Uma tempestade empurra um veleiro carregado de cocaína para uma ilha no Oceano Atlântico. O dono do barco tenta esconder a carga entre rochedos da costa, mas a maré sobe e leva os pacotes de droga para a praia. O episódio muda a vida dos moradores da ilha —entre eles, um grupo de quatro jovens, Eduardo, Carlinhos, Sílvia e Rafael, que enxergam a oportunidade de alterar um futuro sem perspectivas.

Este é o ponto de partida de “Mar Branco“, série portuguesa do Netflix que começa com um naufrágio, como uma comédia de William Shakespeare, e aos poucos se transforma num enredo de ação frenética ao som de música pop.

Além de sexo, drogas e rock and roll, há dilemas éticos e a paisagem luxuriante dos Açores, arquipélago onde se passa a trama, agora em sua segunda temporada.

“Mar Branco” é a série portuguesa de maior sucesso na história do Netflix. Sua primeira temporada foi exibida em 192 países e ficou entre as dez mais vistas em 33 mercados.

“O sucesso internacional se deve, entre outras coisas, à linguagem pop da série”, diz Pandora da Cunha Telles, uma das produtoras. “Quando o espectador vê o personagem Carlinhos de botas cor-de-rosa ou Sílvia com o cabelo roxo descolorido, sabe que está num universo gráfico que não é pautado pela lógica da realidade”.

O enredo fantasioso é baseado num fato bastante noticiado na imprensa portuguesa e espanhola. Em junho de 2001, o veleiro Sun Kiss 47 aportou na ilha de São Miguel, nos Açores. Pilotada pelo traficante siciliano Antonino Quinci, a embarcação carregava, segundo estimativas da polícia, 700 quilos de cocaína com 95% de pureza —na época, o pó branco vendido na Europa raramente chegava ao índice de 25%.

Junto com a segunda temporada, a Netflix exibe um documentário sobre a história real que inspirou “Mar Branco”. Ele se baseia em reportagens que as jornalistas espanholas Macarena Lozano e Rebeca Queimaliños fizeram para o jornal El País.

A polícia portuguesa apreendeu cerca de 300 quilos da droga. O resto se disseminou entre a população de uma das aldeias mais pobres da ilha açoriana, Rabo de Peixe, nome que batiza a série em Portugal.

De acordo com o documentário, houve uma epidemia de overdose entre os moradores mais humildes, que não sabiam como lidar com a droga. Os hospitais ficaram lotados e houve pelo menos 20 mortos. Alguns moradores cederam à tentação do crime. Vários acabaram na prisão.

A nova temporada tem dois atores brasileiros, Paolla Oliveira e Caio Blat. “A personagem de Paolla é uma das mais complexas da série. Ela interpreta uma chefe do tráfico que tem origens açorianas e sente nostalgia de sua terra natal”, conta Telles. “Este elo com o Brasil é uma coisa que eu gostaria de explorar mais. É possível fazer muitas séries interessantes combinando histórias e atores dos dois países.”

Além do documentário, a série motivou um livro que se tornou best-seller em Portugal. Nascido em Rabo de Peixe, o escritor Rúben Pacheco Correia, de 27 anos, resolveu ir atrás do enredo que capturou sua imaginação na infância.

“Cresci ouvindo o nome e as histórias do Italiano, como o mafioso era chamado na minha cidade”, ele conta. O protagonista de seu livro é o traficante Antonino Quinci, que inspirou na série o personagem Francesco Bonino.

O livro “Rabo de Peixe: Toda a Verdade” entrevista vários dos que viveram o enredo na vida real. Apenas no final da pesquisa Correia encontrou Antonino Quinci, preso numa cadeia em Natal, no Rio Grande do Norte.

Ele fora apanhado pela polícia brasileira transportando haxixe num barco. Em entrevista ao autor, Quinci conta como foi preso nos Açores, fugiu da cadeia, foi novamente preso e, depois de libertado, voltou ao tráfico em alto-mar.

No último capítulo do livro, Quinci diz que sonhava em voltar, um dia, a Rabo de Peixe, “um lugar fora do mundo, isolado, diferente de tudo o que conhecia”. Quinci fugiu da cadeia brasileira em agosto deste ano, pouco depois de conversar com Correia. Está foragido. Teria a ousadia de retornar à cena do crime? “Espero que, se voltar, desta vez venha com o barco vazio”, diz o autor, rindo.