Os medicamentos à base de GLP-1, como Ozempic, Wegovy e Zepbound, avançaram rapidamente do combate ao diabetes e à obesidade para um território ainda pouco explorado: o tratamento de dependências químicas e comportamentais. A possibilidade, impulsionada por estudos preliminares e pelo uso crescente em clínicas de reabilitação nos Estados Unidos, reacende o debate sobre como o cérebro responde a esses fármacos e até onde eles podem ir na redução de comportamentos compulsivos.

A endocrinologista e especialista em medicina metabólica Alessandra Rascovski, diretora médica da Atma Soma, acompanha esse movimento de perto. Segundo ela, o que se vê na prática clínica dialoga com as primeiras evidências científicas.

— O que percebemos cada vez mais é o quanto a adição melhora, principalmente para o álcool. Tenho pacientes que também relatam melhora em compulsão por compras e até em vício em cigarro — destaca.

— Os mecanismos ainda estão sendo estudados, mas existe realmente uma ação na dopamina que regula os centros de recompensa cerebral — diz.

O interesse da comunidade científica em novas aplicações dos GLP-1 ganhou força após a observação de que esses medicamentos reduzem o chamado “food noise”, o ruído mental constante que impulsiona a busca por comida. Para muitos especialistas, trata-se de um mecanismo semelhante ao que sustenta também outros tipos de compulsão, como álcool, drogas e tabagismo.

Esse possível elo começou a ser investigado em estudos recentes. Um deles, publicado em JAMA Psychiatry em fevereiro deste ano, mostrou que pessoas com consumo problemático de álcool que receberam semaglutida relataram beber menos e sentir menos vontade de beber ou fumar.

O que acontece no cérebro

A hipótese mais investigada no momento é a de que os GLP-1 modulam a liberação de dopamina, o neurotransmissor central da sensação de recompensa. Ao reduzir a intensidade do circuito cerebral associado ao prazer imediato, eles podem tornar gatilhos menos provocativos, diminuindo impulsos e facilitando a interrupção do comportamento aditivo.

É exatamente o que Alessandra observa no consultório:

— Na clínica, já usei o medicamento off-label para alcoolismo em duas pacientes. Elas pararam de beber, e a resposta foi muito eficiente — relata. Ela reforça ainda o impacto sobre o food noise:

— É esse ruído mental que invade sua vida e afazeres, um pensamento obsessivo. Enquanto você não vai comer ou não vai beber, o pensamento não cessa. O tratamento controla muito esse ruído — alerta.

Dados ainda são preliminares

Apesar do entusiasmo crescente, as evidências sobre o uso de GLP-1 no tratamento de dependências ainda são preliminares. Não há, até o momento, aprovação específica para uso em saúde mental, o que limita o acesso e mantém o tratamento restrito a prescrições off-label, geralmente caras e não cobertas pelos planos de saúde. Além disso, os efeitos colaterais e a segurança do uso prolongado dessas medicações ainda precisam ser avaliados em estudos de maior escala e duração.

Alessandra Rascovski lembra que o impacto potencial desses medicamentos se torna especialmente relevante em países como o Brasil, onde o consumo abusivo de álcool é um problema de saúde pública. — Nós temos cerca de 6 milhões de adultos brasileiros que fazem uso abusivo de álcool, segundo dados da Covitel. É um contingente enorme que poderia se beneficiar de novas alternativas terapêuticas — alerta a especialista.

Nos Estados Unidos, ensaios clínicos já estão em andamento para responder justamente a essas lacunas. Alguns incluem ambientes controlados que simulam situações de risco — desde bares artificiais até sessões de realidade virtual — para avaliar em tempo real como os GLP-1 modulam comportamento e resposta a gatilhos. A Eli Lilly admite estudar aplicações específicas em dependência, enquanto a Novo Nordisk mantém cautela sobre seus planos.

Enquanto a ciência avança, Alessandra reforça que esses medicamentos não dispensam tratamentos já estabelecidos, mas podem servir como um suporte importante.

— Eles não substituem psicoterapia, apoio social ou acompanhamento especializado, mas podem oferecer a clareza mental necessária para que a pessoa dê o primeiro passo e consiga mantê-lo — diz.