Ana Carvalho baixa-se, pega em dois pedaços de terra, e estende as mãos para que possamos vê-los bem. A diferença é nítida: um é de um castanho muito escuro, o outro é castanho-claro, semelhante a barro. “O nosso solo era assim, dava para fazer pratos”, diz, com um sorriso. Paulo Carvalho, que é, com Ana, o fundador da Vivid Farms, onde nos encontramos, perto de Santarém, confirma: “É um solo muito argiloso, com muita pedra. Quando comprámos esta propriedade, há quatro anos, um engenheiro agrónomo disse-me ‘não queres ir fazer agricultura para outro lado?’.”

Eles não quiseram. Compraram os 20 hectares iniciais, aos quais acrescentaram agora mais 100 hectares, e estão a provar que as práticas da agricultura regenerativa conseguem transformar um solo pobre e desgastado num solo vivo e fértil. Mas não é fácil, avisam. O objectivo, optimista e ambicioso, é conseguir 0,5 % de aumento anual de matéria orgânica, e a boa notícia é que partiram de um solo inicial com apenas 1,5%, “um valor baixíssimo”, e em algumas partes do terreno já têm entre 3 e 4% de matéria orgânica.

Longe do Ribatejo, no Alentejo, perto do Alandroal e junto à fronteira com Espanha, outro casal, David e Anna de Brito, compraram uma primeira propriedade, a Granja, de 260 hectares e juntaram-lhe uma segunda, Santa Catarina, com mais 300, fundando o projecto Terramay.

“As pessoas falam em perfis de solo, em húmus e tudo o mais, e aquilo que nós encontrámos aqui, neste areal, é isto”, diz David, raspando com uma mão no chão e mostrando um punhado de terra branca, sequíssima. “Por mais que escavemos, o que vamos encontrar é pedra-mãe. E como o solo está constantemente exposto a temperaturas superiores a 35 graus Celsius, isto que vemos já não é solo, é pó, é poeira. Está morto.” Sobre a pedra deveriam existir várias camadas de solo, sendo a superior a mais rica em matéria orgânica e base para a produção de hortícolas, por exemplo.




Ana e Paulo Carvalho, fundaddores da Vivid Farms, perto de Santarém
Daniel Rocha

Camas elevadas e compostagem

Perante este cenário, para poderem cultivar, a primeira coisa que fizeram foram camas elevadas, indo buscar solo a outros lugares. “É preciso muita matéria orgânica”, sublinha David. “Da minha experiência diria que, na horticultura, são necessárias cerca de dez toneladas por hectare.” Depois, é preciso plantar árvores, que, ao crescerem, irão criar raízes cada vez mais fundas que ajudarão a descompactar o solo (o uso de maquinaria agrícola pesada é um dos grandes responsáveis pela compactação dos solos), permitindo que a água infiltre mais facilmente.

Para criar solo novo há uma série de técnicas que têm de ser aplicadas — tanto na Vivid Farms como na Terramay, uma das preocupações é cobri-lo com palha e outro tipo de coberto vegetal (restos de plantas) para o proteger. “Temperaturas acima de 35 graus Celsius vão matar toda a microbiologia”, lembra David. Cobrir o solo vai permitir baixar a temperatura e ter muito mais eficiência hídrica, dado que a humidade não evapora tão depressa.

Depois, existe a compostagem, feita com os restos de materiais orgânicos deixados a decompor. Na propriedade de Santarém, há uma pilha que, explica Paulo, é também uma forma de “tornar os problemas dos outros soluções para nós”, integrando, por exemplo, folhas do parque ribeirinho de Vila Nova da Barquinha, resíduos da poda da Câmara Municipal de Santarém, folhas dos lagares de azeite ou serraduras da indústria do carvão.

O objectivo é conseguir que este composto seja mais rico em carbono do que em azoto, porque é essa a necessidade dos solos aqui. “As bactérias estão mais associadas ao azoto e os fungos ao carbono, e o nosso solo é mais pobre em fungos.” Um solo saudável deve ter macronutrientes, que são o nitrogénio, o fósforo e o potássio, e uma série de micronutrientes, como o magnésio, o cálcio, o ferro ou o zinco. Todos eles vão alimentar as plantas e resultar em alimentos nutricionalmente mais ricos.




Anna e David de Brito, co-fundadores do projecto Terramay, no Alandroal, Alentejo
Rui Gaudêncio

Uma Só Saúde

Isto explica esta preocupação com a saúde dos solos, que está na origem da agricultura regenerativa e que colocou Paulo da Vivid Farms e David da Terramay na lista internacional dos Top 50 Farmers, um projecto baseado em Copenhaga (a par de dois outros agricultores portugueses, António Coelho da Horta da Malhadinha, no Alentejo, e João Valente do Monte Silveira, na Beira Baixa).

Ambos os casais acreditam convictamente que, quanto mais saudável está o solo, mais saudáveis serão os alimentos que dele nascem. E, sobretudo — um tema que vem ganhando uma importância cada vez maior nos debates sobre alimentação — com maior densidade nutricional. No dia em que visitamos a Vivid Farms, Paulo e Ana estão a receber um grupo de alunos da Escola Superior Agrária de Santarém, que vêm precisamente ouvir falar do conceito de Uma Só Saúde.

Paulo projecta imagens que mostram como a vida na Terra depende de duas camadas muito frágeis, a atmosfera e a camada fértil do solo, e como temos vindo a destruir ambas. Explica de que forma o planeta foi evoluindo até permitir o aparecimento de vida e como “a natureza levou milhões de anos a fixar nos solos o carbono que nós estamos a voltar a pôr na atmosfera.”

Perante o grupo de alunos atentos, alerta para o facto de termos “um ciclo da água e do carbono completamente desregulados”, a par de “uma crise de saúde global com doenças crónicas em massa”. Está tudo ligado, sublinha. E uma das grandes causas deste cenário trágico é o facto de “termos um sistema alimentar insustentável e destrutivo”.




Hortícolas cultivadas na Vivid Farms, que aposta na agricultura regenerativa
Daniel Rocha

A ligação entre solo e combate às alterações climáticas é simples de explicar: através da fotossíntese, as plantas capturam o CO2 da atmosfera, transferindo-o parcialmente para o solo através das raízes. Este carbono, armazenado sob a forma de matéria orgânica, restos de plantas, microrganismos, etc., não só torna o solo fértil como o torna mais capaz de reter água, e mais resistente aos fenómenos extremos como a seca e as chuvadas intensas, que estão a tornar-se mais frequentes.

Explorar solos até ao limite

O que a agricultura chamada “convencional” tem vindo a fazer ao longo das últimas décadas é explorar os solos até ao limite, não repondo a matéria orgânica que estes vão perdendo, o que obriga a alimentar as plantas a fertilizantes (na sua maioria com adição de compostos químicos) ao mesmo tempo que se combatem as pragas com pesticidas. O “milagre” daquela que ficou conhecida como Revolução Verde, nos anos 1970, fez com que se acreditasse que as plantas cresciam e produziam em grandes quantidades, independentemente da qualidade dos solos. E esta foi sendo crescentemente desvalorizada.

Agricultores como Paulo e Ana e David e Anna estão, muito pacientemente, a tentar reverter esse processo, aprendendo pelo caminho com os erros. As análises frequentes ao solo vão dando sinais muito positivos sobre a riqueza que se está a criar, mas cada solo é diferente — basta olhar para a terra argilosa da Vivid Farms e para a quase areia da Terramay — e tem necessidades específicas. Além disso, o simples uso do solo para a produção provoca libertação de carbono sob a forma de CO2 — cerca de 2,5% ao ano —, pelo que grande parte do esforço é apenas de reposição do que se vai perdendo.

Embora a situação em Portugal exija atenção, o estado dos solos é uma preocupação que existe à escala global. Um artigo sobre a relação entre a saúde dos solos, a segurança alimentar e o combate à crise climática, publicado na plataforma Carbon Brief, recorda que os cientistas descrevem actualmente um terço da terra agrícola do mundo (35% segundo a FAO, a agência das Nações Unidas para os alimentos) como “degradada”, tendo os solos do planeta perdido 133 mil milhões de toneladas de carbono desde o início da história da agricultura, há 12 mil anos. Se apontarmos o foco para a União Europeia, e de acordo com um relatório de 2024, são 61% dos solos agrícolas que se apresentam “degradados”.




Anna e David de Brito, fundadores do projecto Terramay, no Alentejo
Rui Gaudêncio

Voltar costas à monocultura

Um dos factores agravantes do estado dos solos é a predominância das monoculturas. De um ponto de vista económico, a especialização parece a escolha mais acertada para um agricultor, mas David e Anna escolheram o caminho mais difícil. “Mesmo para o escoamento dos produtos, esta diversidade é uma loucura”, reconhecem.

Há, contudo, outras vantagens na biodiversidade. Para garantir que ela existe, nunca plantam uma única variedade de árvores, há sempre uma diversidade em cada linha — alfarrobeiras com amendoeiras, romãzeiras com pessegueiros, amendoeiras com figueiras, ameixeiras com medronheiros, e, junto ao pomar, árvores que não dão fruto, como o choupo e o freixo. Uma agro-floresta tem árvores em estrato alto, em estrato médio, e, por fim, hortícolas e aromáticas em estrato baixo, tudo em função das necessidades de luz de cada uma.

Extremamente importante na agricultura regenerativa (e não só) é a gestão da água. E se na Vivid Farms, duas charcas ajudam muito nessa frente, na Terramay o desafio é imenso, e, por isso, David e Anna socorreram-se do chamado keyline design, um desenho da paisagem, desenvolvido pelo australiano P.A. Yeomans, que procura tirar partido da topografia para o melhor aproveitamento possível dos percursos naturais que a água percorre. “Onde a água corre, fá-la andar”, explica David, sendo que aqui o objectivo é obrigá-la a abrandar para que se vá infiltrando no solo de forma mais eficiente.

A propriedade do Alandroal vive numa situação com o seu quê de absurdo, na descrição de David: “Temos as antigas linhas de água, mas o Estado português e a União Europeia dizem que não é permitido fazermos captações de água porque ela tem de estar toda disponível para as grandes represas, que são feitas, afinal, para subsidiar as produções intensivas do regadio.”




O sistema de maneio do gado e a alimentação sem rações explicam a diferença na qualidade da carne
Rui Gaudêncio

O ideal, acredita o agricultor, seria “poder reduzir a velocidade para a ir captando em alguns sítios, criando pequenos microclimas para anfíbios e mamíferos”, e permitindo que ela fosse penetrando o solo até ao subsolo, reforçando os aquíferos. “O nosso interesse é ter maior capacidade vegetativa no solo para que mais água possa ir para os aquíferos”, explica. “Seria mais interessante do que esperar que vá toda para ali [aponta para o Alqueva à nossa frente], obrigando-os às vezes a reduzi-la porque se torna demasiada.”

As regras existentes fazem com que a Terramay tenha uma frente de dois quilómetros com o magnífico espelho do Alqueva, mas esteja condenada a ver a água passar, contribuindo para uma maior erosão do solo, um problema que, apesar de tudo, o keyline design procura combater.

Maneio dos animais

Por fim, não podemos falar de agricultura regenerativa sem referir a importância do maneio dos animais. Voltamos à Vivid Farms onde Paulo está a mostrar aos alunos da Escola Agrária de Santarém a diferença entre o seu terreno e o de uma propriedade vizinha, na qual, numa técnica de pastoreio intensivo, os animais são deixados à vontade no mesmo local até esgotarem o que há para comer.

“Nós fazemos outra coisa que é o pastoreio rotacional adaptado”, sublinha. Imitando o comportamento das manadas, os animais são deixados num local contido por um período curto, mudando depois para outro, dando tempo à primeira parcela para descansar e recuperar, e deixando que as plantas, essas “fábricas de fotossíntese”, cresçam novamente.




Terreno cultivado pela Vivid Farms, perto de Santarém
Daniel Rocha

Sobre a saúde dos animais chegou, entretanto, outra boa notícia. No âmbito do projecto SPIN – Sustainable ProteIN, numa parceria entre a Vivid Farms e a Escola Superior Agrária de Santarém, foram feitas análises à carne de bovinos criados em agricultura regenerativa. “O objectivo é produzir proteína sustentável”, conta Igor Dias, professor daquela instituição. “Analisámos cachaço de bovino e vazia e comparámos com carnes produzidas na Argentina, na Polónia, nos Países Baixos, e também em Portugal, mas noutros regimes.”

Estiveram particularmente atentos ao rácio entre ómega seis e ómega três que, “se for muito desequilibrado, pode tornar a carne inflamatória”, e perceberam que “os bovinos produzidos em modo de agricultura regenerativa têm um rácio de 3,5 para um, enquanto nos da Argentina, por exemplo, o rácio é de 14,5 para um, ou seja, é extremamente inflamatório para o nosso organismo”, afirma Igor Dias.

O sistema de maneio do gado e a alimentação sem recurso a rações explicam a diferença na qualidade da carne para a saúde de quem a consome. Paulo Carvalho sorri satisfeito com os resultados. “Mais do que dizermos que somos o que comemos, somos, na verdade, o que a nossa comida comeu.” E no princípio de tudo está o solo.