Morreu na manhã deste domingo (23), aos 81 anos, o ator alemão Udor Kier, atualmente em cartaz com “O Agente Secreto” e que havia estrelado “Bacurau“, ambos filmes do pernambucano Kleber Mendonça Filho —o último também tem direção de Juliano Dornelles. A informação foi confirmada por seu companheiro, o artista Delbert McBride, à revista americana Variety.
Detalhes sobre a causa da morte não foram divulgados. Kier, porém, seguia como figura ativa no cinema mundial e com frequência fazia aparições públicas. No ano passado, apareceu nas redes sociais de Mendonça Filho, numa série de fotos feitas pelo cineasta em Recife, enquanto preparava “O Agente Secreto”.
Kier ganhou status cult ao trabalhar com alguns dos diretores mais importantes do cinema mundial, transitando por diversos gêneros e idiomas. No longa nacional premiado em Cannes, alternou entre o alemão e o português, mesmo que carregado de sotaque, ao viver um judeu que se refugia no Brasil após o fim da Segunda Guerra Mundial.
Ao longo da carreira de quase seis décadas, Kier colecionou mais de 250 personagens de cinema e televisão. Também virou figura pop ao manter laços com artistas musicais como Madonna, Gwen Stefani, os Goo Goo Dolls e os membros do Supertramp, estrelando os clipes “Deeper and Deeper”, “Let Me Blow Ya Mind”, “You Win, I Lose” e “Naked”, nesta ordem.
Já com Andy Warhol, uma das figuras mais importantes da cena cultural do século passado, estrelou “Sangue para Drácula”, de 1974, e “Carne para Frankenstein”, de 1973. Com produção do artista americano por meio de sua Factory, os longas de Paul Morrissey escandalizaram, à época, pela alta voltagem sexual, além da violência gráfica. No segundo caso, o uso do ainda escasso efeito 3D potencializou o aspecto macabro da obra.
O erotismo, aliás, não era um problema para Kier, que mesmo em décadas mais conservadoras pôs seu corpo à disposição de fotógrafos e cineastas experimentais. Mais uma vez ao lado de Madonna, estrelou fotos provocativas de seu livro “Sex”, uma reunião de cliques pornográficos de Steven Meisel e Fabien Baron.
“Ela assistiu a ‘Garotos de Programa’, de Gus van Sant, e praticamente me alugou para as fotos. Ela é um dos maiores fenômenos da cultura de nossos tempos, e mal conversamos durante as fotos. Mesmo assim, ainda participei do videoclipe de ‘Deeper and Deeper'”, disse ele a este jornal em 2001, ao relembrar o projeto.
Kier também foi transgressor em sua vida pessoal. Viveu sua homossexualidade de maneira pública desde cedo, falando sobre o tema apesar do tabu que o cercava. Assim, se aproximou de diretores também gays, como Van Sant e Rainer Werner Fassbinder, com quem viveu um romance na juventude e com quem fez “Lola”, “Lili Marleen” e “A Terceira Geração”.
O alemão trabalhou ainda com outros dos maiores cineastas de seu país, Werner Herzog e Wim Wenders, em “Meu Filho, Olha o Que Fizeste!”, no caso do primeiro, e “O Fim da Violência” e “Um Truque de Luz”, no segundo. Já na filmografia do italiano Dario Argento, aparece em “Suspíria”.
Foi com o polêmico diretor dinamarquês Lars von Trier, porém, que Kier manteve uma de suas parcerias mais férteis. Ao seu lado, encarnou personagens de “Epidemia”, “Medéia”, “Europa”, “Ondas do Destino“, “Dançando no Escuro“, “Dogville“, “Manderlay“, “Melancolia“, “Ninfomaníaca” e da série “O Reino“.
Ele também integrou o elenco de “Dimension”, projeto de longa duração de Von Trier que começou a ser gravado em 1991 e deveria estrear em 2024, mas acabou sendo interrompido e lançado de forma não finalizada em 2010, em DVD.
Nem por isso Kier deixou o cinema mais comercial de lado. Afeito aos filmes de gênero, estrelou “Armageddon”, de Michael Bay, “Halloween – O Início”, de Rob Zombie, e “Blade: O Caçador de Vampiros”, de Stephen Norrington, um entre seus vários filmes de vampiro, numa herança do trabalho em “Sangue para Drácula”.
Em seus planos estava ainda protagonizar o novo jogo do japonês Hideo Kojima, o terror “OD”, em parceria com Jordan Peele, em mais uma prova de sua versatilidade pop, além de meia dúzia de filmes em diferentes estágios de desenvolvimento.
Um dos trabalhos mais premiados de Kier foi o recente “Brilho para a Eternidade”, filme de Todd Stephens lançado há quatro anos, em que viveu um cabeleireiro gay idoso que peregrina por uma cidadezinha para fazer o último corte de cabelo de uma antiga cliente que morreu.
Graças a essa proximidade com o cinema queer, que por vezes o levou a longas de nicho de qualidade duvidosa, recebeu um Teddy, prêmio voltado ao cinema queer, especial no Festival de Berlim, há uma década.
Na mesma entrevista à Folha de 2001, em meio à homenagem que receberia na nona edição do Festival MixBrasil, voltado à cultura LGBTQIA+, Kier pediu que lhe arranjassem um diretor brasileiro com quem trabalhar —a espera seria longa e o desejo só se concretizaria com “Bacurau”— e sintetizou os tipos que viveu ao longo da vida: “Eu gosto de decadência, adoro tudo o que é decadente”.