José Alberto de Azeredo Ferreira Lopes, advogado, professor universitário e ex-ministro da Defesa Nacional do XXI Governo Constitucional de António Costa, afirmou que “estamos a viver uma crise significativa” dos Direitos Fundamentais – direitos e liberdades básicas que protegem os cidadãos -, notando que “o Conselho da Europa e depois a Convenção Europeia dos Direitos Humanos deram passos fundamentais para termos sociedades mais dignas”.

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o ex-governante considerou que os Direitos Humanos, para movimentos populistas e nacionalistas, são “uma ferramenta” para demonstrar que “o excesso de proteção da pessoa humana é má para a sociedade”, promovendo assim “a intolerância”. “A Europa está numa posição estratégica internacional mais frágil e mais vulnerável”, apontou.

Disse ainda acreditar que a Europa não vive o “momento mais feliz” devido às guerras, mas que é algo que vem já “desde o início do século” porque, desde essa altura, há “uma crise permanente”.

Já questionado sobre qual o direito humano que poderá estar mais ameaçado, sublinhou que “há vários que não estão em grande forma”, destacando que se vivem “tempos muito difíceis”, por exemplo, quanto à liberdade de imprensa e liberdade de expressão.

Nunca se falou tanto numa dimensão tão restritiva da interpretação dos Direitos Fundamentais, que hoje são como uma maçada democrática

A Universidade Católica, através de uma conferência, propôs celebrar duas datas importantes sobre os direitos humanos  – os 75 anos da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e os 25 anos da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Quão importante é celebrar estas datas atualmente, num tempo que parece de alerta?

Estamos perante uma situação que já não sei se é de recuo significativo da proteção de Direitos Fundamentais. Devem sempre festejar-se as coisas boas e acho que a Europa deve muito à Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), deve muito à ação do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH). E, embora ainda com menos prática, foi também um passo muito importante quando há 25 anos nos pusemos de acordo quanto a uma Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia.

Estamos a viver uma crise significativa de muitas coisas que nós considerávamos mais ou menos adquiridas, que nem sequer discutíamos. A progressão dos populismos, dos extremismos, é um facto hoje indesmentível no plano europeu, nomeadamente no plano parlamentar, e isto tem depois consequências na forma como interpretamos, não só, Direitos Fundamentais, como a forma como vão sendo definidas as políticas para os proteger ou em alguns casos – infelizmente – para os pôr em causa.

Nunca se falou tanto numa dimensão tão restritiva da interpretação dos Direitos Fundamentais, que hoje são como uma maçada democrática, são algo que alguns poderes políticos consideram que têm de aturar e eu acho que não. Isso é o que define as nossas sociedades, acho que também define o que é o nosso continente europeu e o que foi a sua construção no pós-guerra e, repito, desse ponto de vista o Conselho da Europa e depois a CEDH deram passos fundamentais para termos sociedades mais dignas em que a interpretação dos Direitos Fundamentais fosse, em princípio, a favor da pessoa e não contra ela. 

Tenho muita pena de o dizer, mas parece-me que, hoje, a Europa em geral está numa posição estratégica internacional mais frágil, mais vulnerável

A ascensão de movimentos populistas e nacionalistas representam também um risco para o sistema europeu de Direitos Humanos?

Os Direitos Humanos para esse tipo de movimentos são uma ferramenta, em que eles procuram demonstrar que o excesso de proteção da pessoa humana é mau para a sociedade e isso significa promover a intolerância, significa promover o detestar-se o outro porque é diferente, não pensa como nós, não tem a mesma religião, não tem a mesma cor. Significa também acreditarmos que, de facto, a proteção dos Direitos Humanos até tem um sentido anti-económico. É contra o desenvolvimento, é contra o progresso, é uma coisa velha, que ainda por cima só protege aqueles que são inúteis na sociedade ou, pelo menos, menos úteis à sociedade.

Tenho muita pena de o dizer, mas parece-me que, hoje, a Europa em geral está numa posição estratégica internacional mais frágil, mais vulnerável, e que perdemos um crédito muito grande que era sermos um espaço de liberdade, de acolhimento, de tolerância. A democracia fica mais frágil, fica menos forte quando se diminui a proteção de Direitos Humanos. Pelo menos, a democracia que alguns dizem que era a democracia liberal, que era a democracia que assentava em várias ideias fundamentais, uma ideia de liberdade, de proteção do mais fraco, de solidariedade, uma ideia também de justiça, e isto, desaparecendo, enfraquece as democracias.

Hoje temos perto de 200 estados no mundo e só em 29 é que temos democracias liberais. Isto deve-nos fazer perceber com humildade que qualquer dia nós somos o regime claramente minoritário. Em matéria de Direitos Fundamentais e em matéria de democracia, acreditámos que não havia a volta a dar, que já não íamos recuar, que isto era um caminho sempre para a frente, uma progressão. As sociedades humanas iam ser cada vez mais justas, mais dignas, e não é isso que está a acontecer. Percebemos que ou temos cuidado ou os nossos regimes democráticos estão mesmo em risco.

Durante muito tempo, afirmamos uma espécie de superioridade moral, praticamente sobre todos os outros regimes, e não aceitamos ser comparados com um Estado autoritário – nunca aceitaríamos ser comparados com um Estado que não respeitava a liberdade de imprensa, nunca aceitaríamos ser comparados com um Estado que expelia aqueles que tentavam entrar no seu país em busca de proteção.Ou temos cuidado ou muitas destas dimensões vão bater-nos à porta. Temos outras questões muito difíceis, ligadas às alterações climáticas, ligadas ao direito de autodeterminação dos povos, ligadas às relações entre a competência dos tribunais e os atos de agressão, ligadas a algoritmos. 

A inteligência artificial, os populismos, as fake news, as campanhas de informação, a regulação dos conflitos, a proteção dos Direitos Humanos, a proteção dos direitos dos prisioneiros, dos migrantes, nem fazemos ideia de como, olhando para a Convenção Europeia dos Direitos Humanos ou para a Carta dos Direitos Fundamentais, podemos ter questões bem concretas, bem profundas, que põem em causa algumas das coisas que por vezes tínhamos por adquiridas.

Há muita tensão entre direitos e deveres na Europa atualmente, resultado do panorama atual (guerras, ideologias de direita). Tendo em conta a sua experiência como académico e governante, acredita que a Europa faz esse equilíbrio ou os desafios amontoam-se?

Há desafios, naturalmente. Não creio que seja o momento mais feliz no continente europeu e não o é porque também acredito que praticamente desde o início do século vivemos numa crise permanente.

Tivemos a guerra no Kosovo mesmo no fim do século passado, tivemos a guerra no Afeganistão, tivemos a guerra no Iraque, que nos dividiu muito na Europa e que criou feridas que foram muito difíceis de sarar. Tivemos a crise económico-financeira, tivemos o desastre que foi para nós a entrada da Troika, tivemos depois a recuperação. Saímos daquilo já um bocadinho com a ‘língua de fora’ e temos o Brexit, que ameaça diretamente um dos pilares da sustentação europeia que era aquela ideia de quem entra nunca sai.

Depois vem o Covid, saímos do Covid. Entramos na guerra, na agressão da Rússia contra a Ucrânia que nos deixou completamente sem referências. É um momento fundacional deste século que nos convoca para riscos como não sentíamos desde a Segunda Guerra Mundial. Tivemos depois a forma difícil, por vezes muito complexa, de definir qual seria o caminho da Europa neste conflito. Ainda estávamos com a ‘língua de fora’ outra vez, aparece a guerra em Gaza, na sequência dos ataques terroristas de 7 de Outubro, e somos confrontados com a nossa incapacidade de atuar da mesma maneira perante duas coisas que são similares.

Nós não podemos permitir que um agressor, que alguém que atua de forma tão bárbara e tão violenta contra um país vizinho saia necessariamente por cima, ou, pelo menos, devemos fazer o possível para que isso não aconteça, porque se deixarmos acontecer vamos pagar mais tarde nós esse preço.

Acredito que mantivemos o rumo e continuo a acreditar que muitos de nós vivem em democracias e que, apesar de tudo, este continente continua a ser, na minha perspectiva, aquele que mais fidedignamente interpreta o que é a dignidade da pessoa humana, a proteção da pessoa humana, a proteção dos mais frágeis, dos mais vulneráveis. Conseguimos manter uma mensagem fundamental que é a seguinte: não pode haver democracia se não houver liberdade de imprensa, não pode haver liberdade de expressão se não houver liberdade de imprensa, não pode haver democracia se não houver o respeito mínimo pelo princípio da separação de poderes e não pode haver democracia se não houver respeito mínimo pela escolha democrática e pelo respeito dos Direitos Humanos.

Continuamos a precisar de cuidar da nossa casa porque a nossa casa está sob ameaça

Aquilo em que sobretudo não acredito é em pensarmos que numa espécie de apelo populista a uma espécie de democracia global em que não precisamos de cuidar da nossa casa. Não! Continuamos a precisar de cuidar da nossa casa porque a nossa casa está sob ameaça e é uma ameaça que já não depende de território, já não depende de fronteiras. É uma ameaça que nos entra porta adentro, que entra pelas campanhas de informação, que entra pela produção de imagem e de vídeo (que não conseguimos discernir se é verdadeiro ou não), e numa situação em que há menos conhecimento, em que há menos hábito de leitura, menos hábito de informação, de respeito pela informação credível, muitas vezes preferimos aquilo que nos é mais agradável do que aquilo que realmente é verdade. Entrou no nosso jargão a ideia da verdade alternativa ou factos alternativos. Tudo isto são ameaças para o pró-funcionamento dos sistemas de proteção de Direitos Fundamentais.

Haverá quem não queira ouvir, haverá quem ache que é uma coisa fora de moda e fora do tempo, [mas] continuo a acreditar que é fundamental que estejamos todos à volta de uma mesa a discutir estas coisas: o que são os direitos das minorias, o que é que são os direitos das pessoas mais vulneráveis, porque é que ainda pode ser importante falar de questões sobre a auto-determinação dos povos e porque é que temos de falar também desta ameaça permanente que é a proteção do ambiente e o risco que pende sobre as nossas sociedades com os aquecimentos globais, com as catástrofes naturais que vemos cada vez mais à nossa volta. 

Foi ministro da Defesa entre 2015-2018. Nessa altura, ainda não havia guerra da Ucrânia, mas já havia tensão com Moscovo (a ameaça russa foi tema na cimeira da Nato de Varsóvia em 2016) e também já havia crise dos refugiados. Em perspetiva, acredita que a Europa se preparou devidamente para o cenário atual?

Acho que não. Em 2014, quando a Rússia ocupa e anexa a Crimeia, ficámos um bocado assustados, nós como povos, mas passou-nos logo. Eu ainda não estava no governo, era o meu antecessor, mas a Cimeira da NATO de Gales não tinha sequer tema. Nada nos ameaçava, vivíamos bem. Uma organização como a NATO lutava para justificar a sua própria existência e, nesse sentido – um bocado irónico -, a ocupação da Crimeia salvou a NATO, deu-lhe um novo vigor, uma nova forma e um novo objetivo de vida. Por isso é que se falava sempre num flanco Leste e numa NATO a 360 graus, que era para fingir que a NATO olhava para todo lado. A NATO não olhava para todo lado, olhava para o flanco Leste, passou a ser um elemento dominante das políticas de defesa europeias, isto significava um conjunto de decisões que nem todos os Estados sentiram como necessárias. 

Esquecemo-nos, por vezes, que, em 2014, ainda estávamos nas mãos da Troika. Esquecemo-nos do tempo que demorou a conseguirmos recuperar a nossa soberania política e financeira. Esquecemo-nos que, na altura, olhávamos para o flanco Leste e para a questão russa e parecia-nos uma questão bastante afastada, sobretudo aqueles que estavam mais longe daqueles teatros de operações. Sentiu-se aí, claro, uma relativa atenção entre aqueles que, como alguns dos países de Leste que sempre disseram que era preciso proceder rapidamente a um maior investimento em Defesa e aqueles que achavam que não, que tudo se ia resolver.

A partir de certa altura, a tensão que se verificava era uma pressão dos nossos amigos norte-americanos que insistiam em que não podiam continuar a manter-nos indefinidamente e que tínhamos que investir mais em Defesa, mas ao investirmos mais tínhamos que comprar americano. Havia aqueles países que passavam sistematicamente entre os pingos da chuva. Por exemplo, o secretário-geral da NATO, que era na altura primeiro-ministro dos Países Baixos, gastava uns rastejantes 1,1% ou 1,2% em Defesa. Os Países Baixos não gastavam nada em Defesa, eram dos países que tinham um orçamento em Defesa mais baixo, mas isso não era sequer caso único. A partir do momento em que vai desaparecendo a noção de risco, em que de repente temos que ‘nos coçar’ com outras coisas, como por exemplo o Covid, nem queremos saber de Defesa. Podemos agora dizer o contrário e reconstruir o passado, mas, em 2019, 2020 e 2021, a maior parte dos Estados não sabia sequer como lidar com esta pandemia, quanto mais juntar a isso um pensamento sobre o reforço de orçamentos de Defesa.

O investimento em Defesa – que é necessário – tem de ser feito com cuidado

Vamos estar cada vez mais confrontados nas nossas sociedades com este tipo de escolhas. Isto significa, mais uma vez, um terreno fértil para o populismo porque, se estamos mal e se não há emprego, a culpa é do estrangeiro, se estamos inseguros, a culpa é do outro. Nesse sentido, por estranho que possa parecer, o investimento em Defesa – que é necessário – tem de ser feito com cuidado. Corremos o risco de comprar de forma ineficiente, é sempre o problema das métricas. ‘Tem que gastar 3,5% por ano em Defesa. Ui, e como é que eu vou fazer isso? Compre! Mas compro o quê? Compre.’ O meu receio é que estejamos a comprar coisas como quem vai ao supermercado, que não haja uma integração e um pensar coletivo de qual é a necessidade de Defesa da Europa e que esteja cada um por si, normalmente e legitimamente, a procurar vender ou comprar a quem é seu nacional, a quem tem as empresas no seu país.

O investimento em Defesa é uma despesa, ao contrário do que alguns dizem. Isto vai sair dos nossos bolsos, não vai sair de uma pessoa chamada ‘senhor investimento’. Mas, sendo uma despesa, pode ser um investimento na criação de uma indústria, numa base tecnológica industrial mais moderna, no estabelecimento de parcerias, na aquisição de conhecimento e know-how tecnológico. O que não consigo ver é que não haja uma definição integrada daquilo que deve ser a defesa europeia.

Ainda a propósito da guerra na Ucrânia, tendo em conta a sua experiência como governante, consegue vislumbrar um caminho para a resolução efetiva do conflito?

A minha experiência, aquela que eu posso aqui invocar, é de estudioso das Relações Internacionais e do Direito Internacional. Primeiro, estamos perante uma violação gravíssima do Direito Internacional. No fundo, aquela que levou a que fosse construída a Carta das Nações Unidas. A ideia da paz e segurança internacionais foram consideradas desde sempre como um valor nosso, o que sustentava a sociedade internacional, e a Rússia, com o seu comportamento agressivo, atacou de frente esse princípio, que tem uma consagração muito clara na Carta das Nações Unidas. E depois, na forma como os Estados foram sufragando a importância crucial do respeito pelo princípio proibitivo da ameaça e do uso da força.

Também me parece que a questão da integridade territorial ucraniana, do resultado de um conflito que seria catastrófico do ponto de vista da própria segurança europeia, – mas do próprio Direito Internacional, se a Rússia conseguisse sem custo alcançar os seus objetivos – teria sido um desastre, mas acho que, felizmente, não é provável que venha a acontecer. Agora, esta guerra, como qualquer guerra, não é eterna. A Europa está a viver em stand-by praticamente desde 22 de fevereiro, por causa daquilo que considera ser uma ameaça existencial para a sua segurança e sobrevivência política.

O que é que para nós podia ser aceitável para acabar com esta guerra? 

Temos passado a vida a falar do cessar-fogo, temos passado a vida a falar de uma solução maximalista, que a guerra acabaria se a Rússia se retirasse completamente. Até uma criança era capaz de chegar a essa conclusão. Temos é um pequeno problema, é que a Rússia também considera como vital para si, para a sobrevivência do regime autoritário de Vladimir Putin, ganhar esta guerra – ou pelo menos não perder esta guerra.

A Ucrânia, coitada, olha para esta guerra como aquela que pode definir se vai continuar ou não a ser um Estado soberano. A Europa olha para esta guerra como se ela definisse qual vai ser a sua realidade geopolítica no futuro e se vai ser capaz de evitar depois uma potencial ou futura agressão russa contra território europeu. E a Rússia considera que esta é uma questão vital para si perante a ameaça que imputa aos países europeus e, especificamente, aos Estados Unidos e à NATO. Não há propriamente uma garantia categórica de que os Estados Unidos irão apoiar para sempre a Ucrânia. Aliás, neste momento, já são os europeus que pagam todo o apoio que é dado à Ucrânia. Isto é muito bonito, mas a não ser que nós tenhamos descoberto a árvore das patacas, isto implica uma espécie de fadiga dos materiais. As opiniões públicas europeias já são hoje menos entusiásticas relativamente ao custo que a guerra tem para as suas sociedades.

Não tenho nada a certeza de que tenhamos qualquer capacidade para resolver um problema que a Ucrânia tem que é ter menos soldados do que a Rússia. No teatro de operações, por muito heroicos que sejam, e não tenho dúvidas que o são, eles são em número reduzido, e essa questão é talvez aquela que atualmente é mais preocupante e deveria levar-nos, pelo menos, a dizermos com clareza o que é que para nós seria aceitável. A Rússia tem, neste momento, conquistadas à Ucrânia, cerca de 19% do território ucraniano.

Crise de Direitos Humanos? A utilização do poder judicial para sufocar a liberdade de imprensa é um dos sintomas mais vívidos

Se tivesse de escolher um direito humano que considera mais ameaçado na Europa de hoje, qual seria? 

Há vários que não estão em grande forma. Um que acho que está mesmo ameaçado é a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. Vivemos tempos muito difíceis nessa área. A liberdade de expressão nunca deu de comer a ninguém, mas a liberdade de imprensa juntamente com a liberdade de expressão, podem definir o resto dos outros Direitos Fundamentais. Por exemplo, se a nossa voz não puder ser exprimida, se não tiver palco e se não for ouvida, então todos os outros Direitos Fundamentais ficam numa situação crítica, que é isso que está a acontecer.

As campanhas de cancelamento, as campanhas woke para cada lado, as campanhas de degenerescência do modelo de negócio, da liberdade que define a liberdade de imprensa, a concorrência desleal, o acesso de grandes plataformas que entram pela nossa porta adentro e definem aquilo que nós podemos ou não ver ou ouvir, a destruição do modelo de informação tradicional, ou a tentativa de destruição. Talvez escolhesse este como o mais representativo [momento] da mudança societal a que estamos a assistir na União Europeia, mas, em geral, no mundo.

A utilização do poder judicial para sufocar a liberdade de imprensa é um dos sintomas mais vívidos, mais expressivos da tal crise de que estou a falar. Imagine uma espécie de sala redonda: dentro está a liberdade de imprensa e o exercício da liberdade de imprensa – que é aquilo que nos mantém a funcionar, informados, a poder aceder a informação, a poder exercer os nossos direitos de cidadania. Se cair aquela peça central na sala, acho que, em geral e em cascata, tudo o resto pode vir a sofrer muito.

Para terminar, caso um cidadão europeu sinta que os seus direitos humanos foram violados, a quem é que deve recorrer? 

O cidadão europeu primeiro deve recorrer, e não ter medo de recorrer, às instâncias nacionais, sejam instâncias exclusivamente judiciais, sejam instâncias de natureza para-jurisdicional, por exemplo, na Provedoria de Justiça. Não deve ter medo de ter uma ação cívica organizada, não deve ter medo de ser ativista de Direitos Humanos, não deve ter medo de ajudar organizações não-governamentais que, muitas delas, com grande mérito, intervêm nesta era. Não deve ter medo de dar a conhecer, de preferência de forma não-anónima, estes factos a órgãos de comunicação social, porque acho que é assim que se vai reconstruindo a informação, através deste diálogo entre o cidadão e os órgãos de comunicação social, que, muitas vezes, esquecem essa matriz radical da sua existência.

Depois não deve ter medo de recorrer às instâncias competentes que, no plano europeu, lhe garantem uma proteção que não é repetível. Nesse sentido, o recurso para o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, diria que hoje é menos fácil passar no filtro que é necessário estabelecer para ver as questões que realmente devem ser atendidas, mas ainda é perfeitamente possível fazê-lo. É ir ao site do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, ir ao site do Conselho da Europa – rapidamente encontram uma informação muito bem organizada sobre os passos que devem ser seguidos.

Outro dia, com uma colega, escrevemos um artigo sobre as condições na prisão. Portugal foi condenado pelas condições desumanas de detenção nas prisões e era um bocadinho escandaloso que a maior parte dos casos tivesse provindo de detidos romenos. Os portugueses não se queixavam – agora, sim! Nós não temos uma grande tradição de ativismo de cidadão e de considerar que se temos direito é para o exercer e o tentar exercer um direito não é agressivo, não é desagradável, não é mal-educado, não. É uma condição e é uma circunstância da cidadania. E, portanto, acho que não nos faltam meios para nos defendermos, falta literacia cidadã.

Apresentarmos a nossa causa, e mesmo junto do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, posso garantir que é uma coisa bastante fácil de fazer e que é um tribunal realmente amigo dos Direitos Humanos, embora, às vezes, possa não concordar com este ou aquele acordo.