Alterações nas estruturas do coração, como danos nas válvulas que direcionam o fluxo sanguíneo e espessamento do músculo cardíaco, muitas vezes progridem por anos sem qualquer aviso. E quando os sintomas surgem, a doença pode já estar avançada. Um novo estudo apresentado no congresso da Associação Americana do Coração (AHA) propõe usar smartwatches como sentinelas para detectar essas modificações precocemente.
Sabendo que as alterações estruturais também acarretam mudanças no comportamento elétrico do órgão, os pesquisadores desenvolveram um sistema utilizando inteligência artificial que aprendeu a encontrar padrões a fim de transformar a função de eletrocardiograma (ECG) desses dispositivos em uma ferramenta de triagem. A inovação promete um rastreamento mais acessível para problemas que hoje exigem exames de imagem complexos.
Segundo os autores do estudo, a tecnologia não busca substituir exames de diagnóstico, mas criar uma primeira linha de defesa, identificando quem mais precisa de uma investigação aprofundada. Os resultados são considerados preliminares, mas são animadores.
Em vez de 12 derivações usuais (ou projeções sobre as quais o sinal elétrico do coração pode ser visualizado), o ECG de um smartwatch tem apenas uma. Para conseguir aproveitar a informação dos dispositivos, os pesquisadores deram um passo atrás e usaram 266 mil ECGs de mais de 110 mil pacientes para treinar o novo modelo. Eles isolaram a derivação 1 do ECG, que corresponde à capturada pelo relógio. Aí ensinaram o algoritmo a encontrar padrões de doenças estruturais a partir dessa única fonte de dados.
No entanto, o principal obstáculo não era apenas a limitação do sinal, mas sua imperfeição no mundo real. Diferente de um ambiente clínico controlado, os dados de um smartwatch são suscetíveis a interferências. “ECGs adquiridos com smartwatches são mais propensos a artefatos de movimento, desvios de linha de base e problemas de contato intermitente”, detalha Arya Aminorroaya, um dos autores do estudo, conduzido no hospital Yale New Haven.
Para contornar isso, a equipe treinou o modelo de IA adicionando deliberadamente “ruído gaussiano” aleatório, tornando-o mais robusto para interpretar os sinais imperfeitos do dia a dia. Essa capacidade de decifrar sinais imperfeitos seria o fator decisivo para o sucesso do algoritmo fora do laboratório, permitindo que mantivesse uma performance notável mesmo em condições do mundo real.
Embora os testes tenham sido feitos principalmente com Apple Watch, a tecnologia não está limitada a esse dispositivo, diz Rohan Khera, professor na Escola de Medicina de Yale que lidera a pesquisa. “Qualquer dispositivo vestível capaz de registrar um ECG de derivação única pode oferecer esse tipo de triagem baseada em IA. Isso inclui dispositivos como Fitbit, Garmin, Samsung e outros, além de ECGs portáteis como o AliveCor Kardia. O requisito essencial é o acesso a dados de ECG de qualidade suficientemente alta e minimamente filtrados. Com isso, a IA pode ser amplamente implementada por meio de integração de software e aplicada em larga escala.”
A equipe de Yale submeteu seu modelo a uma série de análises para estimar sua performance. Utilizando ECGs de derivação única obtidos de equipamentos hospitalares, o modelo de IA alcançou 92% de acurácia. Quando testado com ECGs de 30 segundos capturados por smartwatches em 600 participantes, o algoritmo manteve uma boa performance, de 88%.
Dois indicadores adotados para avaliar exames preditivos são sensibilidade e valor preditivo negativo. O primeiro índice foi de 86%, ou seja, o relógio detectou alterações em 86 de cada 100 pessoas que realmente tinham alguma doença. Mais importante, o valor preditivo negativo foi de 99%, funcionando como um excelente exame de rastreamento: se, segundo o teste, a pessoa está saudável, ele está certo em 99% das vezes.
Outra etapa do estudo contou com dados do ELSA-Brasil (Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto), conduzido no Brasil e que acompanha milhares de pessoas ao longo dos anos. Aline Pedroso, também pesquisadora no grupo de Yale, destacou que a diversidade da coorte (grupo de voluntários acompanhados ao longo do tempo) brasileira foi crucial.
“Esse grande conjunto de dados populacional forneceu perfis demográficos e clínicos diversos, incluindo uma ampla variedade de etnias e padrões de comorbidades não totalmente representados nos dados de treinamento hospitalares dos EUA. A validação externa do nosso modelo no ELSA-Brasil confirmou que ele manteve alta capacidade discriminativa, fortalecendo a confiança de que a ferramenta de IA pode funcionar de forma confiável em diferentes populações, sistemas de saúde e dispositivos.”
Para Khera, o sistema pode ter duas aplicações principais: a primeira é a detecção precoce em indivíduos com fatores de risco, como hipertensão e diabetes, para identificar alterações estruturais antes dos sintomas. A segunda é a otimização de recursos: com seu altíssimo valor preditivo negativo, o teste pode descartar a doença com segurança na maioria das pessoas, direcionando exames caros como o ecocardiograma apenas para quem realmente precisa.
“O sistema não é um substituto para os exames de imagem, mas uma camada inicial de triagem que permite uma detecção mais precoce e eficiente de doenças ocultas, especialmente em contextos com poucos recursos, onde o acesso a exames de imagem é limitado.”
Além da precisão técnica, o sucesso de uma ferramenta de triagem em massa depende de um fator humano decisivo: o engajamento do paciente. Pedroso destaca que a adesão foi “excepcionalmente alta”, com 99% dos participantes conseguindo gravar seus ECGs com sucesso. “Embora nosso estudo não tenha sido projetado para medir resultados comportamentais, o engajamento dos participantes foi excepcionalmente alto. Esse tipo de envolvimento mostra um potencial real”, afirma.
Os sensores embutidos nos dispositivos, além de contar passos e distâncias percorridas, também medem frequência cardíaca, ritmo e variações dos batimentos, monitoram o sono, estimam níveis de oxigênio no sangue e até alertam sobre quedas ou ritmos irregulares, como a fibrilação atrial.
Segundo os autores do novo trabalho, com educação adequada e supervisão de profissionais de saúde, a tecnologia pode fortalecer o cuidado preventivo, incentivando a detecção precoce e intervenções oportunas, sem causar alarme desnecessário.
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