O deserto mais seco da Austrália está a florescer novamente depois de uma cheia histórica que está a atrair aves, mamíferos e visitantes de todo o mundo
Nas imagens de satélite, parece um conjunto de grandes manchas de tinta azul e verde – a espalharem-se, a fluírem, a penetrarem no papel pardo do deserto. No árido centro da Austrália, essas manchas representam um novo mar interior, nascido de um dilúvio que percorreu centenas de quilómetros através das veias de um continente gigantesco e ressequido. O raro fenómeno está agora a devolver vida ao deserto, atraindo mamíferos, aves e turistas para o coração do outback australiano.
“Imponderável” – é assim que o ecologista Richard Kingsford, da Universidade de Nova Gales do Sul, descreve as possibilidades de descoberta científica abertas por este oásis súbito numa das regiões mais secas do planeta.
“São as aves aquáticas, a espetacular corrente de água a atravessar o meio do deserto. São os peixes nos rios. E são também os meses seguintes, quando tapetes de flores silvestres cobrem o deserto”, diz. “Eventos raros não são bem compreendidos, precisamente porque são raros. Não sabemos ao certo quão grande será esta cheia.”
Kati Thanda–Lake Eyre é um lago efémero com 9.500 quilómetros quadrados e, apesar do nome, raramente está cheio. Recebe em média apenas 14 centímetros de chuva por ano e pode ser descrito mais como uma gigantesca planície salgada no deserto da Austrália do Sul. Em 1964, o britânico Donald Campbell, recordista de velocidade em terra, utilizou o leito seco do lago como pista de corrida, atingindo então um recorde mundial de 648 km/h na vasta superfície branca e sem interrupções.
Dez anos depois, em 1974, o lago encheu-se completamente pela terceira vez desde que há registos. Essa cheia tornou-se o marco máximo de nível de água – nunca mais repetido, embora cheias menores tenham sido observadas nos últimos anos. Este ano, depois de o ciclone tropical Alfred ter despejado chuva no interior de Queensland, em março, a água que desce até Kati Thanda-Lake Eyre parece estar a enchê-lo pela quarta vez em 160 anos.
Esta animação, composta por 16 imagens captadas pelo satélite Terra da NASA, mostra a evolução do lago Kati Thanda-Lake Eyre entre 29 de abril e 12 de junho. (Imagem: NASA)
“Um enorme boom turístico”
Dois grandes sistemas fluviais alimentam o lago: o rio Georgina-Diamantina, que começou a preencher o norte de Kati Thanda-Lake Eyre em maio, e o sistema Cooper Creek. O Cooper Creek, batizado de forma algo errónea pelo explorador britânico Charles Sturt, está longe de ser apenas um riacho. “Durante uma cheia, pode ter entre 60 e 80 quilómetros de largura”, explica RichardKingsford.
A água trazida por este segundo sistema ainda não chegou ao lago e poderá não ter o seu efeito total antes de outubro. Quando finalmente chegar, o ecossistema desértico viverá os extremos explosivos do seu ciclo de abundância e escassez. Camarões e crustáceos desovarão, as populações de peixes dispararão, mamíferos como o rato-mulgará de cauda com penacho, em perigo de extinção, e o rato-saltador-escuro terão a oportunidade de se reproduzir. Pelicanos, pernilongos e outras aves aquáticas chegarão de lugares tão distantes como a China e o Japão. O pó e a areia transformar-se-ão em verde, florindo em arbustos nativos com cores vibrantes.
Uma imagem recente mostra as águas da enchente a passar pela bacia do Lago Eyre. “Há esperança”, diz Annemarie van Doorn, co-gestora do Santuário de Vida Selvagem Kalamurina. (Imagem: Annemarie van Doorn)
E as aves não serão as únicas a voar até este oásis. “Já não existem muitos lugares selvagens na Terra, e este é um deles – selvagem e espetacular”, diz Richard Kingsford. “Estas cheias atraem, claramente, inúmeros visitantes locais e internacionais para testemunhar este fenómeno. Provocam um enorme boom turístico.”
Mas o aumento de visitantes não tem sido isento de dores de crescimento, à medida que a região se adapta à sua nova popularidade.
Em fevereiro, o governo da Austrália do Sul anunciou uma proibição de caminhar sobre o leito do lago, tanto para proteger a frágil crosta de sal e a superfície como para prevenir ferimentos numa zona remota, onde a ajuda médica pode estar longe. A medida também respeita as práticas culturais do povo Arabana, que considera o lago sagrado.
Segundo um relatório recente da emissora pública ABC, porém, algumas pessoas continuam a aventurar-se sobre o leito do lago devido à falta de sinalização que destaque a proibição. O governo já prometeu instalar novos sinais e infraestruturas para visitantes em breve.
A distância como proteção
As enchentes trazem vegetação para o interior, como mostra esta foto aérea da bacia do Lago Eyre. (Imagem: Arid Air)
Para servir o mercado turístico, operadores como Phil van Wegen dedicam-se a uma vida no remoto outback australiano. Em Marree, uma pequena localidade a sul de Kati Thanda–Lake Eyre, Van Wegen gere a Arid Air, uma empresa que oferece voos panorâmicos sobre o enorme lago em pequenos aviões Cessna de hélice.
“O voo, o percurso que fazemos, deixa as pessoas maravilhadas”, conta. Para ele, o deserto é “vasto, em constante mudança e espetacular.” “Se alguém tem vontade de vir ver isto, Marree é um destino relativamente fácil. Estamos apenas a cerca de 700 quilómetros de Adelaide, e há alcatrão até à porta”.
A linha ferroviária The Ghan passava por Marree até aos anos 1980, assegurando um “pequeno centro movimentado”, diz Van Wegen. Hoje, ele é um dos cerca de 50 a 60 habitantes e acredita que são as grandes distâncias que ajudam a manter Kati Thanda–Lake Eyre intocado.
“Tem sorte por ser tão remoto. Está tão longe de tudo que ninguém o toca, nem o explora. Isso é a sua própria forma de autopreservação.”
Ritmos naturais
Isso não significa, no entanto, que Kati Thanda–Lake Eyre não tenha protetores.
Os conservacionistas Annemarie van Doorn e Luke Playford vigiam a região como sentinelas. Juntos, gerem o Santuário de Vida Selvagem de Kalamurina, uma propriedade de 679 667 hectares pertencente à Australian Wildlife Conservancy, situada na margem oriental do lago. A vastidão do território que supervisionam só pode ser verdadeiramente compreendida a partir do helicóptero que utilizam no seu trabalho de conservação – a área pela qual são responsáveis é do tamanho do estado norte-americano de Delaware.
Quando a região está seca e as estradas transitáveis, conseguem chegar ao supermercado mais próximo – a nove horas de carro, na cidade de Port Augusta. Agora, porém, as cheias cortaram as estradas de terra que os ligam ao resto do mundo. Permanecerão na sua casa do deserto, isolados pela água durante meses, possivelmente até ao final do ano. O Royal Flying Doctor Service aterra ali uma vez por mês para verificar o seu estado.
“Não se vê nada à volta. É tão, tão silencioso”, conta Annemarie van Doorn à CNN internacional por telefone. “Não há poluição luminosa, não há ruído. E olhamos para cima e há um dingo a passear na duna de areia, e pensamos: ‘Que sortudos somos nós’.
Depois há outros momentos em que tens moscas a rastejar-te pelo nariz e pelos olhos, e estão 48 graus, e pensas: ‘Isto é miserável’, mas fazes tudo por uma grande causa.”

A grande causa do casal é manter o ambiente intocado – o que implica sobretudo controlar a população de animais selvagens invasores, como javalis e camelos. Cerca de dois terços da água que chega a Kati Thanda-Lake Eyre passa por Kalamurina, e o casal observa a vida a transformar o seu mundo árido.
“Isto é especial porque é um evento natural”, diz Luke Playford. “É a maior cheia em 50 anos e, embora tenha causado muitos danos em Queensland, não é um fenómeno induzido pelas alterações climáticas. É uma ocasião única”. “É uma boa notícia”, acrescenta Annemarie van Doorn. “Há esperança.”
Essa esperança é partilhada por Richard Kingsford, o ecologista, que se juntará a turistas, conservacionistas e outros cientistas em longas viagens por estrada e ar através do outback para vislumbrar um deserto temporariamente fértil.
“Sou biólogo de conservação, e é muitas vezes deprimente observar o mundo e o que lhe fazemos. Mas isto dá-me um otimismo incrível – ver este sistema ainda a cumprir os seus ritmos naturais de forma tão espetacular.”