Nunca a justiça portuguesa tinha visto um caso assim. Uma perseguição continuada a várias pessoas de alguém escondido atrás de emails, telefonemas e mensagens. Foram dois anos de pesadelo que as vítimas ainda tentam esquecer. Em fevereiro o tribunal condenou Sofia (nome fictício) de pena de prisão. A arguida recorreu e viu agora o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) confirmar a decisão da primeira instância.
Em fevereiro deste ano a justiça condenou uma jovem universitária a sete anos e nove meses de pena de prisão, uma decisão histórica para um processo com contornos únicos. Arguida recorreu, mas o Tribunal da Relação de Lisboa confirma agora na íntegra o acórdão da primeira instância
O Tribunal da Relação de Lisboa confirmou “integralmente” a condenação em fevereiro de uma jovem universitária a sete anos e nove meses de prisão, que tinha recorrido da decisão da primeira instância
Segundo a decisão a que a CNN Portugal teve acesso, com data de 20 de novembro, o coletivo de juízes entende que “o acórdão proferido não enferma de nulidades, não padece de erros-vício, nem de erros de julgamento em matéria de facto ou de direito”. “É, portanto, necessário confirmá-lo integralmente”, sublinham os juízes da Relação, considerando, por isso, “em julgar totalmente improcedente o recurso interposto” pela arguida.
David Silva Ramalho, advogado de algumas das vítimas do processo, afirmou à CNN Portugal que esta “é uma decisão justa, bem fundamentada e que exprime, a nosso ver corretamente, o reconhecimento de que os crimes informáticos podem ser tão ou mais graves do que os outros”.
Foram milhares de emails, SMS, telefonemas. Perseguiu várias pessoas, tornou as suas vidas num inferno e levou-as quase à loucura. Sofia (nome fictício), nem 30 anos de idade tinha à data da prática dos crimes, mas foi condenada a mais de sete anos de prisão. Nunca em Portugal se tinha visto um caso assim. E nunca a justiça tinha sido tão pesada num crime de ciberbulliyng.
Tudo começou a 20 de março de 2019. Podia ter sido noutro dia qualquer, porque nem o julgamento esclareceu os motivos que levaram Sofia a perseguir Inês (nome fictício), a vítima principal. Os primeiros passos foram a criação de contas falsas em redes sociais como o Instagram, mas também no Tinder, uma aplicação para encontros e que levou Inês a receber dezenas de contactos de estranhos.
Mas Inês não foi a única vítima. A sua família também sentiu na pele a perseguição, tal como várias amigas suas. E com, talvez curiosidade, aproximou-se de Inês, oferecendo ajuda e também se descrevendo como vítima. E de perto, conseguia perceber o efeito das suas ações.
Sofia sempre negou ser a autora dos factos. Antes e durante o julgamento. Justificou uma confissão – que fez por email – com o facto de estar cansada, de se sentir culpada por acusar outros e teve esperança que essa mensagem acabasse com tudo. Mas o facto é que já tinha estado envolvida numa situação idêntica, em menor escala. Chegou a ser aberto um inquérito, mas acabou arquivado em 2015.
O coletivo de juízas que acompanhou o julgamento considerou que as declarações da arguida revelavam inconsistências. Além de terem sido pouco lógicas, esta mostrou-se distante, desligada e pouco espontânea na forma como falou.
Por outro lado, as declarações das vítimas foram consideradas, pelas magistradas, esclarecedoras e genuínas, como só uma vítima poderia fazer. Pareceram sinceras e reveladoras do sofrimento que passaram. Relatos isentos, rigorosos, feitos de forma sentida e verdadeira.
Perante os depoimentos das vítimas e a extensa prova documental, as magistradas não tiveram dúvidas em considerar que as situações descritas na acusação tinham realmente acontecido. Durante dois anos, a arguida perseguiu várias pessoas, na sua maioria com relações com Inês, recorrendo sempre ao mesmo modus operandi, temáticas e conteúdos idênticos. Para as juízas a justificação dada para uma confissão falsa não fez qualquer sentido.
Devido à idade da arguida (menos de 30 anos na altura) e às datas da prática dos crimes, o processo ficou abrangido pela Lei da Amnistia e Sofia beneficiou da extinção de 122 crimes. No entanto, a arguida acabou condenada, em cúmulo jurídico de penas, a sete anos e nove meses de prisão por 18 crimes. Foram dados como provados sete crimes de perseguição, na forma consumada; oito crimes de falsidade informática, na forma consumada; e ainda três crimes de denúncia caluniosa, na forma consumada.
Seguiu-se o recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que confirmou agora a sentença inicial. Sofia tem um prazo de dez dias para recorrer para o Tribunal Constitucional.