Desde a morte de Georges Simenon, em 1989, o mundo editorial português parece teimar em, por fases, ir redescobrindo e invocando o romancista belga. Em vida do escritor, os seus leitores portugueses estavam cingidos às edições da Livros do Brasil, que ia publicando regularmente as histórias do célebre comissário Maigret. Contudo, após 1989, tivemos quatro vagas de dimensões diferentes de traduções das suas obras, primeiro, com o tímido esforço da Cotovia (Carta para minha mãe, 2001), depois, com dezenas de histórias de Maigret publicadas entre a Asa e, de novo, a Livros do Brasil, entre 2006 e 2014; de seguida, através dos oito romances publicados na Relógio d’Água no espaço de um ano (2016/17) e, por fim, em março deste ano, com a edição de A neve estava suja e As janelas defronte pela Cavalo de Ferro.
O leitor mais incauto suspeitaria de que, com 78 traduções de livros em português, a inclusão de Simenon no excelente catálogo da Cavalo de Ferro viesse apenas chover no molhado. Mas o leitor mais incauto desconhecerá talvez a dimensão do catálogo simenoneano. Senão vejamos. Ao longo de 86 anos de vida, Georges Simenon escreveria 21 volumes de memórias, quatro autobiografias, 192 romances ou novelas em nome próprio e mais de duzentos repartidos por 27 pseudónimos. A isto somam-se centenas de artigos e contos. No total, teremos para cima de quatrocentos livros escritos pela mão do autor belga mais vendido de todos os tempos, que soma já quinhentos milhões de exemplares espalhados por todo o mundo (fiz as contas, se quisesse igualar a sua produtividade, e assumindo que viveria o mesmo tempo que Simenon, teria de publicar um livro de dois em dois meses). Como se não bastasse o sucesso comercial, Simenon foi alvo de rasgados elogios por parte de escritores tão consagrados como André Gide, Leïla Slimani ou Walter Benjamin. É difícil, portanto, questionar a sua centralidade na literatura do século XX.
▲ A capa de “As Janelas Defronte”, na edição da Cavalo de Ferro
No entanto, mais do que os méritos literários de Simenon, que são muitos e assentam, parece-me, numa espantosa precisão linguística e descritiva que mereceria decerto outro artigo, interessa-me pensar esta extraordinária prolificidade. Em primeiro lugar, faz sentido esclarecer que Simenon não é, longe disso, caso único na história da literatura.
Lembremo-nos, por exemplo, de Isaac Asimov (357 livros), de Gonçalo M. Tavares, que, com apenas 54 anos já conta com 45 livros publicados, e, sobretudo, do recordista absoluto desta categoria: Ron L. Hubbard, com 1.084 livros publicados, a grande maioria deles escritos nos anos cinquenta. É interessante perceber que nos três casos acima referidos, tal como, em certa medida, poderíamos supor que acontece também com Simenon, esta fecundidade literária parece corresponder ao desejo de construção de um mundo novo, que viesse enfim substituir-se a estoutro que nos calhou em sorte habitar. Não será, por isso, coincidência que tanto Asimov como Hubbard se tenham dedicado sobretudo à ficção científica, sendo que Hubbard, não contente com a realidade literária que ia construindo em seu redor, cedo transferiria o seu universo ficcional da literatura para a religião, criando a Igreja da Cientologia, cujos fiéis são convidados a acreditar que descendemos de uma raça intergalática abandonada há quinhentos milhões de anos por um tirano alienígena dentro de um vulcão terráqueo, sobre o qual foram de seguida detonadas várias bombas de hidrogénio.
Poderíamos imaginar — e em certa medida, teríamos razão — que em algumas situações tamanha fecundidade corresponderá decerto a uma fórmula, sendo que cada novo livro corresponderá apenas a uma iteração dessa mesma fórmula aplicada a personagens e enredos ligeiramente diferentes. Com certeza. Mas é também possível — e o caso de Simenon parece prová-lo — que esta fecundidade se deva à descoberta de que, mais do que de enredos, a literatura assenta na descoberta de um certo tom, de uma melodia que, uma vez afinada, pode ser reproduzida quase infinitamente, onde seriam embalados os leitores e, quem sabe, os próprios escritores, que assim migrariam de um mundo hostil para outro cujos termos seriam por si definidos. Mais do que uma criação, a literatura seria, portanto, uma tradução ou conversão do mundo, como o próprio Simenon parece sugerir, ao afirmar no prefácio de As janelas defronte, que todas as suas personagens existem de facto, uma vez que «nunca fui capaz de inventar uma personagem, nem um cenário, nem sequer uma aventura (…) sinceramente, a não ser que eu fosse Deus, como é que me ia pôr a criar toda esta gente? Simplesmente não existem tal como surgem nas minhas histórias, no lugar onde as coloco (…)».
▲ A capa de “A Neve Estava Suja”, na edição da Cavalo de Ferro
Além disso, tão abundante fecundidade tem uma consequência libertadora. Ao escrever centenas de romances, Simenon está, em certa medida, a dessacralizar a literatura, libertando-a das divinas amarras que teimamos em impor-lhe. Ao escreverem catrefadas de romances, ao se agrilhoarem à inspiração, autores como Simenon renegam a ideia de transporte divino. Ao transformarem as musas em esposas, os escritores fecundos fazem com que a literatura desça do Olimpo para onde a exilámos e aproximam-na da nossa vida quotidiana, transformando-a menos num êxtase místico e mais numa atividade semelhante ao tricot, em que entretecemos e destecemos narrativas a nosso bel-prazer.
Por fim, gera-se disto uma consequência curiosa. Na prática, quando um escritor publica centenas de livros, torna financeira e temporalmente impossível que nós, leitores, por mais que admiremos a sua escrita, consigamos ler a sua obra completa. Ora, com isso, estes escritores compulsivos abolem a possibilidade de haver especialistas nas suas obras. Podemos, por hipótese, falar da violência e correspondente redenção amorosa nos romances de Simenon, podemos até falar da construção quase cristã de uma ideia de caridade ou da repulsa que Simenon parecia sentir pelo efeito dos regimes autoritários nas suas células (isto é, nos cidadãos), mas, ao dizermos isto, falamos de toda a obra de Simenon, apenas dos que este apelidou de romances duros ou só mesmo destes dois casos concretos, talvez escolhidos pela Cavalo de Ferro precisamente à conta dessas semelhanças? Como poderemos esclarecer esta dúvida? Lendo mais dois romances? E se o padrão se mantiver, tiraremos conclusões disso, tendo lido menos de 1% das obras completas de Simenon?
A frustração inerente à impossibilidade de nos tornarmos especialistas em Simenon ou Asimov poderá, contudo, levar-nos a compreender que essa impossibilidade se expande também à literatura em geral e, por fim, à vida. Talvez ao compreendermos a nossa inescapável ignorância nos irritemos menos com a estupidez que grassa por todo o lado, acolhendo-a, enfim, como parte de nós.