A história começa em uma escola, com quatro professores que partilham um esgotamento discreto: aulas previsíveis, autoridade em baixa, casamentos que se acomodaram e amizades sustentadas por piadas de sala dos professores. O grupo decide testar um experimento: manter, durante o expediente, um nível constante de álcool no sangue para reduzir a ansiedade social e recuperar iniciativa. A partir daí, o pacto entre os amigos estrutura uma rotina de medições, pequenos goles e relatórios informais, sempre com a promessa de que a vida voltará a andar quando a trava da inibição afrouxar. A premissa sustenta conflitos que se ramificam em sala de aula, cozinha de casa e ruas de Copenhague, afetando alunos, colegas e famílias.

No centro está “Druk — Mais uma Rodada”, dirigido por Thomas Vinterberg e encenado por Mads Mikkelsen, Thomas Bo Larsen, Magnus Millang e Lars Ranthe, com Maria Bonnevie em papel crucial. O filme apresenta o acordo entre os quatro, define regras — horários, limites, anotação dos resultados — e acompanha o efeito imediato dessa combinação entre coragem engarrafada e rotina. As primeiras mudanças aparecem no trabalho: aulas ganham energia, alunos respondem melhor, a linguagem corporal dos professores se abre. O passo seguinte é o contágio para a vida doméstica, que precisa absorver novos humores, atrasos e explicações.

Vinterberg filma o cotidiano com câmera de mão próxima, luz natural e distâncias curtas em corredores e cozinhas. A fotografia de Sturla Brandth Grøvlen favorece a proximidade com rostos e mãos, registro que expõe titubeios e impulsos sem recorrer a gestos grandiloquentes. A montagem de Anne Østerud e Janus Billeskov Jansen organiza os ciclos de euforia, ressaca e tentativa de recomposição de maneira que o tempo da experiência fique claro: há avanços, recuos e escalas em que um jantar pode parecer vitória e, na manhã seguinte, virar débito. O som privilegia ambientes: risos abafados, copos que se tocam, o ar de sala de aula antes do primeiro “bom dia”. Esses elementos sustentam a progressão dramática sem necessidade de diagnósticos em voz alta.

Mads Mikkelsen compõe um professor que hesita antes de qualquer gesto. O corpo demora a ocupar espaço, a voz entra em sala medida, o olhar procura os alunos e recua quando encontra resistência. Com o experimento, a postura muda um pouco: ele passa a circular entre as carteiras, propõe participação, cria exemplos que provocam interesse. A atuação dosa charme e cansaço, o que torna a melhora inicial convincente e o risco subsequente palpável. Thomas Bo Larsen projeta um treinador que encontra no álcool um aliado para manter autoridade e, ao mesmo tempo, um desvio para evitar a conversa que realmente importa com os mais próximos. Magnus Millang e Lars Ranthe fecham o circuito do pacto, um inclinado à euforia, outro ao cálculo, variações que ajudam a calibrar os efeitos práticos do plano.

A narrativa dá atenção à logística do experimento. Há garrafinhas escondidas, cronômetros silenciosos, regras que evoluem quando o grupo decide aumentar a dose. A mudança de parâmetro gera ganhos imediatos e expõe falhas de freio. Em aula, sequências longas permitem observar como a leve desinibição se converte em presença: comentários fluem, repertório aparece, alunos reagem e devolvem interesse. Em casa, a reorganização do convívio cobra explicações; o atraso para dormir de uma criança, a irritação diante do esquecimento de compras, uma reunião deslocada por mais um copo. Cada ajuste rende consequência, e o filme cuida para que a soma dessas pequenas operações pese mais do que qualquer discurso.

O roteiro, assinado por Vinterberg e Tobias Lindholm, dedica-se a mostrar escolhas e seus custos. Quando o grupo avança uma unidade no teor, os gestos aumentam, a risa alarga, os erros pedem cobertura; quando recua, o corpo cobra com tremor e humor curto. O desenho dos espaços também participa: bares estreitos, apartamentos com pouco respiro, vestiários que retêm cheiros e segredos. A escola, com sua rotina de provas e listas de chamada, funciona como medidor: notas sobem, caem, estabilizam, e a conversa com os pais redefine a noção de responsabilidade de quem ensina.

Há, aqui, comédia pontual, sempre apoiada em situação e timing. Pequenas trapalhadas em mesas apertadas, explicações improvisadas que quase convencem, celebrações que se alongam além do combinado. O riso nunca encobre a presença do risco. A cada rodada, a vida cobra um registro mais preciso dos limites, e a amizade precisa lidar com diferenças de ritmo, tolerância e motivo. O filme não romantiza a bebedeira nem demoniza a fuga momentânea; mostra efeitos verificáveis: fala mais solta, promessas que acumulam atraso, olhos que evitam contato na manhã seguinte.

A direção de atores preserva fragilidade. Quando o protagonista tenta reconquistar a casa, as falas deslizam entre pedido e justificativa; quando enfrenta um aluno em prova, a postura alterna firmeza e dúvida; quando reencontra amigos, o corpo relaxa e se permite dançar alguns passos sem plateia. Nada disso busca lição pronta. São registros de gente que tenta reconfigurar a própria vida sem perder vínculos que ainda importam. O filme acompanha essas tentativas com paciência, deixando que a sequência seguinte responda ao impulso anterior e que cada copo beba um pouco de coragem e de medo.

A trilha sonora, discreta durante boa parte do percurso, aparece em momentos-chave para marcar viradas de humor. Canções pop pontuam festas e ruas vazias, sem impor comentário. O contraste entre o som que chama e o silêncio do dia seguinte ajuda a medir o tamanho do salto que cada personagem se permitiu dar. A captação de ambientes reforça a sensação de continuidade: o ranger de portas, o apito em treinos, a respiração presa antes de uma conversa difícil. Tudo isso compõe um mapa de pressões que empurra o grupo a admitir o que estava oculto.

Quando a experiência ameaça escapar do quadro acordado, o pacto de amizade revela suas rachaduras. Cada um precisa decidir até onde vai e o que está disposto a perder para manter a sensação de avanço. A escola, a família e o círculo de amigos tornam-se três arenas com regras próprias, e falhar em uma delas repercute nas outras duas. Ao seguir os personagens nessas idas e vindas, “Druk — Mais uma Rodada” mantém a atenção no que muda para quem, quando e por quê, sem chamar atenção para a teoria que lhes deu partida.

Ao fim do percurso observado, resta a constatação simples: coragem improvisada também cobra contabilidade. O filme se encerra com sinais de escolha que dispensam sentença moral e devolvem ao espectador o peso de medir custo e benefício. Depois de tantos testes, a vida ordinária volta ao quadro com outra luz, e é nela que cada um precisa recompor rotina, promessas e horários. A próxima reunião de pais já nasce sob expectativa e cuidado renovado.

Filme:
Druk — Mais uma Rodada

Diretor:

Thomas Vinterberg

Ano:
2020

Gênero:
Comédia/Drama

Avaliação:

9/10
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Marcelo Costa

★★★★★★★★★★