Não se trata apenas de breves participações especiais ou aparições no cinema. Os músicos que exploraram o cinema assumiram papéis decisivos: escolheram como contar suas histórias, escreveram roteiros complexos e dirigiram equipes de produção inteiras, além de atuar. Essa imersão total na sétima arte revela artistas que se recusaram a simplesmente compor trilhas sonoras ou posar diante das câmeras. Em vez disso, assumiram o controle criativo absoluto, determinando cada fotograma, cada linha de diálogo e cada decisão estética. De Frank Zappa a Lady Gaga, passando por Bob Dylan e Barbra Streisand, esses músicos demonstraram que seu talento artístico transcende gêneros e disciplinas.

A realeza do rock e suas primeiras incursões

Elvis Presley construiu um império cinematográfico com 31 produções realizadas entre 1956 e 1969. O Rei transformou cada projeto em uma plataforma musical, embora sua filmografia também inclua obras dramáticas como “Wild in the country” (“Coração rebelde”). Títulos repletos de números musicais, como “Jailhouse Rock” (“Os prisioneiros do rock and roll”) e “Blue Hawaii” (“Feitiço havaiano”), permanecem favoritos indiscutíveis de seus fãs.

Elvis Presley no filme "Feitiço havaiano": um ds precursores na aliança da música com o cinema — Foto: Reprodução Elvis Presley no filme “Feitiço havaiano”: um ds precursores na aliança da música com o cinema — Foto: Reprodução

A banda mais influente de todos os tempos, os Beatles, produziu cinco longas-metragens cujos títulos coincidiram com os de seus álbuns. Seu primeiro trabalho, “A hard day’s night” (1964), capturou um dia típico na vida do quarteto com um estilo de comédia em preto e branco, incorporando elementos de intriga policial e performances que destacaram o talento de Ringo Starr como ator. A coleção culminou com “Yellow submarine”, uma aventura psicodélica animada, além do documentário “Let it be”.

The Who, Pink Floyd e filmes de ópera rock

A lendária banda britânica The Who estrelou a adaptação cinematográfica de 1975 de sua aclamada ópera rock “Tommy”, dirigida por Ken Russell. Roger Daltrey, vocalista e membro fundador do The Who, interpretou o protagonista, um garoto que sofre um trauma psicossomático após testemunhar o assassinato de seu pai pelas mãos do amante de sua mãe, ficando surdo, mudo e cego. A história acompanha sua transformação em um campeão mundial de pinball e, posteriormente, no líder de um culto religioso.

Roger Daltrey na cultuada ópera-rock 'Tommy', do The Who — Foto: Reprodução Roger Daltrey na cultuada ópera-rock ‘Tommy’, do The Who — Foto: Reprodução

A produção contou com um elenco extraordinário, incluindo Ann-Margret — que ganhou o Globo de Ouro de Melhor Atriz e foi indicada ao Oscar — Oliver Reed, Jack Nicholson, Tina Turner, Eric Clapton e Elton John. Pete Townshend, principal compositor do The Who, recebeu uma indicação ao Oscar por seu trabalho na adaptação musical e orquestração. O filme, apresentado fora de competição no Festival de Cannes de 1975, arrecadou US$ 27 milhões somente nos Estados Unidos e se tornou o filme mais popular de Russell, consolidando seu status como cineasta iconoclasta e visionário.

O Pink Floyd explorou um território semelhante em 1982 com “The wall”, dirigido por Alan Parker, mas com roteiro de Roger Waters, baixista e vocalista da banda. Baseado no álbum homônimo de 1979, o filme conta a história de Pink, uma estrela do rock que constrói uma barreira psicológica de isolamento social. Metafórico e rico em simbolismo, o filme contém poucos diálogos e se baseia principalmente nas canções do Pink Floyd, além de quinze minutos de elaboradas sequências de animação criadas por Gerald Scarfe. Bob Geldof, da banda The Boomtown Rats, interpretou o papel principal, originalmente destinado ao próprio Waters.

A produção foi turbulenta, com conflitos constantes entre Parker, Waters e Scarfe, mas tornou-se um filme cult e um sucesso comercial inesperado, ganhando dois prêmios BAFTA.

Frank Zappa e a vanguarda experimental

Frank Zappa foi um dos artistas mais multifacetados do século XX. Músico, compositor, produtor, guitarrista, ator, artista visual e cineasta, sua carreira musical de trinta anos foi caracterizada por uma transição fluida entre gêneros, incluindo jazz, rock, fusion, música orquestral e música concreta.

Em 1971, Zappa escreveu e dirigiu “200 motels”, um filme musical surreal que tentava retratar a instabilidade e a loucura da vida na estrada como uma estrela do rock. O filme incluía inúmeras vinhetas absurdas intercaladas com imagens de shows do The Mothers of Invention, e a maioria de suas cenas apresentava efeitos especiais e mudanças de velocidade. Apesar de um elenco repleto de estrelas, incluindo Ringo Starr, Keith Moon e o próprio Zappa, o filme recebeu críticas mistas.

Ringo Starr fez o papel de Frank Zappa no filme '200 motels' — Foto: Divulgação/Alamy Ringo Starr fez o papel de Frank Zappa no filme ‘200 motels’ — Foto: Divulgação/Alamy

Bob Dylan e o fracasso de uma ambição

Bob Dylan também explorou outras disciplinas artísticas, como artes visuais, literatura e cinema. Sua estreia na direção foi com o documentário “Eat the document”, de 1972, sobre sua turnê europeia na década de 1960.

Em 1978, ele lançou “Renaldo e Clara”, um filme que dirigiu, escreveu e estrelou. Com quase quatro horas de duração, o filme combinava imagens de shows, entrevistas documentais e vinhetas ficcionais, fortemente influenciado pelo drama francês “Les enfants du paradis” e incorporando elementos cubistas. Infelizmente, “Renaldo e Clara” foi um fracasso retumbante em seu lançamento e recebeu críticas tão negativas que foi retirado dos cinemas. Seu fracasso provavelmente se deveu à sua duração e a um enredo fraco.

Neil Young e David Byrne: a narrativa da cidade pequena

O cantor e compositor canadense Neil Young começou sua carreira em uma banda instrumental que fazia covers do The Shadows no início dos anos 1960, mas alcançou a fama graças à sua bem-sucedida carreira solo, lançando 35 álbuns ao longo de cinco décadas. “Greendale” (2003), um filme musical que ele dirigiu e escreveu, foi uma de suas obras cinematográficas mais aclamadas. O filme acompanhou seu vigésimo sexto álbum de estúdio, de mesmo nome, e retrata a vida dos habitantes de uma pequena cidade fictícia na Califórnia, com foco na família Green: o avô atencioso, o filho artista com dificuldades financeiras, a filha de espírito livre e o primo assassino de policiais.

David Byrne, vocalista e membro fundador do Talking Heads, dirigiu, escreveu e estrelou “True stories” (1986), um filme cult independente que abrange diversos gêneros, incluindo musical, cinema de arte e comédia. O próprio Byrne o descreveu como “um projeto com músicas baseadas em histórias reais de tabloides. É como “60 Minutes” sob efeito de LSD”. Byrne interpretou um estranho sem nome usando um chapéu de caubói que visita uma pequena cidade do Texas e observa os preparativos para o Dia da Independência do Texas. O filme frequentemente quebra a quarta parede e apresenta uma trilha sonora do Talking Heads.

David Byrne dirigiu e protagonizou 'True stories' — Foto: Divulgação David Byrne dirigiu e protagonizou ‘True stories’ — Foto: Divulgação

Ícones pop e suas visões cinematográficas

Michael Jackson levou sua revolução dos videoclipes para o formato de longa-metragem com “Moonwalker” (1988), um filme antológico experimental composto por curtas-metragens e videoclipes. Ele apresenta a famosa cena de coreografia de “Smooth criminal”, onde Jackson e um grupo de dançarinos desafiam a gravidade com um movimento de dança icônico. Mais tarde, o Rei do Pop se uniu a Stephen King para criar “The ghosts of Michael Jackson”. O documentário “This is it” narra o processo de ensaio para sua série de shows na O2 Arena de Londres, meses antes de sua morte.

Prince estreou no cinema como “”The kid em Purple Rain”, um musical semi-autobiográfico sobre um roqueiro de Minneapolis. O álbum de mesmo nome serviu como trilha sonora para este clássico cult, que consolidou seu status de superestrela.

Madonna já havia estrelado filmes de sucesso como “Procura-se Susan desesperadamente” e “Dick Tracy” quando produziu o documentário de 1991 “Na cama com Madonna”, que narrou sua turnê mundial “Blond ambition”. Ela também estrelou a adaptação cinematográfica do musical “Evita”, sobre a vida de Eva Duarte de Perón.

As divas e suas histórias pessoais

Barbra Streisand desempenhou papéis principais em inúmeros filmes musicais, de “Funny girl” (“A garorata genial” à versão de 1976 de “Nasce uma estrela”. Mas uma de suas realizações mais notáveis ​​é “Yentl”, baseado em uma história de Isaac Bashevis Singer sobre uma estudante de yeshiva. Streisand não apenas estrelou o filme, mas também o dirigiu, coescreveu e coproduziu.

Barbra Streisand com Kris Kristofferson em 'Nasce uma estrela', de 1976 — Foto: Divulgação Barbra Streisand com Kris Kristofferson em ‘Nasce uma estrela’, de 1976 — Foto: Divulgação

Whitney Houston interpretou a superestrela Rachel Marron em “O guarda-costas”, ao lado de Kevin Costner. Graças à sua voz poderosa, o álbum — que inclui sucessos como “I will always love you” — tornou-se um best-seller.

Dolly Parton produziu vários filmes inspirados em sua história de vida. “Coat of many colors” e o natalino “Christmas of many colors: circle of love”, ambos baseados em sua infância nas montanhas Great Smoky, são narrados pela própria cantora country.

Contemporâneos e novas gerações

Nick Cave, o músico australiano por trás do Nick Cave and the Bad Seeds, escreveu o roteiro do faroeste australiano “A proposta” (2005), dirigido por John Hillcoat. O filme conta com um elenco estelar, incluindo Guy Pearce, Emily Watson e John Hurt, e narra os eventos que se seguiram ao horrível assassinato da família Hopkins no interior da Austrália, no final do século XIX.

Omar Rodríguez-López, guitarrista e produtor do The Mars Volta, dirigiu, escreveu, produziu, compôs a trilha sonora e estrelou o filme “A máquina sentimental” (2010). O filme conta a história de amadurecimento de um jovem que luta para encontrar sua identidade em meio a estereótipos, pobreza familiar e abuso de drogas.

Cena do filme "Nasce uma estrela' com Lady Gaga — Foto: Reprodução Cena do filme “Nasce uma estrela’ com Lady Gaga — Foto: Reprodução

Eminem estrelou em “8 mile”, um drama de hip-hop baseado em parte em sua vida. “Lose yourself”, a música que ele compôs para a trilha sonora, ganhou o Oscar de Melhor Canção Original em 2003.

Lady Gaga ofereceu aos seus fãs um olhar por trás das câmeras com o documentário da Netflix “Gaga: five foot two, sobre a produção de seu quinto álbum de estúdio, “Joanne”, antes de estrelar o remake de “Nasce uma estrela” em 2018.