer, está tudo uma confusão. É difícil para eles apresentarem-se como o partido populista antissistema quando, na mente do eleitor médio, eles são o sistema. Acho que isto é um grande problema. Agora, os progressistas, as pessoas à esquerda do partido, argumentam que vamos sair desta situação porque vamos ser ainda mais duros com os ricos. Vamos ser ainda mais populistas. Vamos ser ainda mais a favor dos mais desfavorecidos. Vamos falar mais sobre como somos a favor dos mais desfavorecidos.
“Acho que há motivos para nos preocuparmos com o facto de o candidato mais forte contra, digamos, J.D. Vance ou Marco Rubio [nas presidenciais de 2028] ser provavelmente alguém da ala mais moderada do Partido Democrata. Mas as hipóteses de alguém como Gavin Newsom (à direita na foto) ser o candidato, ou mesmo, Deus nos ajude, AOC [Alexandra Ocasio-Cortez], são bastante boas. Eles têm o vento a seu favor e são muito fortes dentro do Partido Democrata. Podem disputar o lugar nas primárias, mas acho que é muito cedo para dizer como é que tudo isto vai acabar.” foto Andres Kudacki/AP
E acho que, do lado mais moderado, a ideia é: ‘Bem, fomos um pouco longe demais em certas coisas e temos de voltar a falar sobre as, entre aspas, questões domésticas’. Só que não me parece claro que isso vá necessariamente mudar a imagem do partido na mente de muitos eleitores que os democratas perderam, porque, basicamente, essa abordagem tende a ofuscar o facto de que os democratas não mudaram realmente as suas posições em praticamente nada.
Acho que eles até chegam bem perto da linha, de perceber que precisam de ser realmente populistas e aceitar que talvez tenham de fazer algumas coisas de forma diferente, mas acabam a não ultrapassar essa linha porque é difícil para eles. É confortável dizer que nos preocupamos com o custo de vida. É um pouco mais difícil dizer ‘bom, na verdade, nós meio que estragamos tudo em relação à fronteira, têm razão, não devíamos ter fronteiras abertas, isso foi errado’ ou ‘o ICE está a ir longe demais, mas na verdade precisamos do ICE, as pessoas que entraram aqui ilegalmente podem ser deportadas e não devemos opor-nos a isso’.
Isto aplica-se a muitas das posições que os democratas assumiram no passado. Acho que tudo isso tem de ser corrigido e acho que, se os democratas estivessem dispostos a partir a louça dentro do Partido Democrata, por assim dizer, em muitas dessas questões, isso contribuiria de alguma forma para lhes dar uma imagem mais antielitista. Porque quem são as pessoas que não querem que os democratas mudem nenhuma dessas posições? São as elites. São o partido-sombra. São as ONGs, os académicos, as fundações. São as pessoas que apontam o dedo e dizem que não se deve pensar ou fazer certas coisas.
Acho que os democratas subestimam realmente a importância de fazer isto. Eles acham mesmo que basta que falemos o suficiente sobre o custo de vida para que isso resulte. E eu estou cético.
Portanto, o que argumenta é que focar as campanhas e as políticas apenas na economia não é suficiente para o Partido Democrata recuperar?
Absolutamente, não é suficiente.
Imagino que tenha visto este relatório recente chamado Deciding to Win, do grupo de centro-esquerda Welcome, com uma estratégia de cinco pontos para os democratas que ecoa muitos dos argumentos que o Ruy e o John apresentam. No vosso livro defendem que o partido precisa de encetar “reformas económicas que beneficiem a classe média e a classe trabalhadora, mas também declarar uma trégua e encontrar um meio-termo na atual guerra cultural com os republicanos”. Vivendo nesta era populista, e perante este mandato Trump ainda mais agressivo, quando falamos desta necessidade de moderação e de apontar ao centro – o que é que significa moderação hoje em dia? Isto é quase a pergunta para queijinho do Trivial Pursuit…
Acho que essa é a grande questão neste momento. Eu li o relatório, conheço muito bem o Simon Bazelon, o autor, e não tenho grandes problemas com a análise a não ser que anda ali na ponta dos pés, chega ali ao limite, chega até à linha, mas não a ultrapassa. E não responde realmente à questão da densidade do queijinho, que é basicamente aquilo que perguntas: como é que nos moderamos? O que é que significa encontrar um meio-termo entre os Trumpers da direita populista e onde estamos agora? É tudo um pouco vago, certo?
Quero dizer, pode ser que, para neutralizar algumas dessas questões culturais, os democratas tenham literalmente de mudar a sua posição em certas questões. Eles têm de se tornar, de certa forma, mais conservadores. Têm de se mover para a direita em questões como a raça, a imigração e o clima. Têm literalmente de mudar a sua posição para que ela se aproxime mais da posição de Trump e do seu partido. E não podem simplesmente dizer: ‘Bom, vamos permitir que algumas pessoas com posições um pouco diferentes da imagem do Partido Democrata nacional concorram a cargos estatais pelo nosso partido’. É preciso mudar os compromissos e as posições do partido em questões sobre as quais os eleitores acham que os democratas não têm a menor ideia.
Acho que esse é o problema e acho que a decisão de vencer não respondeu realmente a essa questão, e compreendo porque é que não o fizeram. Mas acho que essa é a questão sem resposta, a questão que ainda está em aberto e que os democratas vão ter dificuldade em abordar e responder de forma eficaz.
O partido afastar-se desses ideais culturais de esquerda, como diz, não vai alienar uma grande fatia dos eleitores tendencialmente democratas, sobretudo os mais jovens? Porque não acomodar? Seguir uma estratégia de ‘uma coisa e outra’ ao invés de ‘uma coisa em vez da outra’? Se o Partido Democrata de repente se tornar mais conservador, para onde vão os eleitores democratas que se posicionam mais à esquerda?
É uma questão de compromissos. Quantos eleitores mais vai o partido ganhar ao assumir posições relativamente conservadoras em questões polémicas, em comparação com quantas pessoas à esquerda do partido vai alienar? E qual será o resultado final?
Dias antes da conversa com Ruy Teixeira, Bill Gates proferiu uma “declaração surpreendente”, nas palavras da CNN Internacional, sobre as alterações climáticas: “Embora as alterações climáticas tenham consequências graves – especialmente para as pessoas nos países mais pobres –, elas não levarão ao fim da humanidade. Esta é uma oportunidade para nos concentrarmos novamente no indicador que deve ser ainda mais importante do que as emissões e as alterações de temperatura: melhorar a vida das pessoas. O nosso principal objetivo deve ser evitar o sofrimento, especialmente daqueles que vivem nas condições mais difíceis, nos países mais pobres do mundo.” A afirmação está em linha com o que Teixeira e Judis defendem no seu mais recente livro: “A perspetiva reformista dos anos Obama, que estava atenta às preocupações democráticas habituais sobre empregos e preços e às dificuldades práticas de uma transição dos combustíveis fósseis, ficou para trás.” foto Eraldo Peres/AP
Tem uma resposta?
A minha opinião é que o resultado final será positivo para os democratas, mas obviamente outras pessoas terão uma posição diferente. Parte da razão pela qual acho esse argumento muito pouco convincente é que se baseia na ideia de que, por exemplo, os eleitores que agora estão apaixonados pela ideologia de género e todas essas coisas em torno das questões trans e cuidados de afirmação de género, se os democratas assumirem uma posição diferente, eles vão, bem, vão fazer o quê? Não vão votar nos democratas e vão votar nos republicanos? Isso parece improvável. Votariam num terceiro partido? Não sei se os terceiros partidos alguma vez chegarão muito longe nos Estados Unidos…
Acho que o que as pessoas realmente temem é que essas pessoas simplesmente não votem, e há muitas evidências de vários estudos de que não é esse o caso. Não está provado que haja uma queda maciça [de votos] ou uma baixa participação quando os políticos assumem uma posição mais conservadora em algumas dessas questões. Essa é a ameaça, e lembra-te de onde vem a ameaça – vem do partido-sombra. Vem dessas ONGs e grupos semelhantes que basicamente dizem: ‘Se não concordarem com a nossa posição sobre X, seja sobre alterações climáticas, questões trans ou imigração, os nossos eleitores vão ficar em casa’. O que é que querem dizer com “os nossos eleitores”? Eles não são donos desses eleitores, simplesmente afirmam que são, dizem representar esses eleitores, quer sejam os eleitores latinos, os eleitores negros, quaisquer eleitores…
É tudo uma fachada, tudo treta, na minha opinião. É por isso que acho que a ameaça é muito sobrestimada em relação ao que aconteceria aos democratas se eles adotassem posições mais sensatas sobre algumas destas questões que os aproximariam do eleitor médio.
Sabendo que muito pode acontecer no espaço de um ano, o que diria que podemos esperar das intercalares de 2026?
Bom, em primeiro lugar, não creio que vamos ter uma onda azul [democrata]. Isso parece bastante claro, em parte porque a situação é diferente da de 2018 [na primeira ida às urnas após Trump ter sido eleito pela primeira vez], há menos lugares em jogo. Ainda assim, acho que os democratas provavelmente vão conseguir conquistar assentos suficientes para recuperar o controlo da Câmara dos Representantes. Se não o conseguirem, isso será um enorme sinal de alerta para os democratas, porque deveriam conseguir fazê-lo, faltam-lhes apenas alguns lugares para a maioria. E, mais uma vez, os padrões históricos sugerem que haverá pelo menos algumas perdas para o partido no poder nas eleições de 2026.
Ainda assim, acho que as suas hipóteses de reconquistar o Senado são muito reduzidas – se o fizerem, será interessante. Podem ganhar um ou dois lugares, mas basicamente o terreno do Senado em 2026, 2028 e mais adiante será super difícil para os democratas, porque eles são muito pouco competitivos em muitas áreas do país. E, ei, no que toca ao Senado, não importa o tamanho do estado, ou se é rural ou urbano, todos têm dois senadores – Wyoming tem dois senadores, assim como a Califórnia.
Se Trump tiver sido um desastre total e a sua taxa de aprovação for de 30%, provavelmente até AOC pode ser eleita” nas presidenciais de 2028
Esta é uma situação estrutural intrinsecamente muito difícil para os democratas, porque não há muito tempo os democratas costumavam ser eleitos em lugares como Dakota do Norte e Dakota do Sul, e até mesmo em lugares mais conservadores do que esses, no Nebraska, pelo amor de Deus! Portanto, sim, é um problema, porque quando não se tem o Senado, a capacidade de fazer coisas é muito limitada. A grande questão é 2028, porque [as presidenciais] vão decidir uma série de coisas. Mas quanto a 2026, antecipo que, basicamente, não vão resolver nada.
De alguma forma já aflorámos esta questão, mas quem vê como provável candidato democrata às presidenciais de 2028?
Acho que, neste momento, não fazemos ideia de quem será. É claro que todos querem ser presidente. E há pessoas a manobrar neste preciso momento, enquanto falamos, para serem presidente, desde Gavin Newsom a Josh Shapiro e outros.
Acho que há motivos para nos preocuparmos com o facto de o candidato mais forte contra, digamos, J.D. Vance ou Marco Rubio ser provavelmente alguém da ala mais moderada do partido. Mas as hipóteses de alguém como Gavin Newsom ser o candidato, ou mesmo, Deus nos ajude, AOC [Alexandra Ocasio-Cortez], são bastante boas, têm o vento a seu favor e são muito fortes dentro do Partido Democrata. Podem disputar o lugar nas primárias, mas acho que é muito cedo para dizer como é que tudo isto vai acabar.
Muito vai depender de como a administração Trump será vista quando 2028 chegar. Se tiver sido um desastre total e completo, e todos acreditarem nisso, e a taxa de aprovação de Trump for de 30%, provavelmente até a AOC poderia ser eleita. Por outro lado, se for mais competitivo, acho que os democratas terão muito trabalho a fazer.