O cancro do pâncreas caminha para se tornar a 2.ª principal causa de morte por cancro. Em entrevista exclusiva ao Healthnews, a Dra. Sara Meireles, especialista em Oncologia Médica da ULS São João, analisa os fatores por trás desta tendência preocupante, os obstáculos ao diagnóstico precoce e as medidas urgentes que o sistema de saúde e a população devem adotar para enfrentar este desafio

HN – As projeções indicam que o cancro do pâncreas poderá tornar-se a 2.ª principal causa de morte por cancro em Portugal e no mundo até 2035. A que se deve esta evolução tão preocupante e o que significa, na prática, para o sistema de saúde português?

SM – A evolução preocupante da mortalidade do cancro do pâncreas resulta, em grande parte, de características muito particulares deste tumor, nomeadamente da sua biologia agressiva e microambiente tumoral, que favorecem a invasão e a metastização muito mais rapidamente do que noutros cancros. Paralelamente, a localização do pâncreas na cavidade abdominal dificulta o acesso e a sua visualização, o que, aliado à ausência de sintomas específicos nas fases iniciais, leva a que 80-90% dos casos sejam detetados em fases avançadas. Apesar dos avanços na investigação, especialmente no estudo de tratamentos mais personalizados com base em alvos terapêuticos, ainda não dispomos de tratamentos tão eficazes quanto noutros tumores. Também os fatores de risco modificáveis, como o aumento da obesidade, dietas desequilibradas, sedentarismo, tabagismo, pancreatite crónica associada ao álcool, contribuíram significativamente para o aumento da sua incidência e, infelizmente, este cancro carece de um rastreio eficaz para a população geral. Na prática, para o sistema de saúde português, esta tendência implica maior pressão sobre os cuidados hospitalares, tanto para o diagnóstico como para o tratamento, aumentado as listas de espera para cirurgia e tratamentos sistémicos. A mortalidade elevada implica também grande carga social e económica. Acresce ainda a necessidade de reorganização de cuidados com equipas multidisciplinares altamente diferenciadas e uma articulação mais forte com os cuidados de saúde primários, quer no controlo dos fatores de risco, quer na identificação precoce de sinais para uma referenciação mais rápida. Terá ainda de haver um maior investimento na prevenção e investigação.

HN – Em 2022, os dados da OMS revelaram 2.086 mortes por cancro do pâncreas em Portugal, tornando-o a 5.ª causa de morte oncológica. Como interpreta estes números no contexto europeu, onde a doença já é a 4.ª causa de morte, e que fatores podem explicar a disparidade?

SM – Infelizmente Portugal está alinhado com a tendência global, não existindo uma disparidade muito significativa face à Europa, porque os desafios são semelhantes: diagnóstico tardio, complexidade biológica e respostas limitadas aos tratamentos atuais. Contudo, fatores de risco como a obesidade, a diabetes, o tabagismo e o álcool poderão variar entre as populações, assim como o seu envelhecimento. As desigualdades no acesso a cuidados oncológicos em centros especializados e a própria capacidade de diagnóstico avançada podem influenciar também as discrepâncias. Por outro lado, também a qualidade dos sistemas de registo e de codificação de mortalidade podem variar entre países.

HN – Tem-se verificado um aumento significativo de casos em doentes mais jovens, entre os 40 e os 50 anos. A que atribui este fenómeno e que desafios clínicos específicos apresenta o diagnóstico da doença em idades mais precoces?

SM – O aumento de casos em faixas etárias mais jovens parece estar associado, sobretudo, ao maior impacto dos fatores de risco e a estilos de vida menos saudáveis, como a obesidade, a diabetes, o tabagismo e o consumo excessivo de álcool. Estes fatores têm vindo a surgir mais precocemente na população, o que pode antecipar também o aparecimento da doença. Por outro lado, entre 5–10% dos cancros pancreáticos têm origem hereditária e surgem em idades mais jovens, estando atualmente o teste genético mais acessível. Alguns dos desafios nesta faixa etária são a baixa suspeição clínica e o atraso no diagnóstico, assim como a potencial agressividade tumoral associada a estas idades. Isto vai acarretar consideráveis consequências sociais e familiares.

HN – Cerca de 80% dos doentes são diagnosticados em fases já avançadas da doença, o que é um dos principais fatores para o seu mau prognóstico. Quais são os maiores obstáculos para um diagnóstico precoce e que sinais de alerta a população não deve ignorar?

SM – Um dos principais obstáculos está relacionado com a própria localização do órgão: o pâncreas está localizado na cavidade abdominal o que torna a sua visualização mais difícil. Além disso, os seus sintomas podem ser muito inespecíficos, nomeadamente a perda de apetite, perda de peso e dor abdominal, sendo, por isso, facilmente atribuídos a outras causas. Sinais mais específicos, como icterícia (pele e olhos amarelados), surgem quando o tumor se localiza na cabeça do pâncreas, sendo que noutras localizações os sintomas surgem em fase mais avançada. Também a ausência de um rastreio populacional eficaz, porque não dispomos ainda de exames que permitam detetar a doença numa fase precoce, assim como a falta de biomarcadores sensíveis, têm sido uma grande limitação. Isto reforça a necessidade de procurar avaliação médica imediata perante sintomas persistentes e inexplicados.

HN – A prevenção assume um papel crucial. Que medidas concretas de estilo de vida, como a redução do tabagismo, obesidade e controlo da diabetes tipo 2, podem efetivamente diminuir o risco de desenvolver cancro do pâncreas?

SM – Embora não exista prevenção absoluta, há medidas que podem reduzir significativamente o risco: – Cessar o tabagismo, um dos principais fatores de risco. – Controlar o peso, evitando obesidade e adotando uma alimentação equilibrada, com menos gorduras saturadas e menos carnes processadas. – Promover atividade física regular. – Manter a diabetes tipo 2 bem controlada, sempre que presente. – Evitar o consumo de álcool. Estas medidas contribuem para reduzir o risco global, não só para o cancro do pâncreas, mas também para muitas outras doenças oncológicas e cardiovasculares.

HN – Tendo em conta a agressividade deste cancro, qual é o panorama atual em Portugal no que diz respeito ao acesso a terapias inovadoras e a ensaios clínicos para estes doentes?

SM – Apesar de o cancro do pâncreas não ter evoluído ao mesmo ritmo terapêutico que outros tumores, considero que há progressos importantes em termos de investigação e ensaios clínicos. Em Portugal, vários centros já dispõem de ensaios clínicos, oferecendo acesso a terapêuticas inovadoras que podem representar oportunidades adicionais para estes doentes. Portugal também já dispõe de centros especializados de investigação em cancro do pâncreas, e a realização de estudos moleculares e genéticos na maioria dos doentes, têm permitido tanto a identificação célere de síndromes hereditários como a procura de potencias alvos terapêuticos. Contudo, ainda há um longo caminho a percorrer: aumentar a testagem molecular, reforçar os centros especializados no tratamento deste cancro e aumentar o número de ensaios clínicos específicos são estratégias essenciais. O número de ensaios para cancro do pâncreas ainda é limitado comparado com outros tipos de cancro mais prevalentes.

HN – Existe em Portugal uma lacuna no que toca a uma associação específica dedicada aos doentes com cancro do pâncreas. De que forma é que esta falta de uma “voz coletiva” pode impactar o apoio aos doentes, a definição de políticas de saúde e a atração de investimento para a investigação desta doença em particular?

SM – A falta de uma associação dedicada cria uma lacuna significativa. Estas organizações são fundamentais para: – Desenvolver campanhas de sensibilização sobre fatores de risco e sinais de alerta; – Dar apoio emocional e social aos doentes e famílias, promovendo a partilha de experiências e a interajuda; – Reforçar a defesa dos direitos dos doentes para garantir acesso a cuidados de qualidade e em centros especializados; – Aumentar a visibilidade da doença. Noutros tipos de cancro, estas associações têm sido um motor de progresso notável, e o mesmo poderia acontecer no cancro do pâncreas. Reconhecer a elevada incidência e mortalidade por cancro do pâncreas deve orientar políticas de saúde pública, melhorar a prevenção, fortalecer centros especializados e promover investigação.

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