Lançado em 1972, “O Discreto Charme da Burguesia” (Le Charme Discret de la Bourgeoisie) é uma obra-prima do surrealismo cinematográfico. A história acompanha seis amigos da alta sociedade europeia que tentam se reunir para um jantar, mas são constantemente impedidos por acontecimentos inesperados: invasões militares, corpos na sala ao lado ou interrupções absurdas.
O roteiro alterna com naturalidade entre a realidade e sonhos dos personagens, criando uma sensação de confusão proposital. Essa mistura contribui para a ironia do filme: enquanto tentam manter aparência de normalidade, o mundo ao redor desmorona.
Personagens e elenco de destaque
O elenco é formado por nomes consagrados do cinema europeu. Fernando Rey interpreta don Rafael Acosta, diplomata de um país latino-americano fictício, envolvido em negociações ilícitas e, ao mesmo tempo, impecavelmente elegante. Jean-Pierre Cassel e Stéphane Audran vivem o casal Henri e Alice Sénéchal, cuja compostura formal contrasta com a incapacidade de realizar o simples jantar. Delphine Seyrig, no papel de Simone Thévenot, transmite serenidade e leve melancolia, enquanto Bulle Ogier, como Florence, incorpora inquietação e questionamento existencial.
A entrega dos atores torna o absurdo cotidiano ainda mais potente. Cada personagem mantém sua compostura mesmo nas situações mais bizarras, reforçando a crítica de Buñuel à hipocrisia da elite.
Cenas marcantes e simbolismos
Diversas sequências do filme se destacam pelo simbolismo e pelo humor ácido. Em uma delas, o grupo é convidado para um jantar militar, mas a sala se transforma inesperadamente em um palco de teatro, com uma plateia observando e vaiando suas ações. A cena revela, de forma clara e irônica, a fragilidade da aparência burguesa diante do olhar externo.
Outra sequência emblemática mostra os personagens chegando à casa de um anfitrião que, de maneira inusitada, foge pelos jardins para encontros amorosos. Esse momento expõe a tensão entre a fachada de respeito social e os desejos privados, reforçando a crítica de Buñuel à hipocrisia da elite. Ao mesmo tempo, ocorrências políticas, invasões militares, treinamentos e situações inesperadas, interrompem constantemente a rotina dos personagens, evidenciando o distanciamento da burguesia em relação ao mundo real.
Buñuel também recorre de forma recorrente a sonhos e pesadelos, misturando narrativas desconexas, memórias de infância e experiências oníricas com a trama principal. Essa alternância entre fantasia e realidade intensifica a sensação de absurdo e reforça a crítica à lógica muitas vezes superficial e ritualista da alta sociedade.
A crítica mordáz à burguesia
Luis Buñuel constrói sua narrativa por meio de uma combinação precisa de humor irônico, surrealismo e descontinuidade. Segundo o site da Criterion Collection, a estrutura zig-zagueante do filme permite que um evento, um estado de espírito ou um gênero transite para outro sem aviso, como se a realidade se transformasse em sonho e vice-versa.
Essas transições tão fluidas, mas sempre carregadas de absurdo, fazem com que sequências aparentemente ilógicas pareçam parte natural do universo dos personagens, reforçando a ideia de que o extraordinário é banal para a alta sociedade.
Os diálogos, muitas vezes centrados em horóscopo, etiqueta social e política superficial, contrastam sistematicamente com eventos dramáticos ou violentos que eclodem sem aviso. Essa justaposição evidencia a futilidade e a hipocrisia da classe alta, a aparência refinada esconde desejos escusos, como corrupção e perversão moral.
Além disso, Buñuel utiliza interrupções sonoras deliberadas, com aviões, carros, campainhas, para quebrar a estabilidade narrativa e introduzir elementos inesperados. Esses sons funcionam simbolicamente, sugerindo a fragilidade do poder e da compostura burguesa como se qualquer momento pudesse desmoronar a fachada social. A ausência de explicações para os acontecimentos surreais reforça ainda mais a crítica social: o absurdo não é apenas um artifício estético, mas parte intrínseca do cotidiano privilegiado que o filme escancara.
Como observou a crítica Pauline Kael, Buñuel olha para a burguesia com um afeto humorístico, tratando seus personagens como perfeitamente amorais e tão confiantes de suas aparências que divertem mais que assustam.
Ironia, poder e corrupção
No centro de O Discreto Charme da Burguesia está uma crítica incisiva à hipocrisia, ao poder e à moralidade questionável da elite. Luis Buñuel revela como rituais sociais, jantares, encontros e aparências de cortesia, funcionam como máscaras que escondem corrupção, adultério e comportamentos ilícitos.
Os personagens mantêm a compostura mesmo diante de situações extremas, como tráfico de drogas, traições conjugais e ameaças políticas, evidenciando o vazio moral que sustenta sua “respeitabilidade”. A repetição de jantares frustrados e eventos interrompidos simboliza a rotina ritualizada e sem propósito da classe alta, revelando a superficialidade de seus valores.
A obra também faz críticas sutis à política e à religião, retratando diplomatas envolvidos em ditaduras fictícias, militares agressivos e figuras religiosas inseridas no jogo social. Essa abordagem evidencia a interdependência entre elite, poder e instituições, mostrando a incapacidade da burguesia de confrontar a realidade com ética e responsabilidade.
Prêmios e reconhecimento internacional
O Discreto Charme da Burguesia recebeu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1973, consolidando-se como obra-prima do cinema internacional. O filme também foi premiado pelo National Society of Film Critics de 1972 nas categorias Melhor Filme e Melhor Diretor.
A Criterion Colection destaca a produção como um dos pontos altos da carreira de Buñuel, celebrando sua habilidade em combinar crítica social, humor e surrealismo. Críticos de jornais e sites especializados enfatizam a relevância da obra, tanto em termos cinematográficos quanto sociais.
Relevância até os dias de hoje
Embora tenha sido lançado nos anos 1970, O Discreto Charme da Burguesia ainda conversa com o presente. A maneira como Buñuel expõe a hipocrisia, a desconexão e a falta de senso de realidade da elite continua familiar, basta olhar para o noticiário.
O filme mostra que convenções sociais funcionam como um escudo: tudo parece elegante, educado e controlado, mas basta um pequeno ruído para revelar contradições e comportamentos que ninguém quer admitir. Essa fachada é justamente o que torna a crítica tão duradoura.
A repetição dos jantares que nunca acontecem também permanece atual. É um lembrete de que a burguesia vive em círculos fechados, presa a rituais que dizem muito sobre a aparência e pouco sobre o mundo real. Buñuel aponta esse movimento com ironia, e o resultado continua reconhecível mais de cinquenta anos depois.
Outros filmes de Luis Buñuel
Além de O Discreto Charme da Burguesia, a filmografia de Luis Buñuel é marcada pelo surrealismo, pelo humor ácido e pela crítica social. Em “O Anjo Exterminador” (1962), o diretor mostra um grupo de convidados incapaz de deixar uma sala após um jantar sofisticado, uma metáfora poderosa para a paralisia e os limites da elite diante de suas próprias convenções. Já em “Diário de uma Camareira” (1964), Buñuel expõe a hipocrisia da alta sociedade francesa por meio da perspectiva de uma empregada que observa as contradições e desejos ocultos de seus patrões.
Outro destaque é “Viridiana” (1961), que provocou polêmica ao abordar religião, caridade e sexualidade de forma irônica e crítica, questionando moralidades impostas e dogmas sociais. Em “Simão, o Bravo” (1968), o diretor combina sátira e política, analisando estruturas de poder com sua marca registrada de humor e surrealismo.
Em “O Fantasma da Liberdade” (1974), Buñuel eleva o surrealismo a outro nível, apresentando uma série de episódios desconexos que revelam absurdos da sociedade e do comportamento humano. A obra desmonta hierarquias sociais e normas de conduta de maneira radical, mantendo o humor e a ironia que caracterizam seu cinema.
Onde assistir O Discreto Charme da Burguesia
O clássico de Luis Buñuel pode ser assistido na plataforma de streaming MUBI. Além disso, o filme terá exibições presenciais em São Paulo:
23 de novembro – Sala USP Maria Antônia
Rua Maria Antônia, 294 – Vila Buarque
Horário: 16h
27 de novembro – Sala Cinusp Paulo Emílio
Rua do Anfiteatro, 181 – Cidade Universitária, Colméia Favo 04
Horário: 18h
Essas sessões oferecem a oportunidade de conferir a obra em tela grande, valorizando detalhes do humor, do surrealismo e da crítica social que tornam o filme um clássico atemporal.
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