O álbum “Raphanus Raphanistrum”, que toma o nome científico da planta saramago, materializa o projeto artístico da ‘rapper’ Filipaa Mon Sant (ex-Russa) em que cruza o universo ‘rap’ com a obra do Nobel da Literatura, José Saramago.
“O disco não é uma reinterpretação da obra de Saramago, não é meramente ‘vou aqui citar a obra’ ou fazer uma coisa óbvia. Se eu estiver a citar uma personagem eu estou a reencarná-la; é o mesmo que contar a minha experiência à luz do século XXI, como se fosse exatamente agora, como se eu fosse aquela personagem no hoje”, afirmou Filipaa Mon Sant, em entrevista à agência Lusa.
Filipaa Mon Sant é o alter ego de Filipa Florêncio, natural de Fazendas de Almeirim, no Ribatejo, região onde nasceu José Saramago (1922-2010), e que em termos artísticos assumiu anteriormente o nome de Russa, apelido pela qual era conhecida na escola, por ter estudado na ex-União Soviética.
Russa gravou cerca de 50 faixas e venceu o Prémio Novos Talentos FNAC e apresentou o álbum “Catarse” (2018), um dos primeiros registos de “trap” em Portugal, em mais de 30 palcos, nomeadamente no NOS Alive e no Sumol Summer Fest.
“Raphanus Raphanistrum”, recém-editado, é o seu novo projeto artístico, cujo objetivo é “não só sair do espectro do ‘rap’, como da música no geral, e criar conceitos que possam englobar mais vertentes da arte, não só a música, como o cinema, a pintura, e muita coisa que vem aí”, disse, acrescentando: “Passar do artista para a corrente artística”.
Mont Sant assume uma militância pela igualdade cívica, o direito à leitura e à escrita, e a causa LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgénero). Por isso, “Raphanus Raphanistrum” também marca o início de um percurso que trata a música como ferramenta de pensamento cultural, cívico, “não como produto de catálogo”.
A este projeto liga-se outro, “The House of Monsanters”, iniciado pela artista há cerca de oito meses, nascido de uma necessidade sua de ir além da forma como a causa LGBT é abordada nas redes sociais: “Ora são pessoas envolvidas na política, que fazem um conteúdo muito denso, às vezes difícil de absorver, ou pessoas a fazerem um conteúdo muito estereotipado, muito sexualizado e até quase alvo de chacota”.
Filipaa considerou que não havia nada que a “representasse verdadeiramente” e começou a criar “vídeos educacionais, mas que fossem divertidos, que não fossem muito densos e dessem para as pessoas compreenderem o que está por detrás deste conceito”, até ter criado em setembro último um outro projeto, “com alguma sátira”, “A Mansão das Gajas que Gostam de Gajas”.
“As palavras são usadas com este conteúdo forte de chocar as pessoas, mas também quase para fazer um ‘rebranding’ [reformulação] desta palavra ‘gaja’ que, principalmente em Lisboa, não tem uma fama muito boa, mas que noutras zonas do país é utilizada com outro intuito, com o objetivo de fazer tudo o que as pessoas não estão à espera”.
“Criámos ali uma família, fizemos várias atividades, pintura, meditação, etc., nada ligado ao que as pessoas imaginam que um grupo de mulheres que gosta de outras mulheres se junta, que é uma hipersexualização – as pessoas imaginam que não é possível sermos amigas ou ter uma rotina normal -, e [o projeto] surgiu da necessidade de provar que existe muito mais do que aquilo que as pessoas, atualmente, têm como exemplo”, afirmou em entrevista à Lusa.
Sobre o álbum, o título recupera o nome científico da planta saramago, “Raphanus Raphanistrum”, e Filipaa Mon Sant realçou o facto de as duas palavras se iniciarem por “rap”, nome do género musical que adotou.
A ideia de juntar os universos do “rap” e da literatura, foi aproximar “a literatura do povo”, nomeadamente dos mais jovens, disse.
“Nós, muitas vezes, até entre grupos de amigos, pessoas que tiveram acesso a outro tipo de educação, puderam ouvir outro tipo de música, puderam ir a mais festivais, têm uma atitude quase ‘snob’ em relação àquelas pessoas que não tiveram os mesmos direitos e só ouvem o que lhes passa a rádio, porque não têm dinheiro para comprar um disco ou ir a festivais, ou ter acesso a outro tipo de coisas”, disse Mon Sant.
“Há uma certa autocrítica, eu venho de uma família pobre, sou a primeira a ter tido acesso à universidade, mas eu de alguma forma tornei-me elitista ao estar a produzir arte que é só para um certo tipo de pessoas”, disse.
“Até nós, que somos mais intelectuais, para passar cultura e certos objetos artísticos às novas gerações, também acabamos por passar essas obras a uma parte muito pequena dessas gerações que é também a parte intelectual, então, na verdade, estamos a afastar a arte do povo”, argumentou.
“Raphanus Raphanistrum” é constituído por oito faixas, todas de autoria de Filipa Mon Sant, metade inspiradas nas obras de José Saramago, e a outra metade, na vida do escritor.
O álbum abre com “OESMM (O Evangelho segundo Maria Madalena)”, baseado no romance “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, e os outros três temas foram inspirados em “Levantado do Chão”, “Memorial do Convento” e “Ensaio sobre a Cegueira”, o romance de Saramago que a artista mais admira.
Quanto à vida do autor de “Todos os Nomes”, Mon Sant escolheu quatro momentos: o seu encontro com a literatura na biblioteca do Palácio Galveias, em Lisboa, que faz “Bar de Palavras”; o seu encontro com Pilar del Río, com quem se casou em 1988, em “Pilar e José”; quando recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1998, em “Estocolmo”; e “Tengo Ganas de Vivir”, com que encerra o álbum, “uma homenagem aos últimos anos de vida de Saramago, que era tão jovem”.
“Este projeto com Saramago foi: Ok, a literatura está a afastar-se do povo, mas o povo precisa da literatura, então quero escrever um projeto que tenha bastante cuidado com a palavra, mas que ao mesmo tempo não seja elitista, com um grau de complexidade que afaste a obra deste artista do povo, das reais pessoas que precisam de se aproximar da literatura. Há também este caráter ativista neste disco”, declarou à Lusa.
Filipaa Mon Sant reconhece a utilização de algumas palavras “mais fortes”, que justificou como “uma provocação”.
“Nós temos que provocar, no fundo, eu acho que a arte é isso, provocar alguma emoção nas pessoas, independentemente da música que for, do livro ou da pintura, eu acho que o objetivo da arte é provocar uma emoção”, defendeu.
Um dos convidados de Filipaa Mon Sant neste disco é Mirai, com quem há muito queria colaborar, “um dos ‘rappers’ mais visionários do ‘rap’ português, que se destaca pela forma de rimar e o seu visual, e pela sua capacidade em chegar aos jovens”, um dos seus públicos alvo.
O álbum foi misturado e masterizado pelo engenheiro de som Jonny Zoum, que trabalhou com músicos como Billie Eilish e Alicia Keys, tem produção de Sickonce e Capital da Bulgária. Os vídeos foram realizados por João Correia, da Disorder Films.
A artista realçou o cuidado tido para “posicionar este disco numa esfera artística que permita comunicar com pessoas ‘normais’ que não tenham tanto acesso à literatura ou proximidade à literatura”, mas, ao mesmo tempo, com a certeza de que “alguém que tenha lido Saramago e conheça a sua biografia, fará as pontes”, rematou.