Pouco acontecia naquela parte de Fernão Ferro. Esta quinta-feira, a rua estreita onde passam poucos carros ficou repleta de veículos dos bombeiros e da GNR. Encostado a uma parede estava um grupo de vizinhos do casal, a comentar o que havia acontecido durante a noite. “Em mais de 40 anos, nunca aconteceu uma coisa assim”, referem.
Até há cerca de um ano, a rua Santa Marinha limitava-se a uma faixa de terra batida, relatam. Agora, neste mesmo espaço, vê-se entulho a preencher o espaço entre as casas e algumas sarjetas que parecem ter sido instaladas recentemente — e os moradores questionam se estas estariam funcionais. “Provavelmente nem estão ligadas”, atira um, apontando os dedos à autarquia, numa opinião partilhada pelos vizinhos que prestam apoio aos familiares das vítimas.
“Eu acho que as obras têm influência nisto tudo”, confessa o filho mais velho do casal. “Eles moravam aqui há 40 e tal anos e nunca aconteceu nada assim. Agora, depois destas obras, a água fica aqui toda entupida”, continua Francisco. Na sua ótica, e de muitos outros, este projeto da Câmara Municipal do Seixal para a requalificação da via poderá estar relacionado com a tragédia.
No local, poucas horas depois de terem chegado as autoridades, o vereador com o pelouro da Proteção Civil afastou qualquer responsabilidade autárquica neste caso isolado, quando confrontado pelos jornalistas sobre as queixas apresentadas pelos moradores. “Os moradores todos têm opiniões nestes momentos”, referiu Joaquim Tavares, afirmando que não está em condições de garantir que houve uma relação de causa-efeito.
Assim, não admitindo que as obras iniciadas há mais de um ano tenham sido o fator decisivo para este alagamento sem precedentes, o responsável camarário acrescenta que a casa do casal — como a grande maioria na região — foi construída numa “área urbana de génese ilegal” (AUGI). “É no contexto dessa realidade que estão a ser realizadas obras pela administração da AUGI, que é quem tem a competência nessa matéria”, disse também.
Joaquim Tavares diz que esta ocorrência surge depois de “uma situação muito particular, de uma grande intensidade da chuva”, mas que situações semelhantes “existem há muitos anos e os problemas que tiveram nunca foram desta natureza”. Para o vereador, só havia uma forma de evitar este desenlace trágico: “Não deveria ter havido estas construções nestes sítios”. Questionado se a solução passaria por demolir a casa — antes do episódio desta quinta-feira — o responsável pela Proteção Civil no Seixal admite que não estar a par do processo específico da residência afetada, nem sobre possíveis diligências feitas no passado em relação à sua segurança.
“Está numa situação de construção ilegal, como estão tantas outras na região”, responde aos jornalistas, confirmando que, internamente, “estão a ser vistas soluções para que se possa desativar estas habitações”. Nenhuma das potenciais soluções passa, no entanto, por legalizá-las: “Não, está numa zona ilegal, como é que podia ser legalizada?”.
À Rádio Observador, o presidente da Câmara Municipal do Seixal reforça as palavras transmitidas pelo vereador, esclarecendo que “quase toda a freguesia de Fernão Ferro é de génese ilegal” e que, nesse sentido, a casa do casal de 88 anos que morreu esta quinta-feira estava numa zona “em obras de reconversão”. Sem reagir também às preocupações apresentadas pelos moradores, Paulo Silva acrescenta que cerca de três mil lotes na freguesia estão inseridos neste mesmo plano de reconversão — processo com vista à legalização das construções — que esperam ter concluído até 2030.
“O senhor vereador diz que é ilegal, mas depois recebem os IMIs, recebem tudo… A questão é essa”, reagiu Francisco, o filho mais velho do casal, às declarações da autarquia sobre o episódio. Com várias suspeitas em cima da mesa sobre o que poderá ter estado na origem deste incidente, a Polícia Judiciária chegou ao local rapidamente para assumir as rédeas da investigação, tendo começado imediatamente a inspecionar a casa, a falar com testemunhas e a fotografar as imediações da residência.