ANÁLISE || Há uma década, a Geringonça chegou ao poder. António Costa chamou “os primos” para uma maioria inédita. O Natal é quando o homem quiser, e o socialista juntou a esquerda desavinda. Nunca conseguiu sentar todos à mesma mesa, mas eram felizes e não sabiam

António Costa chamava-lhes “os primos”. Afinal, eram todos família, embora tenham vivido décadas de costas voltadas. Como acontece nas famílias em geral, e na esquerda em particular. Boa parte do Conselho de Ministros adotou a alcunha quando se referia ao Partido Comunista Português (PCP), Bloco de Esquerda (BE) e Os Verdes – “os primos”. Mas também havia quem não gostasse desse tu cá tu lá com os três partidos que estavam fora do Governo, mas o apoiavam, com base em “posições conjuntas” que eram separadas. 

Era um bicho esquisito, uma vaca voadora, para usar uma expressão de Costa, ou um bacalhau com asas, para manter o espírito natalício. O país percebeu isso, e adotou o cognome que Paulo Portas, exímio fazedor de soundbites, lhes colou: “Geringonça”.

O Governo da Geringonça tomou posse há uma década, a 26 de novembro de 2015. Os “acordos conjuntos” entre Partido Socialista (PS) e BE, PS e PCP, e PS e PEV, foram assinados de fugida a 10 de novembro, à hora do almoço, longe de olhares curiosos. Nesse dia, o país viu apenas uma foto “oficial” de cada acordo a ser assinado, aos pares, sem que os respetivos líderes se sentassem sequer. Foi assinar e andar, mesmo a tempo de a esquerda aprovar à tarde uma moção de rejeição do Programa de Governo do segundo Executivo liderado por Passos Coelho. Foi o Governo mais curto da nossa história. Durou 27 dias, tendo a vã glória de ter tomado posse para cair logo depois.

Assinatura do acordo entre socialistas e comunistas a 10 de novembro de 2015 na Assembleia da República Foto: Jorge Ferreira/PS

Mas esse acordo, que deitou abaixo o Governo da lista vencedora nas eleições de outubro, Portugal à Frente (a.k.a. PàF, juntando PSD e CDS), começou a ser preparado por António Costa muito antes das assinaturas apressadas, e bastante antes da vitória de Passos Coelho e Paulo Portas.

“Derrubar o muro”

Primeiro, era um plano aberto: “derrubar o muro” que historicamente separava os partidos da esquerda, e ditava que à esquerda do PS ninguém participava no “arco da governação”. Quando foi eleito secretário-geral do PS, em 2014, Costa anunciou que, por ele, esse era um conceito morto e enterrado: os partidos mais à esquerda não se podiam refugiar no conforto do protesto sem contribuir para a governação. Era uma questão de princípio – Costa é filho de pai comunista, conhecia de casa muitos históricos do PCP, e é da geração dos líderes de outras esquerdas, como o dissidente comunista Miguel Portas ou o fundador do PSR, Francisco Louçã, ambos fundadores do BE. Ainda jovem político, Costa esteve envolvido no histórico acordo PS-PCP, que em 1989 levou Jorge Sampaio à presidência da Câmara Municipal de Lisboa. Também era uma questão tática: podia ser preciso fazer essas pontes para o PS governar. No limite, podia mesmo ser uma questão de sobrevivência, no cenário (então muito improvável) de o PS não ganhar as eleições contra uma coligação austeritária e impopular. 

Não é que um ano antes das eleições essa hipótese passasse pela cabeça de algum socialista. Nem de Costa. Por muito calculista que seja, e é, o secretário-geral do PS não considerava a possibilidade de perder as eleições. Mas na sua cabeça havia uma certeza que se consolidava: mesmo ganhando, não teria maioria absoluta. O BE estava forte na contestação à troika, o PCP também, aproveitando o embalo das lutas laborais promovidas pela CGTP, e Costa enfrentava um facto de consequências imprevisíveis: a prisão de José Sócrates. Razões de sobra para o (então) presidente da Câmara de Lisboa ir abrindo caminhos à esquerda. “Os primos” seriam necessários. 

Houve sinais

Costa não se limitou à proclamação de um princípio, ou um desejo. Antes das eleições, abordou a ideia de convergências à esquerda com vários interlocutores. Conversas informais com comunistas que conhecia de há muito e em quem confiava, como Ruben de Carvalho, Jorge Cordeiro ou Domingos Abrantes, que, por coincidência, tinha sido um dos negociadores do lado do PCP num acordo fracassado, proposto por Mário Soares, em 1978. 

Mas nem Costa era Soares, nem o PCP era o partido que já foi. Aliás, durante a governação de Passos, Soares foi um dos mais ativos promotores de convergências à esquerda, numa série de iniciativas que culminaram nas suas “sessões da Aula Magna”. O fundador do PS até já tinha reconhecido que os tempos estavam de feição a aproximações à esquerda. Na Aula Magna, defendeu que os três partidos deviam ir “fazendo os entendimentos possíveis”. António Costa estava lá, e foi ovacionado. António José Seguro, à época o secretário-geral do PS, nem apareceu…

Também Jerónimo de Sousa não era Cunhal. Há anos que Costa o conhecia da Assembleia da República – tanto quando eram ambos deputados, como no período em que o socialista foi secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares. Foi no Governo de Guterres, sem maioria absoluta, o que obrigou a muita negociação no Parlamento. Uma experiência preciosa para Costa. A simpatia recíproca com Jerónimo nunca se perdeu. E tiveram pelo menos uma conversa a dois durante a contagem decrescente para as legislativas, num contexto insólito: antes de entrarem para estúdio no debate televisivo a dois. Nem pareciam concorrentes, pela amenidade da conversa. Segundo o livro “Como Costa Montou a Geringonça em 54 Dias”, de Rita Tavares e Márcia Galrão, o socialista saiu desse diálogo “com uma certeza: para o PCP, o inimigo não era o PS. Era a direita”. Só que isso era um salto quântico.

Quanto ao BE, embora não fosse a praia de Costa (que tinha no seu executivo autárquico José Sá Fernandes, originalmente eleito como independente como cabeça de lista do Bloco), a boa relação com Louçã e Miguel Portas era útil. João Semedo também ajudava. O socialista desconfiava de Catarina Martins e da nova geração de dirigentes bloquistas, mas tinha boas pontes com os senadores do partido.

Temos boas e más notícias

No verão de 2015, conforme se aproximavam as eleições, a PàF ia recuperando terreno e o PS caindo nas intenções de voto. Não haveria muita gente a pensar no que fazer nesse caso, para além de assumir a derrota. Mas Costa pensava e não era pouco. Bastante! Apontava para uma frecha que se podia abrir, mesmo perdendo o PS – uma vitória curta da direita unida, deixando a esquerda com maioria absoluta no Parlamento, embora fragmentada. Era este adjetivo que Costa precisava de enxotar. A Geringonça não foi sorte, foi mistura de leitura política, maquiavelismo e planeamento. 

Apesar da contestação à coligação PSD/CDS/Troika durante a legislatura, o PS tinha duas pedras no sapato. Por um lado, a economia começava a dar tímidos sinais positivos; por outro, o PS não se livrava da herança reputacional deixada por Sócrates: o homem que tinha “falido o país”, que tinha “chamado a troika”, e que estava preso preventivamente por suspeitas de corrupção e uma variedade de alegados crimes. Podia ser carga a mais para o PS ficar à frente da PàF. No reverso, a dupla Passos/Portas podia ter anticorpos a mais para vencer com maioria absoluta. Foi nessa nesga que Costa viu um caminho. Antes de toda a gente, e com enorme discrição. 

António Costa, no final de dezembro de 2024, visitou José Sócrates no estabelecimento prisional de Évora. 

Ao mesmo tempo que burilava esse plano, António Costa tinha de se mostrar convicto numa vitória improvável. Por isso não deu troco a Catarina Martins quando, no frente-a-frente televisivo, esta lhe colocou condições para apoiar um governo socialista e lhe perguntou se estava aberto a negociar esse caminho. Eram três condições: travar a ideia [da coligação] de cortar 1.660 milhões de euros nas pensões; desistir do corte da Taxa Social Única dos trabalhadores proposto por Mário Centeno; abandonar o regime conciliatório que o BE via como uma “flexibilização dos despedimentos”. Costa deixou a interlocutora de mãos a abanar. 

Falaria sobre isso, mas não naquele momento. Aliás, até tinha falado dessa aproximação quando Miguel Portas morreu. Numa cerimónia de homenagem em que o BE estava em peso, Costa falou das conversas com o amigo Miguel. Uma “nunca esgotada negociação”, “tantas vezes sem qualquer propósito que não a amizade e o gosto de desafiarmos os acordos impossíveis”. Olá? Alguém estava a ouvir? “Desafiar acordos impossíveis”…

Em plena campanha, a uma semana das eleições, Costa deixou o sinal mais importante do que pensava fazer: impedir um novo governo de direita caso a coligação não tivesse maioria absoluta, e procurar alternativas. Até foi manchete do Expresso: “Costa chumba Governo minoritário da direita.” 

O texto deixava poucas dúvidas: “a uma semana do dia final, com o PS a perder pontos nas sondagens e os socialistas perplexos no terreno, [Costa] acredita que vai ganhar e que, salvo ocorra uma maioria absoluta da coligação, acabará sempre por ser o seu partido a formar governo. (…) Num cenário de uma Assembleia com maioria de esquerda, não é possível excluir que o PC ou o Bloco avancem com uma moção de rejeição. E que, nesse caso, o próprio PS a vote. As palavras de concórdia e apelo ao consenso do Presidente caem aqui em saco roto. Costa tem dito e redito em campanha que acordos com esta coligação para prosseguir as mesmas políticas ‘nunca’.” Como percebia um bom entendedor, a fonte da jornalista Luísa Meireles era o próprio Costa, embora nunca citado em ‘on’.

Mal o semanário chegou às bancas, Paulo Portas e Passos Coelho descodificaram a mensagem. A intenção de António Costa “impedir a aprovação do Programa do Governo” tem “uma gravidade séria” e “inédita”, disse Portas, com ar sério. “António Costa não será capaz de respeitar a vontade popular”, acrescentou. Passos alertou que o PS queria formar um governo “extremista da esquerda mais radical que existe em Portugal, que possa, contra a vontade dos portugueses, procurar governar o país”. Era isso, nem mais nem menos. Foi o argumento extra para a coligação dramatizar a necessidade de ter maioria absoluta. 

Mas, por alguma razão, as palavras de Costa eclipsaram-se da campanha. Já noutro momento se tinham desvanecido. A 19 de setembro, o socialista disse na Antena 1: “É evidente que não viabilizarmos, nem há acordo possível entre o PS e a coligação de direita.”

Costa nunca disse explicitamente que iria negociar um governo apoiado pelas esquerdas, sobretudo perdendo as eleições, mas deixou um rasto de migalhas ao longo de meses. Esse rasto apontava numa única direção. Só não viu quem não quis.

Jerónimo abriu a saída de emergência

Passos Coelho e Paulo Portas na noite da vitória das legislativas de 5 de outubro de 2015. (Foto: Miguel A. Lopes/Lusa)

O resultado das eleições não mudou nada, mas mudou tudo. A coligação venceu, mas caiu 14 pontos em relação a 2011. Contudo, os 36,8% eram quatro pontos percentuais acima do PS. Confirmada a vitória da PàF e a derrota socialista, Costa parabenizou os vencedores, assumiu a responsabilidade pela derrota, mas assegurou que não iria demitir-se. Mas não foi claro sobre o que pretendia fazer. Mais uma vez, foi preciso ler nas entrelinhas: a referência à “perda de maioria” da direita, que colocava “um novo quadro parlamentar”, e a recordação de que “o PS sempre foi defensor de moções de censura construtivas”. Ou seja, derrubar o Governo apenas existindo uma alternativa parlamentar. Ainda havia estrada para andar. 

Mais claro do que António Costa foi Jerónimo de Sousa. Na verdade, foi o secretário-geral comunista quem assumiu que à esquerda havia uma saída de emergência. Ao contrário do socialista, Jerónimo disse-o com todas as letras: “Neste novo quadro político, o PS só não forma governo porque não quer. Nada o impediria de se apresentar disponível.” Umas horas antes, com a contagem ainda a decorrer, Francisco Lopes tinha adiantado a mensagem: o PSD só formaria governo se o PS quisesse. 

Apesar de Costa ter conversado na véspera com Francisco Louçã, o BE viu-se ultrapassado pelos acontecimentos, e teve de se adaptar a um guião que não tinha preparado. Cautelosamente, aproximou-se da direção que o PCP indicava.

O primeiro a revelar ao povo o que ia na cabeça de Costa foi Marcelo Rebelo de Sousa, então ainda comentador televisivo. “[Costa] deve ter na cabeça um governo minoritário” apoiado pelos restantes “partidos de esquerda”. Bingo!

Os mais altos dirigentes do PS só não foram apanhados de surpresa por esta revelação porque, nos dias anteriores, Costa tinha-os inquirido, por sms, sobre a possibilidade de uma maioria de esquerda. Citando Lenine, o que fazer? As trocas de sms foram-se prolongando pelos dias seguintes. E ao longo da tarde das eleições, no quartel-general socialista, voltou a ser esse o ponto central das cogitações de Costa e do núcleo restrito da direção. Houve opiniões divergentes, mas quem soube ouvir percebeu que o secretário-geral tinha um plano. Em todo o caso, recomendou cautela aos que iam comentar os resultados na comunicação social: sem maioria absoluta da PàF, deviam frisar esse facto e sublinhar a existência de uma nova maioria de esquerda, mas deixando todas as saídas em aberto.

O presidencial empurrão

Entra em cena outra personagem. Cavaco Silva, Presidente da República. Percebia que à esquerda havia algo de novo, mas, sem surpresa, não queria acabar o mandato a dar posse a um governo que misturava socialistas, comunistas, trotskistas e “verdes”, uma associação de aves raras num país da União Europeia, do euro e da NATO. Não havia uma célula de Cavaco que aceitasse esse desfecho. O Presidente Cavaco institucionalista achava que devia governar quem venceu as eleições, e não admitia outro cenário que não fosse dar posse a Pedro Passos Coelho. O Presidente Cavaco conservador e anticomunista, que durante anos agitou o papão vermelho, não admitia um Executivo apoiado por partidos contrários às alianças e tratados internacionais que vinculavam o país. Quando falou, deixou tudo isso claro. Tinha convicções, tinha argumentos, só não tinha uma maioria parlamentar que lhe fizesse esse favor.

Ainda assim, o chefe do Estado foi decisivo para o que se passou no curto e no longo prazo. No curto prazo, pressionou para conversas entre a coligação e o PS. No longo prazo, deu cimento à convergência das esquerdas. Vamos por partes.

Forçou Passos, Portas e Costa a procurar um entendimento. Na leitura de Cavaco, não seria difícil, se houvesse vontade política: partilhavam o europeísmo, a fé na moeda única, a pertença à NATO – parecendo pouco, eram convergências estruturais. Mais: o professor Cavaco leu o cenário macroeconómico dirigido pelo professor Centeno, sobre o qual o PS construiu o seu programa eleitoral, e viu aí muito terreno comum com a coligação de direita, o que podia facilitar uma convergência conjuntural.

Com o empurrão do Presidente, Passos teve um encontro secreto com Costa logo no dia a seguir às eleições, a quem propôs uma coligação de Governo PSD/CDS/PS. Inês Serra Lopes, que falou com Passos Coelho para o seu livro “A Geringonça”, escreve que “António Costa inclinava-se para responder pela negativa, mas ia pensar”. O socialista começou um longo jogo do empata. Não lhe ocorria ser ministro de Passos; tinha um programa eleitoral para romper com a governação da direita em pontos essenciais, prometendo reverter muitas das suas políticas; queria ser chefe do Governo; queria avançar pela esquerda, conforme havia proposto ao país. Mas não podia bater com a porta na cara de Passos, porque não controlava o futuro. O PCP estava disponível para um acordo – mas acordo ainda não havia; o BE ia vendo para que lado soprava o vento e ajustava a rota conforme os sinais que vinham dos comunistas – e sem Bloco não havia maioria. Costa, o habilidoso, tinha de merecer essa fama e continuar a jogar em vários tabuleiros de xadrez ao mesmo tempo.

Negociar e empatar, empatar e negociar

O diabo está nos pormenores. Mas repare neste pormaior: o primeiro encontro de alto nível de António Costa para discutir o pós-eleições não foi com o vencedor de 4 de outubro, mas com o PCP. Houve o tal encontro de Costa com Passos, mas foi secreto. Oficialmente, a maratona negocial começou com uma deslocação da delegação socialista à sede comunista. Costa chegou com Carlos César, Pedro Nuno Santos, Ana Catarina Mendes e Mário Centeno. Foi o grupo que o acompanhou em todas as mesas negociais seguintes. Não era uma comitiva de cortesia, era mesmo um grupo de trabalho. A inclusão do independente Centeno, o homem do cenário macroeconómico e de todas as contas socialistas, era a melhor prova disso. Não estavam ali para converseta, mas para partir pedra. 

A composição da delegação anfitriã dizia o mesmo: Jerónimo de Sousa, Francisco Lopes, João Oliveira e Jorge Cordeiro. À saída, eram só sorrisos. Costa tinha confirmado que os comunistas estavam dispostos a um entendimento e prontos para puxar essa carroça. Na sua declaração aos jornalistas, Jerónimo foi ainda mais longe: admitia, no limite, que o PCP integrasse o Governo, algo que não acontecia desde o PREC.

Só depois de ir à Soeiro Pereira Gomes a comitiva socialista foi à sede do PSD, onde a esperavam Passos, Portas e outros representantes dos dois partidos. Entre eles não estava Maria Luís Albuquerque – não havia contraparte para as contas de Mário Centeno, que assumiu um grande protagonismo nesse encontro, detalhando o seu cenário macroeconómico. Passos, exasperado, queria avançar na discussão política. Mas o PS tinha feito uma campanha com contas, e queria negociar o futuro com contas. Exigia que a coligação apresentasse os números com que contava governar, para poder aproximar programas e políticas. Era uma tática tão boa como qualquer outra para parar o jogo. Há quem mande o guarda-redes atirar-se para o chão…

Passos e Portas perceberam desde o início que Costa só queria ganhar tempo. Cumprir calendário. Cavaco também. A insistência dos socialistas nas contas certas resultou como manobra dilatória, sobretudo porque nunca havia respostas concretas do outro lado. Centeno até foi ao Ministério das Finanças reunir com Maria Luís Albuquerque, que continuava a não dar resposta às perguntas do homem do Banco de Portugal. Apesar de tudo, não foi uma viagem perdida. Foi nessa conversa que Centeno soube que o próximo governo, qualquer que fosse, teria de lidar com duas bombas à beira de rebentar: a TAP e o BANIF. Pela insistência de Maria Luís nestes dois pontos, Centeno percebeu a gravidade da situação. Se chegasse a ministro das Finanças, como estava subentendido desde que integrou o grupo negocial socialista, teria de ser ele a despoletar essas bombas.

O que fazer e o que não fazer

Na frente Leste, as negociações não eram fáceis, mas avançavam e era evidente a vontade de chegar a um acordo que afastasse Passos da governação. O objetivo era alcançar um mínimo denominador comum que suportasse a alternativa. A esquerda nunca procurou concordar em tudo, nem entrou em discussões inúteis sobre a Europa, o euro, a NATO ou outros assuntos macro que seriam pedregulhos no caminho. Decidiram aceitar essas divergências, assumir as diferenças inconciliáveis, e concentrar-se em questões concretas para desfazer muito do que Passos tinha feito. 

Nunca procuraram um acordo de dezenas de páginas, sobre tudo, mas uma plataforma enxuta, com objetivos concretos sobre o que podiam fazer, e, ainda mais importante, acordo sobre o que não podiam fazer: o BE e o PCP (e Verdes) comprometiam-se a não chumbar o Programa de Governo (que seria concertado), a não aprovar moções de censura, e a aprovar o primeiro Orçamento do Estado. Cavaco exigia um acordo de legislatura, Costa queria o compromisso de viabilização de todos os Orçamentos, mas o PCP – sempre o pivô do lado esquerdo – não aceitou. Comprometia-se a apoiar o primeiro Orçamento do Estado, cujos contornos essenciais estavam razoavelmente definidos, mas os seguintes careciam de negociação.

Pelo seu lado, o PS comprometia-se a não aumentar o IRS e impostos sobre as famílias, não cortar salários nem pensões (pelo contrário, repor todos os direitos adquiridos que Passos havia cortado), e a não mexer na Lei do Trabalho em determinadas circunstâncias.

Convém notar que, por imposição do PCP, todas estas negociações decorreram em triplicado. Os comunistas recusavam sentar-se à mesa com o Bloco. Cada partido negociava com o PS o que tinha a negociar, e não haveria um “acordo de Governo” envolvendo todas as partes, mas acordos bilaterais. Catarina Martins ainda se reuniu duas vezes com Jerónimo de Sousa (uma delas em segredo) para tentar uma aproximação ao PCP. A sua teoria era que, juntos, BE e PCP ganhavam força negocial face ao PS. Jerónimo foi intransigente. Tinha sido ele a abrir o caminho negocial, quando o BE ainda pensava no que fazer, e os seus negócios eram com o PS, não com o Bloco. Cada um pedalava a sua bicicleta. Foi assim até ao último dia da Geringonça. Os “primos” nunca se reuniram todos.

Por estranho que pareça, até foi mais fácil chegar a entendimento com o BE do que com o PCP. Das três condições colocadas por Catarina no debate com Costa, a mais complexa era deixar cair a TSU dos trabalhadores, uma ideia muito cara a Centeno, um dedicado estudioso do mercado de trabalho. Mas não seria isso a impedir um entendimento ou a afastar Centeno da missão de apear a direita do poder. Oh, a ironia! Em tempos, o alto quadro do Banco de Portugal tinha sido apresentado ao país como um liberal; afinal, era um entusiasta da convergência das esquerdas.

Enquanto o comboio da esquerda avançava, a carruagem da PàF não saía do apeadeiro. A segunda ronda de negociações entre PSD, CDS e PS, na sede do Largo do Rato, foi ainda mais penosa do que a primeira, que Costa tinha classificado, publicamente, como “um vazio total”. Uma cimeira noturna, sem luz ao fundo do túnel. Nada aproximava o que não se queria aproximar. Nem o pequeno truque de Paulo Portas surtiu efeito: às tantas, saiu da sala “para fumar”, e manteve-se desaparecido durante mais tempo do que seria suposto. A sua ideia, típica de um ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, seria prolongar o mais possível a negociação, mantendo as delegações à mesa, adiando uma rutura que parecia inevitável. Mas Passos, com uma vitória eleitoral no bolso, não suportava o cinismo daquele exercício, que não daria em nada. Costa, quase com um acordo à esquerda, sabia que tinha de passar por todas as etapas da via-sacra institucionalista: era preciso fazer o caminho para mostrar ao país que o caminho não levava a lugar nenhum. A rutura consumou-se nessa noite.

O “golpe”

Para encurtar uma história longa, as esquerdas entenderam-se e comunicaram-no a Cavaco Silva. Havia uma maioria absoluta no Parlamento, e não era a que o PR queria. Como diria Jerónimo de Sousa, dar posse ao líder mais votado nas eleições seria “uma perda de tempo”. Mas o Presidente não se convenceu com o acordo que Costa, Jerónimo, Catarina Martins e Eloísa Apolónia lhe comunicaram em Belém. Sem papel passado, era trinta e um de boca. Indigitou Passos Coelho para formar governo. O primeiro-ministro em funções passava a primeiro-ministro indigitado. 

O exercício de formar um governo, tomar posse, e levar um programa ao Parlamento era inconsequente – Passos e Portas sabiam disso, mas precisavam de mostrar ao país que era a esquerda que estava a derrubar um governo “legitimamente eleito”. Era a esquerda que estava a dar um “golpe”, rompendo com décadas de governo do vencedor das eleições.

Este foi o segundo momento em que Cavaco foi decisivo. A exigência de papel passado obrigou a um compromisso mais sólido à esquerda. Um, não; três. Os tais papéis que Costa assinou, numa sequência atabalhoada, com os três líderes à sua esquerda. Cada um de sua vez. 

As “posições conjuntas” foram o salvo-conduto para derrubar um governo e alavancar outro. 

Ainda antes das assinaturas, a esquerda mostrou quem mandava no Parlamento. Juntou-se pela primeira vez para eleger Eduardo Ferro Rodrigues como presidente da Assembleia da República. Foi a primeira prova de vida da nova maioria.

Dezasseis dias depois de derrubar Passos, Costa tomou posse como primeiro-ministro. Não liderava um governo de coligação, mas um governo socialista com acordos à esquerda. Sim, era estranho. Sim, era inédito. Sim, tinha tudo para não dar certo. Passos até previu que seria acordo de pouca dura e prometeu liderar a resistência. Portas, mais pragmático, percebeu que se abria um novo ciclo e despediu-se da presidência do CDS. 

Contra todos os prognósticos e probabilidades, a Geringonça manteve-se no poder durante quatro anos. Quem caiu a meio da legislatura não foi Costa, mas Passos.