Há dois anos, o último retrato de Gustav Klimt — uma vibrante pintura de uma mulher não identificada com um leque — bateu o recorde de leilão do artista ao ser vendido por cerca de 100 milhões de euros. Agora, esse recorde deverá ser ultrapassado por um retrato monumental, com quase dois metros de altura, de uma jovem herdeira que foi saqueado pelos nazis e quase destruído durante a Segunda Guerra Mundial. Raramente visto nas últimas décadas, o quadro esteve pendurado na casa do herdeiro da Estée Lauder, Leonard A. Lauder, até aos últimos anos da sua vida (faleceu em junho).

Na próxima semana, o “Retrato de Elisabeth Lederer” deverá ser vendido por mais de 140 milhões de euros, sendo a peça principal do leilão da coleção de Lauder, organizado pela Sotheby’s. A coleção inclui ainda duas outras obras de Klimt — ambas paisagens do Lago Attersee, avaliadas em mais de 65 e 75 milhões de euros — podendo atingir um total combinado superior a 370 milhões de euros.

Entre as obras do pintor austríaco, o retrato de Lederer, filha dos seus mais importantes mecenas, é menos conhecido. Concluído dois anos antes da morte de Klimt, em 1918, mostra a jovem envolta num manto diáfano e ornamentado, rodeada de motivos inspirados na arte chinesa. Durante muitos anos, a pintura decorou a residência nova-iorquina de Lauder, na Quinta Avenida, apenas saindo ocasionalmente para ser exibida, nomeadamente no Museu de Arte Moderna (MoMA) e, algumas vezes, na Neue Galerie de Nova Iorque (fundada pelo seu irmão). Em 2017, Lauder emprestou-a à Galeria Nacional do Canadá, onde permaneceu até ao início deste ano.

Em casa, a pintura era a joia da coleção de Lauder. Primeiro esteve na sala de estar e, mais tarde, passou para a sala de jantar, para dar lugar a uma grande obra cubista de Fernand Léger, explicou Emily Braun, historiadora de arte e assessora de Lauder durante quase quatro décadas.

“Ele almoçava sempre que estava em casa, e a mesa onde comia ficava mesmo ao lado do quadro”, contou Braun pelo telefone. 

O retrato mostra Lederer, filha dos patronos mais ricos de Klimt, aos 20 anos de idade

A poucos quarteirões dali, no Museu Metropolitano de Arte, milhões de visitantes passam anualmente diante do retrato da mãe de Elisabeth, Serena Lederer, também pintado por Klimt cerca de 15 anos antes. As diferenças de estilo entre os dois são notórias: o de Serena é leve e etéreo, enquanto o de Elisabeth é ousado e exuberante. Ainda assim, ambas partilham o mesmo olhar intenso e profundo.

“Klimt estava fascinado com o olhar de Serena — ou era suficientemente inteligente para perceber que devia explorá-lo — aquela escuridão intensa, quase de carvão”, observou Braun.

Marcado pela tragédia

Ambos os retratos escaparam à destruição durante a Segunda Guerra Mundial, quando os nazis confiscaram a vasta coleção de arte da família Lederer durante mais de uma década. Muitas das obras de Klimt foram exibidas em 1943, em Viena, e depois armazenadas no Castelo de Immendorf, que acabou por arder no final da guerra.
Os retratos familiares, contudo, foram excluídos da exposição — por retratarem judeus — e, por isso, separados e poupados às chamas.

Elisabeth Lederer, que tinha apenas 20 anos quando posou para Klimt, foi, segundo Braun, “uma figura profundamente trágica”.

“Ainda bem que este retrato sobreviveu”, disse.

Klimt não foi o único artista a retratar a jovem herdeira. Egon Schiele, também vienense e amigo de Klimt, desenhou-a neste retrato marcante

Elisabeth perdeu tudo antes da guerra e morreu antes de esta terminar, com 50 anos, em circunstâncias pouco claras. Nos anos 1920, quando o fascismo começava a alastrar, converteu-se ao protestantismo e casou-se com um barão, mas este divorciou-se pouco antes da guerra — o mesmo ano em que o seu filho morreu.

Enquanto a família fugia, ela permaneceu em Viena. Vulnerável como mulher judia solteira, afirmou que Klimt — falecido em 1918 — era seu pai.

“Ela foi protegida até certo ponto por essa falsa filiação meio cristã, meio Klimt, um artifício criado com a ajuda da mãe”, explicou Braun.

Klimt, além de amigo da família e professor de desenho de Elisabeth, tinha fama de mulherengo, tendo alegadamente tido vários filhos fora do casamento, “por isso, a história não parecia assim tão inverosímil”, acrescentou.

Uma obra-prima tardia

Algumas obras de Klimt estiveram no centro de longas disputas de restituição, mas em 1948 o retrato de Elisabeth foi devolvido ao seu irmão Erich, que aparece em várias obras de Egon Schiele. O quadro manteve-se em posse da família até perto do fim da vida de Erich.

O marchand Serge Sabarsky adquiriu-o em 1983 e vendeu-o dois anos depois a Lauder, que já demonstrava grande interesse por Klimt. Nos Estados Unidos, o pintor era então pouco conhecido, até que o Museu Solomon R. Guggenheim organizou uma exposição conjunta com Schiele em 1965. Lauder, de origem húngara e checa, começou a colecionar as suas obras nos anos 1970, em parte por afinidade com as suas próprias raízes familiares.

Serena Lederer, mãe de Elisabeth, no seu salão por volta de 1930, em frente ao retrato pintado por Klimt.

“Não posso deixar de sublinhar o quanto ele era um verdadeiro historiador”, disse Braun sobre Lauder. “Interessava-se profundamente pela história europeia e pela história cultural. Por um lado, havia a ligação familiar direta; por outro, a consciência do historiador sobre o que Klimt representava no auge da cultura vienense. E, acima de tudo, a beleza e a força estética destas obras, que ele reconheceu de imediato. Tinha um olhar extraordinário.”

Klimt é mais conhecido pelo seu período dourado, em que produziu os ícones da Arte Nova O Beijo e Retrato de Adele Bloch-Bauer I. Nos anos que antecederam a sua morte, aos 55 anos, os seus motivos geométricos tornaram-se mais fluidos, os traços mais soltos, e foi fortemente influenciado pela arte asiática, da qual era um ávido colecionador.

As figuras que rodeiam Elisabeth no retrato inspiram-se, segundo a Sotheby’s, em obras de arte chinesa que Klimt possuía, enquanto o manto de dragão chinês que ela veste simboliza poder e autoridade. Diz-se que o artista não queria separar-se do quadro, que levou vários anos a concluir.

Durante muito tempo, o retrato foi conhecido como “Retrato da Baronesa Elisabeth Bachofen-Echt”, título herdado do seu casamento. Mas isso mudou durante a posse de Lauder.

“Disse-lhe: ‘Não está certo. Este quadro foi encomendado quando ela ainda era solteira. Foi um pedido da família, e o marido tratou-a muito mal — por que razão continuar a chamá-lo assim?’”, recordou Braun. “Por isso voltámos ao título original, e é assim que se chama agora”.