Um jogo podia ter mudado tudo, um jogo acabou por deixar tudo na mesma. Ruben Amorim agarrou-se durante muito tempo à ideia de que um clique iria mudar as coisas em Manchester. Ele, mais do que ninguém, sabia qual era esse clique. A goleada à Real Sociedad nos oitavos da Liga Europa em Old Trafford mostrou essa luz. O encontro de loucos frente ao Lyon nos quartos da Liga Europa, com um triunfo por 5-4 após prolongamento, reforçou essa luz. A forma como o Athl. Bilbao foi despachado nas meias da Liga Europa enfatizou essa luz. O United estava a 90 minutos de apagar o resto com a conquista de uma prova europeia. Aí, com o Tottenham, houve um apagão. Mais remates, muita posse, zero golos marcados, mais um sofrido com um erro proibido numa decisão. Tudo se voltava a resumir ao 15.º lugar na Premier.

Ruben nunca quis a tábua, só a salvação. No fim, afogou-se (a crónica da final da Liga Europa)

O português explodiu e, entre várias críticas dirigidas a jogadores à frente de todo o grupo, teve a reação mais dura com Manuel Ugarte, uruguaio com quem trabalhara no Sporting. Segundo o The Athletic, referiu que parecia acomodado a um lugar que achava seu, admitiu que não o reconhecia como jogador, disse que não era o mesmo com quem trabalhara dois anos em Alvalade. Aí, o plantel colocou-se ao lado do técnico. Num par de ocasiões distintas, não terá propriamente gostado dessa forma de apontar o dedo no balneário com todos a ouvirem, considerando que há momentos em que é melhor falar individualmente do que expor problemas em grupo. Também aqui, Amorim foi fiel ao trajeto que fez desde que começou mais a sério o percurso de treinador em Braga – e não teve qualquer problema em arrumar a casa à sua maneira mesmo com medidas que não eram propriamente populares como o leque de jogadores do qual decidiu prescindir, incluindo Marcus Rashford ou Alejandro Garnacho, a quem disse que deveria ter um bom agente no verão.

Um ano depois, Ruben Amorim não parece o mesmo. Um ano depois, Ruben Amorim nunca deixou de ser o mesmo. E é isso que, por paradoxal que possa soar, lhe vale a garantia de continuidade no United apesar desse 15.º lugar na última edição da Premier League onde admitiu liderar “a pior equipa do clube”.

Não caiu o sistema, não caiu a filosofia, não cai o treinador: Ruben Amorim seguro no United (apesar dos vários registos negativos)

“Se foram 365 dias que passaram depressa ou devagar? Depende… Agora estamos num bom momento, até parece que passou muito rápido, mas também tivemos dias que passaram muito devagar. A vida é feita disto, bons e maus momentos, com tudo muito rápido e muito lento. Tem sido uma jornada, isso sim”, salientou numa entrevista a propósito da data. “Agora percebo que, nos maus momentos, as minhas convicções são as mesmas, consigo manter-me fiel à forma de pensar mesmo quando estou mais sob pressão. Ainda não sabia dessa parte enquanto treinador, é isso que me dá força para o futuro. Sei que vamos ter maus momentos outra vez, sei que vou estar preparado para eles. Se estou mais aliviado? Isso é complicado num treinador porque a seguir a um jogo há sempre outro e outro. Ganhar é sempre uma felicidade mas não passa apenas por aí, quando vejo a equipa jogar como fez com o Liverpool ou com o Brighton, quando vejo a forma como treinámos a semana no jogo, isso é o melhor sentimento do mundo para mim”, acrescentou Amorim.

Um discurso, três saídas, uma viagem polémica e um reforço a caminho: o day after da “tempestade” do United

Hoje, o treinador que nem sequer entrou na primeira pré-lista de potenciais sucessores de Erik ten Hag já está eliminado da Taça da Liga, em mais uma derrota humilhante após grandes penalidades com o modesto Grimsby Town, do quarto escalão inglês, mas ocupa o sétimo lugar da Premier League com 18 pontos em 11 encontros, estando a um ponto das posições de acesso à Liga dos Campeões e apenas a dois do terceiro posto. Mais do que isso, sem nunca deixar cair uma ideia de 3x4x3 ou 3x4x2x1, preparou uma base para ser melhor no futuro. Se chega ou não, só o tempo poderá dizer. Mas aquilo que era um contexto onde estava de forma irremediável condenado tornou-se uma realidade distinta com argumentos que jogam a seu favor – até porque quem lidera o clube percebe que em muitos aspetos o português é mais vítima do que culpado de um sistema autofágico que marcou os últimos anos de um gigante do qual resta apenas o nome e as receitas.

Mais uma humilhação numa época ainda sem vitórias: United perde com Grimsby Town, do 4.º escalão, e é eliminado da Taça da Liga

O The Athletic voltou a recordar de uma forma mais pormenorizada toda a novela até à chegada de Ruben Amorim, lembrando o porquê de não estar na lista inicial de potenciais sucessores de Erik Ten Hag tal como tinha acontecido no Liverpool antes da escolha de Arne Slot como sucessor de Jürgen Klopp: entre a aposta cada vez mais consistente e assumida na análise de dados, a base passava pelos técnicos mais confortáveis a jogar em 4x3x3 a potenciar um futebol mais assumido e com experiência de Premier League. Thomas Tuchel, Mauricio Pochettino, Roberto De Zerbi, Thomas Frank, Marco Silva e Graham Potter estavam no radar, só Roberto De Zerbi e Thomas Tuchel passaram a uma segunda ronda, o italiano era preferido. Quando no final de maio Jason Wilcox começou a ter reuniões exploratórias, o nome de Ruben Amorim aparecera a par de Thiago Motta como treinadores de uma nova geração com condições para serem the next one.

Wilcox falou com Amorim, ficou impressionado com o técnico português mas fez uma avaliação macro da situação e acabou por considerar que seria uma mudança demasiado grande numa fase em que o clube estava num processo de reconstrução, entre a contratação de Dan Ashworth para diretor desportivo e de Chris Vivell para diretor do recrutamento e uma série de cortes polémicos na estrutura que iriam sempre deixar marca e projetos de melhoria em Carrington, no centro de treinos do clube. No meio dos contactos, a opção acabou por ser a permanência de Erik ten Hag, que ganhou a Taça de Inglaterra frente ao City. Por essa altura, Ruben Amorim apostava na melhor temporada de sempre no Sporting com reforços cirúrgicos como Zeno Debast, Conrad Harder (não podendo chegar Fotis Ioannidis) ou Maxi Araújo além das permanências de vários jogadores cobiçados durante o verão como Gyökeres, Pedro Gonçalves, Trincão ou Gonçalo Inácio.

Cinco nomes que não Amorim, ausência de Carrington, um adeus com “escolta”: os bastidores da saída de Dan Ashworth do United

Em outubro, quando uma reunião na sede da Ineos assumiu que manter o neerlandês tinha sido um erro (e que Ruud van Nistelrooy, podendo ser uma opção que caísse bem entre os adeptos, não tinha ainda bagagem para ser o treinador principal), recomeçou o trabalho que tinha sido feito uns meses antes. Com uma nuance: Ruben Amorim, que liderava o Campeonato e goleara o Manchester City na Liga dos Campeões, já estava no topo das prioridades também por influência de Omar Berrada, CEO dos red devils. O primeiro contacto, em Sevilha, foi ainda antes desse triunfo volumoso frente à equipa de Pep Guardiola. Os seguintes, já com os responsáveis do Sporting, fecharam o negócio. O resto da história é conhecida, com aquela emotiva despedida em Braga numa recuperação épica que virou o resultado de 0-2 ao intervalo para o 4-2 no final.

“Tomo um café com ele, digo-lhe o que corre mal, ele diz-me para ir à m****. Gosto dele”: os elogios de Jim Ratcliffe a Ruben Amorim

Porquê recordar todo esse filme? Porque foi nessa fase que Ruben Amorim referiu ao que ia. Durante cerca de cinco horas, como recorda o The Athletic, o treinador explanou a forma como vê o futebol, explicou a ideia que tem para jogar com uma linha de três atrás dizendo que tinha flexibilidade para mexer nessa filosofia e adaptar-se ao contexto “nos momentos certos”, reforçou a importância de ter jogadores taticamente “cultos” para interpretar diferentes nuances em múltiplos sistemas, acrescentou que a forma como o Manchester City jogava, por exemplo, tinha pontos de contacto em posse e abordou a diferença entre jogar com alas ou com extremos. Os responsáveis do United ficaram convencidos, não só pela parte tática mas sobretudo “pela parte do carisma e da inteligência emocional e tática”. Único problema? O momento da temporada. Por mais do que uma vez Amorim falou na possibilidade de mudar-se para Old Trafford no final da época de 2024/25, os red devils colocaram o cenário de parte dizendo que o comboio não pararia outra vez. Assim foi.

Se o Ruben [Amorim] tivesse começado a 1 de julho de 2025, não teríamos tido todo este conhecimento, certo? E é isso que sinto sobre estes sete ou oito meses que ele passou na Premier League e sobre o que sofreu na Premier League. Ele e a equipa. Isso vai realmente ajudar-nos no futuro”, assumiu Omar Berrada, CEO dos red devils, em entrevista à United We Stand.

Essa foi a moeda de duas faces que marcou o primeiro ano de Ruben Amorim. Por um lado, o técnico teve a oportunidade de perceber as diferenças da mudança que fizera, da exigência da Premier League a pontos que podem passar ao lado mas que mexem muito como a quantidade de entrevistas que tem de dar após quatro anos e meio em Alvalade onde só falava antes e depois dos jogos (recusando mesmo inúmeros pedidos que vinham de Inglaterra para conversas de fundo) e do que tinha em mãos como ponto de partida no plantel do United. Por outro, viveu demasiado para quem só queria que a época recomeçasse do zero com inúmeros episódios em que ficou a pensar se tinha tomado a decisão certa. Amorim só queria sobreviver ao tempo mas o tempo nunca parou e as imagens de desalento com o que via em campo iam-se multiplicando.

Apoio de Jim Ratcliffe, “secador” no balneário como Sir Alex e uma TV partida em fúria: o último pós-derrota de Amorim

O The Telegraph recorda um esses episódios em fevereiro, quando o United saiu a perder por 2-0 frente ao Everton em Goodison Park ao intervalo. Como recorda a publicação, Ruben Amorim nunca foi propriamente de discursos longos no período de descanso mas, nesse dia, passou quase de raspão pelo grupo para dizer que não tinham existido ao longo de 45 minutos e ficou a maior parte do tempo sentado de cócoras no corredor exterior, a olhar para o chão. A equipa respondeu, empatou o jogo, chegou mesmo a ameaçar a reviravolta e saiu de Liverpool com uma igualdade que parecia valer mais do que isso. Antes tinha havido o episódio da TV partida no balneário após a derrota caseira com o Brighton, que deixou os jogadores atónitos pela forma como reagiu mas de certa forma a respeitar ainda mais o timoneiro por perceberem que ali estava alguém que só queria que as coisas corressem de outra forma – e que merecia mais dos jogadores para isso, sendo que essa terá sido a ocasião em que o português pensou duas vezes se seria mais solução ou problema.

A derrota com o Brighton não trouxe só uma TV partida: Ruben Amorim pensou em demitir-se logo em janeiro

Nenhuma publicação inglesa que fez o resumo do primeiro ano de Amorim em Manchester falou no cenário de saída, fosse por decisão do clube ou do próprio técnico, mas relatou momentos em que isso chegou a ser admitido, com o português a questionar o estado das coisas e a necessitar de maior segurança vinda de cima. A par da falta de resultados, tudo jogava contra: o clube estava a despedir pessoas, havia cortes em vários departamentos que tornavam o clima mais pesado e Ruben Amorim sentia o peso extra dos insucessos pelo momento que o Manchester United vivia. Nessas ocasiões, Wilcox esteve sempre junto do treinador e Omar Berrada foi uma presença constante em Carrington, fortalecendo a ligação entre o trio e dando um parecer positivo a medidas menos populares como as saídas de Garnacho, Rashford, Antony ou Sancho.

O puzzle, o exemplo Cantona e a mudança no parque de estacionamento: Jason Wilcox diz que Man. United tem de “desenvolver a ideia” de Amorim

O investimento na equipa no verão foi outra das provas de confiança da estrutura com o técnico. Nem tudo foi como queria. Por exemplo, na baliza, sendo claro que André Onana não iria contar, o português preferia a chegada de alguém como Emiliano Martínez para a baliza mas teve de aceitar a aposta menos dispendiosa em Senne Lammens, que o gabinete de recrutamento apontava como um dos guarda-redes com mais futuro a médio prazo. No entanto, teve as três unidades para o ataque, duas identificadas com as ideias que tinha para a equipa (Matheus Cunha e Bryan Mbeumo) e uma entre o leque de possíveis referências ofensivas em cima da mesa (Benjamin Sesko). Ao todo foram quase 250 milhões de jogadores em apenas quatro jogadores que poderiam interpretar o seu sistema de forma mais harmoniosa e resolver os problemas no ataque.

Passes longos do guarda-redes, futebol mais direto e menos risco: como Ruben Amorim mudou o United sem mudar o sistema tático

Problema? A finalização. Apesar de ser uma equipa ainda capaz do melhor e do pior em que qualquer fase menos conseguida no jogo tende a transformar-se numa quebra anímica e emocional que tem depois reflexo nos resultados, o United melhorou o seu rendimento mas ainda é a equipa com pior taxa de eficácia na relação remates/golos. Apesar dos recentes empates a dois com Nottingham Forest e Tottenham, a equipa atravessa o momento mais alto da temporada, com cinco jogos sem derrotas e o prémio de Treinador do Mês para Ruben Amorim em outubro. Qual foi o segredo? Um núcleo forte, muito trabalho de campo e transparência, sempre fiel ao sistema tático que defende mas com atualizações como os passes longos do guarda-redes, um futebol que se tornou mais direto e um menor risco em termos de exposição ao erro.

Além de Bruno Fernandes, que é uma autêntica extensão do técnico no relvado e aquele que mais ligação tem ao treinador até pela função de capitão principal da equipa, há um núcleo duro com Harry Magurire, Diogo Dalot, Mazraoui, Tom Heaton e Lisandro Martínez que sustenta o equilíbrio no grupo. Depois, a questão dos treinos. Amorim costuma dispor a equipa a jogar sem adversário para definir comportamentos com e sem posse mediante o local onde está a bola e chega a fazer correções mínimas de um/dois metros para poder enraizar uma ideia de jogo que permite rodar jogadores mantendo os processos. Ao mesmo tempo, também é frequente trabalhar situações de 5×5 com o objetivo de chegar ao golo. O sistema não é unânime, sobretudo visto de fora para dentro, mas há pontos como a química que tem crescido entre Amad Diallo e Mbeumo com o costa-marfinense a fazer toda a ala que mostra que pode fazer sentido com os jogadores que tem.

“Quando ganhamos não é o sistema, quando perdemos a culpa é do sistema.” Rooney perdeu a fé, mas Amorim mantém a ideia

A “corda” chegou a esticar ao limite na presente temporada, depois da derrota com o Grimsby Town. “Os jogadores falaram muito alto, mostraram no campo aquilo que querem para a temporada. A melhor equipa, a única equipa que esteve em campo, ganhou. Algo vai ter de mudar e não será outra vez trocar 22 jogadores para isso. Acho que eles [os jogadores] deram a resposta em campo, não preciso falar mais sobre isso”, comentou. “Para ser sincero convosco, todas as vezes que tivermos uma derrota como esta vou dizer que às vezes odeio os meus jogadores, às vezes amo-os, às vezes quero defendê-los. Esta é a minha maneira de fazer as coisas e vou agir assim. Senti isso naquele momento, estava muito frustrado e irritado. E sei, mais uma vez, que vocês têm muitas pessoas experientes que falam sobre como deveria lidar com a imprensa, para ser mais constante, para ser mais calmo. Eu não vou agir assim”, disse dois dias depois.

“Algo tem de mudar e não será trocar de novo 22 jogadores”: Amorim visa equipa após humilhação e deixa futuro do United em aberto

Em paralelo, existe um outro lado menos conhecido que consolida a posição de Ruben Amorim no clube: a forma como dá a cara para fora e também em termos internos. Um exemplo muitas vezes dado tem a ver com o pedido para que metade dos jogadores estivessem com adeptos e dessem autógrafos à porta de Old Trafford e a outra metade fizesse o mesmo à saída. De forma natural, essa começou a ser uma prática corrente, o que caiu bem a todos os intervenientes. Em paralelo, o técnico português participa em vários eventos internos do clube, colocando sempre a tónica na grandeza do Manchester United como clube que vai dando passos seguros para voltar a ter esse estatuto também em campo no futuro pelo bem de todos sem esquecer as transformações necessárias que foram sendo feitas e que envolveram dispensas de trabalhadores.

Um ano depois, os red devils vão dando sinais de alguma melhoria mas ainda estão longe desse tal patamar. “Temos muitos problemas, estamos apenas no início. Sei que, por vezes, os resultados mostram às pessoas que estamos a melhorar mas ainda há muito por fazer”, assumiu Ruben Amorim depois do último empate em Londres com o Tottenham, num jogo de loucos onde esteve na frente durante vários minutos, permitiu a reviravolta nos descontos mas ainda conseguiu chegar ao 2-2 no último suspiro da compensação. Apesar de todas as críticas e das notícias que o davam como “condenado”, o português continua a trabalhar para um futuro melhor com principal ensinamento que retirou do primeiro ano (que foi mais ano zero do que outra coisa): “Durante a maior parte do tempo como treinador estive a ganhar e quando ganhamos pode dizer-se que temos convicções e que somos leais às nossas ideias. Mas isso aprende-se quando se perde. Essa foi a maior lição: quando estou sob pressão, consigo manter-me fiel ao meu plano e às minhas ideias”.

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