O trabalho do pirata é derrotar monstrinhos, uma tarefa que parece simples. Até aí, tudo o que se espera de um jogo para quem tem de 6 a 12 anos. Mas, nessa história, os “vilões” são células cancerígenas e o “herói” é uma criança em tratamento para leucemia.

Chamado “Piratas das Estrelas”, o jogo de perguntas e respostas foi desenvolvido para smartphones e é resultado de um projeto de pesquisadores da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e do Hospital de Clínicas de Porto Alegre para ajudar crianças com leucemia linfoide aguda (LLA) a compreenderem e enfrentarem melhor o tratamento da doença.

Jogo online pode ajudar crianças em tratamento contra o câncer Foto: pingpao/Adobe Stock

Todos os desafios apresentados reproduzem etapas dos protocolos oncológicos, que costumam ser prolongados e invasivos. A ideia é oferecer um letramento que ajude a diminuir o sofrimento da criança e aumentar a adesão ao tratamento.

“O grande risco, quando falamos de crianças com doenças crônicas como o câncer, é que elas passem por todo o tratamento sem entender de fato o que está acontecendo com o próprio corpo”, explica Giovanni Basso da Silva, enfermeiro oncologista e um dos autores do estudo e do jogo.

Segundo ele, a equipe médica e assistencial que atende esse tipo de paciente tende a ter dificuldade para adaptar todas as explicações sobre o processo à linguagem infantil. A partir disso, veio a ideia de criar um jogo que organizasse o conteúdo em missões e capítulos, seguindo domínios da escala de letramento como conhecimento, informações sobre cuidados clínicos, efeitos, autocuidado e emoções, em linguagem simples, visual e interativa.

“Assim, enquanto a criança joga e se diverte, suas escolhas revelam seu nível de entendimento sobre a doença e o tratamento. Aprendizagem e avaliação acontecem simultaneamente“, completa Silva.

O estudo para a formulação do game foi baseado em dados secundários, utilizando a literatura científica para elencar os principais eventos associados ao tratamento da leucemia em crianças. O levantamento foi realizado entre novembro de 2024 e maio deste ano.

Na construção do jogo, foram consideradas cinco etapas: a definição teórica dos domínios, a adaptação da linguagem para a faixa etária de 6 a 12 anos com analogias lúdicas, a integração dos elementos avaliativos à narrativa, a elaboração do banco de perguntas e o planejamento da validação futura.

Enquanto a criança com câncer joga e se diverte, pode entender melhor sobre a doença e o tratamento Foto: Divulgação

O jogo na prática

Questões emocionais que envolvem medo, tristeza, raiva, vergonha e autoestima também aparecem. A queda de cabelo causada pela quimioterapia, por exemplo, ganha um capítulo próprio, o “Barbearia”, no domínio dedicado às emoções e ao suporte psicossocial.

“Uma criança pode saber todas as respostas do jogo e, ainda assim, estar profundamente assustada, retraída ou com a autoimagem fragilizada”, explica Silva. Segundo ele, sem esse olhar, profissionais poderiam interpretar a criança como bem informada quando, na prática, ela não consegue transformar o conhecimento em enfrentamento saudável. “Por isso, esse domínio permite identificar quem precisa de intervenções psicossociais mais intensas e oferece uma visão mais completa da experiência infantil durante o tratamento”, diz.

Medir apenas o conhecimento técnico — como nome da doença, dos remédios ou dos exames — deixaria de fora uma dimensão essencial do letramento em saúde infantil, que é como a criança sente e usa essa informação no cotidiano.

Embora seja um jogo de perguntas e respostas, erros não penalizam os personagens. Em vez disso, a criança recebe um feedback formativo, com explicação e orientação para corrigir a informação.

A previsão é que o game seja disponibilizado gratuitamente para dispositivos Android até fevereiro de 2026. O grupo estuda também expandir o jogo para Windows e firmar parcerias para que se torne uma ferramenta adotada por hospitais e escolas.