Durante 25 anos, serviu entre o Palácio de Buckingham e os hotéis Claridge’s e Dorchester. Na sua escola, três edições anuais acolhem pequenos grupos de seis a oito alunos. “Ao longo da última década formámos mais de cem profissionais, mas o número não importa. O que importa é a transmissão de um espírito. Os valores intemporais — respeito, lealdade, integridade — permanecem. O que muda é a forma de os expressar.”
Hoje, os formandos aprendem tanto a gerir sistemas de domótica como a servir um jantar de Estado. “A tecnologia deve elevar a eficiência, não substituir a empatia. O mordomo é quem mantém o calor humano num mundo automatizado.”
Luxo invisível e pedidos impossíveis
O luxe mede-se hoje, mais do que nunca, pelo silêncio, pela privacidade, pelo tempo recuperado. “Os clientes perceberam que a única coisa que não podem comprar é tempo”, diz Vermeulen. “E é por isso que o mordomo existe.”
O novo luxo é o conforto sem esforço , a serenidade que acontece sem que se perceba o mecanismo. Paul Pritchard chama-lhe “elegância invisível”: “O melhor serviço é aquele que ninguém nota. O mordomo cria uma vida que flui, o luxo de não precisar de pedir”, diz-nos.
Mas esse luxo tem também o seu lado insólito. Porém – o português Luís Miguel frisa bem –, “não há pedidos estranhos”. Em 2024, uma longa reportagem da 1843 Magazine (The Economist) relatou vários episódios que ilustram o absurdo quotidiano da elite global. Um agente especializado em contratar mordomos recordou pedidos tão extravagantes quanto um cliente que exigiu que um elefante fosse levado para uma estância de esqui para o aniversário da filha (não se concretizou), ou outro que quis que um iogurte favorito fosse enviado por avião desde a Rússia até ao iate onde estava, pedido surpreendentemente atendido.
Um mordomo conseguiu um camarote para a final da Liga dos Campeões com apenas três horas de antecedência. Outro garantiu a última mesa da noite de encerramento do El Bulli, o lendário restaurante espanhol de Ferran Adrià. E houve quem procurasse uns sapatos sem marca vistos numa fotografia, encontrando-os no Havai e enviando-os para o Dubai num assento de primeira classe de avião.
“Fazer tudo a qualquer hora” é o novo mandamento do serviço extremo, uma fronteira onde o profissionalismo se confunde com a magia.
Entre a disciplina e a fragilidade
A mesma reportagem conta a história de Bennett, britânico de 30 anos, ex-agente da Polícia Metropolitana de Londres. Bennett deixou o que descrevia como “uma vida sombria” para se formar na International Butler Academy (TIBA), atraído pela disciplina e pelo brilho da profissão. “Queria manter a sanidade num mundo mais glamoroso”, confessou, “mesmo sabendo que isso me torna num ativo descartável.”
Bennett foi contratado por uma família do Médio Oriente radicada em Londres. Descobriu, então, que o seu papel era menos o de mordomo clássico e mais o de gestor da imagem pública da família – organizando consultas privadas, eventos discretos e a presença social dos patrões. O salário era tentador: 52 mil libras por ano, com promessa de duplicar após o período experimental. Mas não havia contrato formal. “O trabalho é exigente, vulnerável e precário”, relatou à revista. O mordomo, conclui a 1843, é simultaneamente símbolo de prestígio e trabalhador descartável, o elo mais humano numa cadeia de luxo que se quer sem falhas.
Salário, segredos e sacrifício
O que torna, então, a profissão atrativa? Vermeulen explica: “Os nossos estudantes têm entre 20 e 60 anos, com percursos muito diversificados — prova de que a profissão transcende gerações. A profissão continua a atrair, mas por razões diferentes: viagens e experiências internacionais (trabalhar com famílias globais), independência (muitos optam pelo freelance), acesso a um mundo exclusivo (jatos privados, iates, propriedades excecionais), desenvolvimento pessoal (disciplina, excelência, crescimento contínuo). Por último, mas muito importante, a remuneração atrativa (salários competitivos no setor de luxo)”.
Tomando as declarações de Vermeulen, “o salário médio de um mordomo é muito difícil de determinar com precisão. Os padrões europeus, americanos e asiáticos diferem consideravelmente, tornando qualquer generalização praticamente impossível. É também essencial compreender que os benefícios constituem uma parte muito importante da remuneração total. Estes benefícios incluem frequentemente alojamento, alimentação, veículo, seguros e outras regalias que não se refletem no salário base”. As disparidades são grandes: “Um mordomo privado na Europa ganha entre 3.000 e 7.000 euros por mês, com benefícios que incluem alojamento e veículo. Profissionais freelancer que gerem iates ou múltiplas residências chegam aos 10.000 euros mensais, enquanto os mordomos de cruzeiro recebem 1.500 euros base, mas somam gorjetas que podem sextuplicar o valor”.
Médio Oriente, Rússia e China são os novos mercados com maior procura e muitas das capitais estão a abrir novas escolas de mordomos de luxo.
“Um mordomo-chefe de uma família “ultra high net worth” (ultra-rica, em tradução livre) pode ganhar tanto quanto um diretor de hotel de cinco estrelas”, confirma ao DN o britânico Paul Pritchard. “Mas a motivação raramente é o dinheiro. É a vocação. A arte de tornar a vida dos outros mais bela e mais simples.”
Luís Miguel sorri ao ouvir a comparação. “Em Portugal, esse nível de remuneração não existe. Aqui é sobretudo paixão. E uma enorme capacidade de sacrifício.”
A filosofia do serviço
Apesar da modernização tecnológica, o núcleo da profissão mantém-se inalterado. “A cortesia nunca passa de moda”, diz Luís Miguel. “O que muda é a forma de a praticar.”
Na School for Butlers & Hospitality, Vermeulen dedica um dia inteiro às chamadas soft skills. “A empatia não se ensina com slides. Ensina-se pelo exemplo, pelo silêncio, pela observação.”
Na Exclusive Butler School, Pritchard recria cenários realistas: uma falha de protocolo, um conflito doméstico, um hóspede insatisfeito. “Queremos que os alunos sintam a pressão e aprendam a reagir com serenidade”.
Vincent Vermeulen imagina o futuro com precisão: “Em 2035, o mordomo será um gestor de estilo de vida. Terá de dominar sustentabilidade, bem-estar, tecnologia — e, acima de tudo, inteligência emocional.”
Pritchard completa: “Supervisionará casas que pensam, sistemas que respondem e experiências que nutrem. O mordomo continuará a ser o toque humano num mundo de máquinas.”
Luís Miguel, que começou a servir quando os telefones ainda tinham fios, sorri: “Pode haver inteligência artificial, mas a empatia continua manual.” No fundo, nada mudou: o mordomo , seja o Jeeves espirituoso, o Mr. Stevens melancólico ou o profissional contemporâneo com tablet na mão, continua a ser o guardião invisível do equilíbrio. E talvez seja por isso que, apesar das transformações tecnológicas, a frase de Vermeulen soe como profissão de fé: “A hospitalidade do futuro usa a tecnologia do futuro e as emoções do passado.