O ano era 2020, o mundo atravessava os primeiros e tensos meses da pandemia e, como todo cidadão americano, Ari Aster sentia-se perdido em meio ao manancial de informações desencontradas, a histeria sanitária do lockdown, as intrigas das redes sociais e os desmandos da primeira administração Trump. Sentindo-se “sobrecarregado por tudo, porque a situação estava ficando insuportável” e em busca de “uma válvula de escape”, o autor de “Hereditário” (2018) começou a esboçar um roteiro para um possível projeto que refletisse aquele ambiente caótico e explosivo, um momento que ele considera decisivo na história da sociedade moderna.
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“Eddington”, o filme resultante e que chega nesta quinta, 13 de novembro, aos cinemas brasileiros, não é exatamente um drama sobre os tempos da Covid, mas o descreve como um ponto de ruptura definitiva entre dois mundos.
— Nos últimos 20 anos, temos vivido a era de hiperindividualismo. Aquela força comunitária, que parecia ser central em democracias, desapareceu. A Covid parece ter sido o momento em que essa ligação foi finalmente cortada — disse o diretor em maio, durante o Festival de Cannes, onde “Eddington” ganhou première mundial. — Escrevi essa história em um estado de medo e ansiedade em relação ao mundo. Queria fazer um filme sobre o que os Estados Unidos representavam para mim e como eu me sentia naquele momento. Tentei me distanciar dos fatos e simplesmente descrever como é viver em um mundo onde ninguém consegue mais concordar sobre o que é real ou não.
Ambientado na cidade fictícia do estado do Novo México que dá título ao filme, “Eddington” se passa durante os primeiros meses da pandemia, e usa as rixas entre Ted Garcia (Pedro Pascal, da série “The last of us”), o prefeito neoliberal e dono do bar local, e Joe Cross (Joaquin Phoenix), o xerife conservador do vilarejo, como um microcosmo da fragmentação política, social e ideológica do país naquele momento.
Em meio ao decreto de confinamento e à imposição do uso de máscaras, que são contestados pelo xerife, a cidade é bombardeada por ecos do movimento Black Lives Matter, teorias conspiratórias e notícias falsas disseminadas pela internet, e a ameaça de roubo de dados por grandes empresas de tecnologia.
A população da cidade, já desconfiada, assustada e dividida, agora também verá seu xerife se lançar como candidato à prefeitura, anunciada com galhardia nas redes sociais.
Pedro Pascal em cena de ‘Eddington’ (2025) — Foto: Divulgação
Dois outros personagens acrescentam lenha à fogueira de dramas e vaidades da disputa eleitoral: Louise (Emma Stone), mulher de Joe, que viveu um romance com o atual prefeito no passado; e Dawn (Deidre O’Connell), mãe do xerife, hospedada na casa do filho, ferrenha disseminadora de teorias conspiratórias sobre as origens da pandemia e de informações falsas.
A intrincada trama construída por Aster sugere que todas essas forças alimentaram o barril de pólvora no qual o país se tornou.
— As pessoas se agarram a seus dogmas religiosos e políticos e se fecham dentro de bolhas. Elas se sentem muito poderosas nessas bolhas, mas também muito assustadas. O filme fala sobre o que acontece quando as pessoas se isolam umas das outras, e passam a viver nas realidades que construíram para si — entende Aster, que nasceu em Nova York. — Quando esses grupos, essas bolhas, entram em conflito umas com as outras, atacam umas as outras, uma nova lógica começa a ser criada. A partir daí, as pessoas passam a amplificar seus medos e paranoias, e isso é extremamente perigoso.
O realizador de 39 anos é um reciclador de gêneros. Usou a estética do terror para examinar a dinâmica de uma família desfuncional em “Hereditário” e o término de uma relação amorosa em “Midsommar” (2019). “Beau tem medo” (2023), seu filme anterior, é uma comédia de humor negro de tons surrealistas sobre um homem atormentado pela perda da mãe.
Com “Eddington”, Auster finalmente conseguiu realizar o antigo sonho de trabalhar com os elementos do faroeste porque, segundo ele, “é um gênero que fala da construção dos Estados Unidos, e o que sinto é que estamos vivendo um colapso de algo e o nascimento de outra coisa, que se reflete em outros governos recentes no mundo”.
Há até uma espécie de duelo entre Ted e Joe ao estilo de “Matar ou morrer” (1952), de Fred Zinnemann, para coroar a referência ao western americano. A sequência é um dos pontos críticos da disputa de valores entre Joe e Ted, que planeja trazer para a cidade um grande empreendimento. O xerife também despreza os habitantes da reserva indígena nas proximidades de Eddington, que apenas lutam pela defesa de seu território e tradições.
Emma Stone em cena de “Eddington” — Foto: Divulgação
Ao mesmo tempo, o atual prefeito permite a construção na cidade de um centro de dados de uma big tech, sem considerar os impactos sociais e ambientais do projeto.
— Gosto como Ari fala de se sentir desvinculado de uma verdade e de um sentimento de coletividade — disse Pascal, chileno naturalizado norte-americano. — Estou acostumado a observar a cultura dos Estados Unidos do lado de fora, como um estrangeiro, e há muitas maneiras de ver questões políticas e sociológicas dessa cultura muito complexa. Acho que Ari funciona como um informante, alguém de dentro dizendo “é isso que está acontecendo aqui!”. O filme fala de um mundo onde não há mais um sentido de verdade comum, e acho isso muito corajoso da parte dele.
Phoenix, que trabalhou com Aster em “Beau tem medo”, disse sentir “carinho e afeto por Joe, um personagem que busca desesperadamente por validação e conexão com os outros”.
O xerife não é exatamente um herói: incrimina o único policial negro da delegacia em um assassinato, tenta conter um manifesto local ligado ao movimento Black Lives Matter e enfrenta com uma metralhadora um suposto ataque terrorista antifascista.
Mas todos os personagens de “Eddington”, de certa maneira, carregam algum tipo de ambiguidade moral ou ética. O diretor afirma que não pretendia privilegiar lados ideológicos ou partidários:
— Tenho a impressão de que estamos vivendo um experimento que deu errado. É uma estrada perigosa.