Daí, considera, que os juízes tenham colocado, a partir das SMS trocadas pela adolescente com membros do grupo com o qual tinha saído na noite em causa, a possibilidade de que esta tenha começado por não querer a relação sexual, recusando-a e dizendo não (como ela sustenta nessas mensagens, quando ainda não fizera queixa e asseverava que não tencionava fazê-la) mas “que depois, perante a insistência do Arguido e o ambiente criado, assentiu e quis.”
O que demonstra, prossegue esta doutorada em Psicologia, que é um acórdão “baseado numa noção de constrangimento [o constrangimento que no artigo 164º do Código Penal, que define violação, determina a existência do crime] como dominação pela força, e não como obrigar, por qualquer meio — que é o que está no Código Penal — alguém, contra a sua vontade, a sofrer penetração. É uma leitura completamente obsoleta da noção de constrangimento, que ignora a vontade da vítima, vontade que está no centro da alteração do tipo criminal de violação que foi feita em 2015 e 2019. É muito frustrante que tenhamos de continuar a repetir que as vítimas de crimes sexuais muitas vezes congelam, não reagem por medo — até porque o primeiro dispositivo de reação das mulheres não é hostil.”
A expressão “vontade cognoscível” foi aditada em 2019 ao artigo 164º para tornar claro que violação não ocorre só quando a vítima é constrangida à penetração por meio de “violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a terem tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir”; é igualmente violação quando o constrangimento aos atos sexuais descritos ocorra, diz o Código Penal, “contra a vontade cognoscível da vítima”, por “qualquer meio” que não aqueles.
“Este acórdão está em 1999”
“Retrocesso” é a palavra utilizada pela penalista Helena Morão. “Este acórdão é um grande retrocesso.”
Para esta professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, “a decisão é fundamentalmente criticável por três razões”, que explicita.
“Em primeiro lugar porque o fulcro da avaliação crítica da prova é explorar as contradições do depoimento da ofendida, não do agente do crime. Há claramente uma valoração desigual nas declarações, porque as declarações dele praticamente não são sujeitas a escrutínio, o que é sujeito a escrutínio são as declarações dela. E — essa é a segunda razão pela qual o acórdão é criticável — são sujeitas a um escrutínio que ignora completamente tudo o que sabemos hoje em dia sobre as vítimas de crimes sexuais. Exploram as contradições de uma pessoa extremamente jovem, que estava embriagada e portanto com uma relativa incapacidade de defesa, como se fosse uma adulta, não embriagada, e como se não fosse uma vítima de crime sexual.”
Porque, diz a jurista, “é normal as vítimas de crimes sexuais terem vergonha, tentarem disfarçar, é normal que não assumam imediatamente que são vítimas, é normal que nem sequer percebam o contexto actual do crime de violação. Pelo que todas as reações que ela tem são normais nas vítimas de crimes sexuais.”
(A mesma opinião, releve-se, teve o Tribunal da Relação de Lisboa quando em junho de 2024 se pronunciou sobre a medida de coação de prisão preventiva que foi aplicada ao arguido (a qual manteve), chamando a atenção para o facto de não existirem “vítimas perfeitas”, e considerando que “resulta muito claro que a própria ofendida se culpabilizou pelo facto de o arguido não ter sabido controlar os seus impulsos perante a sua recusa, como se lhe não fosse legítimo não querer manter cópula com ele.”)