Uma “inexatidão” para uns, uma “negligência grosseira” para outros. Durante a votação final da Lei da Nacionalidade, os deputados votaram uma das propostas que acabaram por ser aprovadas — a alteração ao Código Penal que permite que cidadãos naturalizados percam, nalguns casos, a nacionalidade portuguesa — sem que esta fosse formalmente classificada como uma lei orgânica. Ora uma lei sobre temas estruturantes, como o da nacionalidade, tem necessariamente de pertencer a esta categoria; além de a Constituição a isso obrigar, só se esta classificação se verificar é que um grupo de deputados pode pedir a fiscalização preventiva da lei ao Tribunal Constitucional, como o PS se prepara para fazer. Se não, nada feito.

Foi por isso que na reta final do processo, no período para correções na redação da lei (que normalmente existe para corrigir gralhas ou erros menores no processo de construção de um diploma), o PS pediu que fosse feita a correção — até porque, caso contrário, não poderia avançar com o seu pedido de reclamação para o Palácio Ratton. Embora ambos os diplomas tivessem sido aprovados por maioria absoluta no Parlamento, como é exigido no caso das leis orgânicas (daí que fosse necessário um acordo entre vários partidos), só uma — a Lei da Nacionalidade — era classificada formalmente como uma lei orgânica; o diploma que estabelece os casos em que a nacionalidade pode ser retirada é que não.

A correção foi, por isso, pedida pelo PS, num pedido feito a 10 de novembro e transcrito nos diários da Assembleia da República em que os socialistas apresentavam uma “reclamação contra inexatidão” e lembrando que, tratando-se de “matéria que deve revestir a forma de lei orgânica”, e tendo o diploma sido votado com base nesses pressupostos, o preâmbulo não previa essa classificação.

E aí, denunciavam os socialistas, residia um “risco de inconstitucionalidade formal”, caso a nova lei fosse submetida de forma “errada”, pedindo assim a “correção do erro”. Num despacho posterior, o presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco, dava razão aos socialistas, confirmando que existia um “lapso” pela “omissão da expressão lei orgânica” e permitindo que a formulação que consta no texto fosse corrigida. Isto permitia, também, que os deputados do PS enviassem então esta segunda parte da lei da nacionalidade — separada do diploma inicial, para evitar dúvidas sobre a inconstitucionalidade de toda a lei — para os magistrados do Palácio Ratton.

A interpretação sobre o que aconteceu neste processo de “correção do erro” é, no entanto, diversa. Ao Observador, o constitucionalista José de Melo Alexandrino faz uma análise particularmente dura, garantindo que não existe neste caso “nenhuma inexatidão” mas antes uma “negligência grosseira”, corrigida depois por um “despacho anómalo” de Aguiar-Branco.

“Bem podem PS e o PAR virar agora o bico ao prego depois de terem consumado esta alteração. Isto está patente no tratamento diferente que as duas votações — as normas do decreto 18 (o que prevê as normas para a perda da nacionalidade) — não foram votadas na especialidade no plenário, e sendo lei orgânica tinham de ser votadas alínea a alínea”, defende, apontando que as partes introdutórias dos dois decretos são assumidamente diferentes.

Já Aguiar-Branco, “a título de inexatidões, converte a água em vinho”, critica, argumentando que a aprovação no Parlamento é o “momento constitutivo das leis” e que a sua natureza não pode ser alterada a posteriori, numa fase prevista para pequenas correções (o artigo 156 do regimento da Assembleia da República estabelece que nesta fase “a comissão parlamentar não pode modificar o pensamento legislativo, devendo limitar-se a aperfeiçoar a sistematização do texto e o seu estilo e a assegurar a uniformidade da aplicação das regras de legística em uso na Assembleia da República”).

“Isto era a mesma coisa que daqui em diante o PAR qualificar uma lei comum como lei de revisão constitucional; trata-se de um ato inconstitucional e ilegal”, critica o mesmo constitucionalista, acusando o Parlamento de mostrar um “leviano conhecimento das regras jurídicas e políticas” e criticando o “precedente, que não se pode abrir”.

Por isso mesmo, e seguindo o raciocínio que apontava que a alteração ao Código Penal não se trataria de uma lei orgânica, o socialista e constitucionalista Vitalino Canas dizia este fim de semana, na rádio Observador, que esta não seria “submetida a fiscalização preventiva a pedido dos deputados” e que eventualmente o Presidente da República poderia tomar essa iniciativa.

Ao Observador, o socialista Pedro Delgado Alves nega que o processo tenha tratado de resolver mais do que um lapso. “Foi só um erro de escrita na versão final, foi votada como lei orgânica e com votação eletrónica e consta em todos os relatórios que seria de aprovar como lei orgânica”, argumenta o deputado do PS.

“Não se mudou a natureza da lei, corrigiu-se um erro no formulário que estava desconforme com a natureza que a lei já tinha”. O facto de a alteração ao Código Penal também ter sido aprovada por maioria absoluta também garante que pode ser considerada lei orgânica — e, assim, enviada ao TC pelos deputados: “Cada alteração que afete a matéria da nacionalidade tem de revestir a forma de lei orgânica e ser aprovada por maioria absoluta”.

O Observador sabe que no gabinete de Aguiar-Branco se faz a mesma leitura: uma vez que a votação se processou como se de uma lei orgânica se tratasse, este ponto terá sido um “mero lapso de redação” neste segundo diploma.

Entre os constitucionalistas contactados pelo Observador, as opiniões dividem-se: há quem não veja um problema na correção e quem considere que teoricamente a correção nesta fase não deveria acontecer, mas que esse precedente já foi aberto noutras alturas.

Ao Observador, Carlos Blanco de Morais classifica o processo com uma “irregularidade”, mas não uma “inconstitucionalidade formal assim tão grave”, lembrando que algumas das primeiras leis orgânicas produzidas depois da revisão de 1989 não eram legendadas ou numeradas como deviam — “o vício formal ocorreu” — e isso não implicou que fossem consideradas constitucionais. Neste caso, é verdade que “a comissão não pode alterar o texto das leis, só as gralhas”, mas se entretanto a correção foi feita seria um “excesso de formalismo” argumentar que o texto fere a Constituição.

Jorge Pereira da Silva é direto: o “nome final” da lei, que aparece no Diário da República e estabelece que o diploma em causa está “completo”, “só surge verdadeiramente com a promulgação do Presidente da República”. Por isso, estando corrigido — como tinha de ser, uma vez que o regime de aquisição e perda da nacionalidade “reveste forma de lei orgânica e a Constituição é claríssima sobre isso” — antes de chegar a Belém, o problema fica, no seu entender, resolvido. Problema maior era se a lei não tivesse sido aprovada pela maioria “especial” requerida, e isso aconteceu.

Jonatas Machado alinha pela mesma leitura, ainda que de forma mais reservada. “Desde que tenha havido votação na especialidade pelo plenário e aprovação pela maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções penso que uma correcção meramente formal não será problema… veremos…”, responde ao Observador.

Já o constitucionalista Paulo Otero defende que “desde que tenham sido respeitados todas as exigências procedimentais e formais, a designação de lei orgânica pode ser dada pela comissão de redação final”. Outros juristas ouvidos pelo Observador consideram que a opinião mais crítica de Alexandrino é “correta” — em teoria, a fase das correções na AR não deveria servir para mudar a qualificação de fundo de uma lei — mas que já se corrigiram problemas maiores nesta fase. Ou seja, a prática tem sido de “alguns excessos”, e não de zelo máximo no que toca a alterações deste género.