Por Alexandre Teixeira (texto) e Maialu Ferlauto (fotos)

Marcia Chicaoka é formada em design. Trabalhou por muito tempo na área editorial. Atualmente cria flores de papel, para eventos e vitrines, com a marca Chicaoka Papel em Flor. Carmen Fukunari é editora de arte numa media tech. Trabalha com edição de fotos, gráficos e infográficos. Quem hoje vê as duas em seus trabalhos (ou fora deles) não desconfia que elas formam uma dupla fundamental na história da arte urbana em São Paulo. Pouca gente sabe que, nos anos 1980, Carmen e Marcia foram, até onde se sabe, as primeiras mulheres a empunhar latas de spray na quase inteiramente masculina cena do grafite na cidade. “A gente sofreu um apagamento, pra falar a real”, afirma Carmen. Na época em que a dupla começou a grafitar, nos idos de 1988, não existia rede social. Não existia site. Não existia internet. No caso do grafite, portanto, o apagamento é literal. A obra não sobrevive. Essa efemeridade do meio é da natureza da arte urbana. Como boa parte de seus pares, a dupla não tinha registros de sua obra – exceto por algum material no Centro Cultural São Paulo, graças ao trabalho de Maria Olimpia Vassão, pesquisadora de artes visuais para a Coleção de Arte da Cidade. A produção delas começa para valer quando Carmen entra na faculdade de Design, em 1990. “A gente até brincava um pouco antes”, afirma Marcia. “Mas não sabia nada da técnica.”

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Ela e Carmen são primas. Cresceram juntas e despertaram para a vida na segunda metade dos anos 80. “Começava a ter coisas diferentes na cidade. Muito além do grafite. Tinha música, começaram a surgir bandas. A gente ia muito a shows no Centro Cultural, no Madame Satã”, conta Carmen. Inocentes era uma referência para a cena, mas elas gostavam mesmo era das Mercenárias, pioneira banda punk feminina, que a dupla depois passaria a grafitar – em especial, a silhueta da baixista Sandra Coutinho. O começo da história delas é ambientado nesse cenário musical. As artes visuais vão surgindo aos poucos. Um marco importante é a exposição Trama do Gosto, de 1987, na Bienal de São Paulo, com obras de artistas como Guto Lacaz e o incontornável Alex Vallauri. “A gente até levou uns cartazes pra casa”, lembra Marcia, com 14 anos à época.

A dupla começou a se perguntar: “Como é que se faz isso?”. E logo tratou de desenvolver técnica por conta própria. Com formas simples e materiais baratos. Papelão desenhado e recortado fazia às vezes do estêncil, numa tentativa de emular o que viam nas ruas de São Paulo nas férias que passaram juntas em Registro, no Vale do Ribeira.

Foi a primeira vez que Carmen, Marcia e suas respectivas irmãs viajaram sozinhas – “num fusquinha, que não tinha nem som. A gente levou um boom-box, meia dúzia de pilhas e um monte de fitas cassete”. Caíram na estrada ouvindo Legião Urbana e Ira!.

 Em Registro, onde vivia a família da dupla, elas conseguiram espaço (na casa de um tio, com “um murão gigante”) e liberdade para brincar com as tintas e os papelões. Foi o primeiro muro do resto de suas vidas. “A gente não sabia nem apertar o spray.”

É nessa altura que Ozi entra na cena delas. Pioneiro do grafite, mestre do estêncil, (mais um) discípulo de Vallauri, Ozeas Duarte ministrava uma oficina na Faap quando Carmen começou o curso de design. Foi ele quem lhe transmitiu a técnica que tanta falta fazia. Rapidamente, a dupla passou a ousar com formas mais complexas e composições mais elaboradas. Em paralelo, dava-se o boom dos quadrinhos, que virariam referência.

Meninas no muro

A Editora Abril começou a publicar HQs (ou graphic novels) gringas, com personagens rapidamente incorporadas ao repertório de artistas urbanos locais. Essa foi uma influência que Carmen e Marcia adicionaram a seu trabalho. Era o mesmo movimento feito por Maurício Villaça, Júlio Barreto e Numa (famoso pelo seu Batman).

Naquele momento, na virada das décadas de 1980 para 1990, o grafite era, ao mesmo tempo, uma brincadeira e uma transgressão. “É só olhar para a história dos meninos. Eles foram presos na época do Jânio”, diz Carmen, referindo-se às recorrentes detenções de pichadores e grafiteiros durante a prefeitura de Jânio Quadros (1986-89).

 Não havia murais em empenas, grandes obras a céu aberto. Ao contrário, o primeiro grande espaço ocupado por artistas urbanos era subterrâneo, o “Buraco da Paulista”. Carmen e Marcia grafitaram lá, depois de um bom tempo desenvolvendo seu estilo perto de onde moravam, na Aclimação. A dupla circulava pela região no indefectível fusquinha de Márcia. Quando um bom pedaço de muro se oferecia, uma saltava do carro com estêncil e lata de tinta nas mãos; a outra ficava no volante, com o motor ligado. “E a gente tinha as nossas irmãs, na retaguarda, o tempo todo”, explica Carmen. As máscaras (moldes), com os contornos do que será desenhado numa parede grudam se forem jogadas umas sobre as outras. Cabia às irmãs aplicar talco entre elas.

Carmen e Marcia no IMS, admirando o “Buraco da Paulista”, um dos pontos fundamentais para seus grafites em São Paulo. Foto: Maialu Ferlauto

 A presença daquele clã de grafiteiras era vista sob duas camadas de estranhamento. “Uma por a gente ser menina; outra por a gente ser oriental”, diz Carmen. Isso não necessariamente era um problema. “Às vezes a polícia passava, mas olhava duas japonesinhas e deixava pra lá”, conta ela. No máximo, lhes diziam: “Recolham suas coisas e vão embora”. A dupla nunca sofreu nenhum tipo de violência, a não ser em Salvador, onde moradores incomodados com uma grafitagem jogaram latas na direção delas. E na turma do grafite, como era relação com as duas meninas do grupo?

“Sempre respeitaram”, diz Carmen. “Valorizavam nosso trabalho”, completa Marcia. Bem no início, era curioso que não houvesse outras mulheres na cena. Mas elas logo começaram a surgir. Alguns meses após a estreia de Carmen e Marcia nas ruas, já havia outras meninas grafitando. Todavia, depois do workshop com Ozi, do aprendizado de técnicas e do início da prática, a dupla estava mesmo era focada em desenvolver um estilo próprio e personagens. Essas características surgiam, num primeiro momento, pela escolha das imagens. Em seguida, elas foram convidadas a trabalhar com Maurício Villaça. Com ele, fizeram a capa de um disco da Rita Lee, num projeto de que também participaram Juneca, o pioneiro da pichação em São Paulo, e Cláudio Donato, outro dos precursores do Estêncil Graffiti no Brasil. Os quatro foram com Villaça para Salvador, montar uma exposição de arte urbana. Na volta, fizeram uma em São Paulo também.

 O grafite começou a chamar a atenção, e algumas casas noturnas convidavam artistas urbanos para pintar seus espaços. Quem conseguia os trabalhos era Villaça, que os compartilhava com seus muitos parceiros – e com suas duas parceiras. “A gente se juntava na casa do Villaça. Tanto é que tinha a Dona Conceição, que fazia comida pra gente”, conta Carmen. Esse quartel-general improvisado da vanguarda paulistana do grafite ficava num pequeno sobrado do Planalto Paulista. Não era um ateliê. Era a casa dele. “Era uma sala, pequena, e eu lembro que ficava o maior cheiro de tinta. Você saía tonta até”, diz ela. “E tinha um quintalzinho na frente”, completa Marcia. Julio Barreto vivia por lá. Ricardo Tatoo, que também grafita até hoje, era outro visitante frequente.

 Muita coisa também era produzida num salão na casa do pai de Marcia, em Diadema. Para os mais diferentes meios. Em uma ocasião, o grupo grafitou placas de madeirite e compensados, que foram recortadas e aplicadas num carro alegórico de uma escola de samba da segunda divisão do Carnaval de São Paulo cujo nome elas esqueceram. Conforme a dupla foi ficando mais conhecida, a clientela interessada em grafite começou a entrar em contato direto com elas. A dupla pegou, por exemplo, um trabalho da Editora Abril, para divulgação de uma ação com figurinhas da boneca Barbie. 

Fim de ciclo e revival

 A fase em que elas estiveram mais ativas, durante a qual acontecem essas várias aventuras, vai apenas do final dos anos 1980 até o início dos 1990. Carmen era menor de idade. Quando foi a Salvador, sua mãe teve de ir ao juizado de menores, autorizar formalmente a viagem da filha de 16 anos. Na mesma época, ela abriu sua primeira conta bancária, para receber sua parte nos pagamentos por grafites comissionados. Marcia estava na faculdade. Formou-se em 1992. Em 1993, mudou-se para o Japão e parou de grafitar. Sem a parceira, Carmen também pendurou as latas de tinta. “A gente fazia os trabalhos juntas”, justifica. Foi estagiar na Prefeitura de São Paulo, depois começou a trabalhar numa empresa de embalagens, e o grafite ficou para trás. Trinta anos depois, com a arte urbana em voga em São Paulo, a dupla se reuniu para trabalhos esporádicos.

Em maio deste ano, por exemplo, Simone Siss e Kátia Lombardo, duas grafiteiras conhecidas em São Paulo, as convidaram para uma colaboração. As quatro se conheceram há um ano e meio, quando Celso Gitahy, outro pioneiro da arte de rua, as convocou para um trabalho com Ozi: uma exposição comemorativa do Dia do Grafite dentro de uma pizzaria chamada Cristal, onde há um muro com uma obra de Villaça.

Detalhe: o Dia do Grafite é celebrado em 27 de março, data que homenageia Alex Vallauri, o maior dos pioneiros da arte urbana no Brasil. A data foi escolhida já em 1988 para marcar o aniversário da morte de Vallauri, que faleceu em 27 de março de 1987.

A dupla durante a entrevista, no café do Instituto Moreira Salles. Foto: Maialu Ferlauto

Foi no Dia do Grafite de 2024 que a dupla Carmen e Marcia ressurgiu, causando reações do tipo: “Olha, as meninas existem!”. Nas três décadas de “apagamento”, quem mais contribuiu para manter seu status de “lenda urbana” foi Ozeas Duarte, que falava da dupla sempre que tinha oportunidade. “Os meninos que continuam na ativa sempre falam de nós”, diz Carmen. Ricardo Tatto, por exemplo, dá aulas na Belas Artes, faz oficinas em várias escolas e costuma contar a história delas. O mesmo vale para Gitahy.

Com Simone e Kátia, Carmen e Marcia participaram de uma grafitagem coletiva apenas de mulheres na região da Freguesia do Ó, na Zona Norte de São Paulo. A ação reuniu várias gerações. As mais novas, como regra, pintam obras maiores, que as duas veteranas tratam não como grafite, mas como muralismo. A ideia de intervenções artísticas autorizadas no espaço urbano só não é totalmente estranha para elas por uma experiência na virada dos anos 1980 para os 1990. Em uma ocasião, Carmen e Marcia receberam autorização da então prefeita Luiza Erundina (1989 – 1992) para grafitar o “Buraco da Paulista”. A dupla fez alguma coisa também nas pilastras do Minhocão. Fora isso, grafite para elas era uma atividade marginal, da qual às vezes fugia-se correndo.

Pintar murais, com muitos toques e retoques, não é para elas. “A gente faz uma intervenção em cima dos elementos da própria cidade”, afirma Carmen. “A gente vai até um poste. Se tiver uma plaquinha lá ‘Vendem-se ovos’, a gente desenha galinhas subindo no poste.” Marcia tem os direitos para grafitar o Níquel Náusea, personagem do cartunista brasileiro Fernando Gonsales lançado na Folha de S. Paulo em 1985. Como se trata de um rato de esgoto que tem como melhor amiga a barata Fliti, viciada em inseticida, a dupla o grafitava em bueiros. Era sempre uma brincadeira com os elementos que a cidade proporciona. Com isso em mente, voltar a grafitar nas ruas de São Paulo depois desse tempo todo é divertido, mas não revive a adrenalina dos velhos tempos.