5 de dezembro.
Cumprem-se esta sexta-feira exatamente 25 anos sobre o dia em que José Mourinho esteve «a minutos», como o próprio admitiu mais tarde, de ser treinador do Sporting.
Ora como o destino tem um sentido de humor surpreendente, calhou que, um quarto de século depois, este 5 de dezembro de 2025 fosse também dia de Mourinho estar no meio de um confronto entre os rivais Sporting e Benfica. Curioso, não é?
Nem por isso. O treinador já tinha sido, por exemplo, anunciado por Rui Costa exatos 25 anos depois de chegar pela primeira vez ao Benfica. Enfim, é claramente um homem de datas redondas.
Ora hoje é dia de dérbi, no Estádio da Luz, o que traz à memória esse outro duelo entre Sporting e Benfica: um duelo fora de campo, que tornou aquela terça-feira, dia 5 de dezembro de 2000, numa das datas mais loucas e intempestivas na centenária rivalidade entre os dois clubes.
Mas já lá vamos.
Interessa, antes de mais, dizer que esta história começou dois dias antes. Um domingo.
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Domingo, 3 de dezembro de 2000
19:00 horas
No Estádio da Luz, disputa-se o dérbi eterno. O jogo termina por volta das 21 horas e o Benfica bate o Sporting por 3-0, na noite em que João Tomás foi herói (após uma semana em que tinha sido notícia por, alegadamente, estar lesionado).
José Mourinho contou mais tarde, no primeiro livro que lançou, que aproveitou a vitória no dérbi para encostar Manuel Vilarinho à parede: perante a notícia de que Toni era o treinador preferido do novo presidente, Mourinho recebeu-o após o fim do jogo no seu gabinete, em cuecas e de pernas em cima da mesa, para exigir a renovação por mais uma época.
23:00 horas
No seu escritório em Alvalade, Luís Duque dá voltas à cabeça. O presidente da SAD leonina sentia que havia uma cisão entre Augusto Inácio e alguns pesos pesados do balneário, pelo que defendia a saída do treinador campeão. Na SAD alguém lhe sugeriu o neerlandês Guus Hiddink, que estava sem clube desde que tinha deixado o Betis, ainda na época anterior.
Luís Duque tinha outras ideias. Queria alguém que conhecesse o campeonato português e via em José Mourinho o homem ideal: uma admiração que até já tinha partilhado com José Veiga, nessa altura o empresário do treinador. Por isso, nessa noite, ganha coragem e telefona a Mourinho. Pergunta-lhe se os dois se podem encontrar para conversar.
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Segunda-feira, 4 de dezembro de 2000
00.30 horas
Ainda nessa noite, mas já madrugada de segunda-feira, Luís Duque e o diretor-desportivo Carlos Freitas encontram-se com Mourinho no hotel da Quinta da Marinha, em Cascais.
Falam durante horas. Mourinho já sabia ao que ia e levou para o encontro um dossier com fichas completas de todos os jogadores do plantel leonino. Luís Duque fica impressionado com o nível de detalhe. Fala-lhe do projeto do Sporting, da construção da Academia de Alcochete e da profissionalização em curso de todos os departamentos do clube.
Mourinho mostra-se entusiasmado, mas deixa bem claro que a prioridade dele é o Benfica. Sabia que Manuel Vilarinho tinha vencido as eleições com a promessa de fazer regressar Toni e que o antigo campeão era a escolha do presidente. Mesmo assim considera que tem um dever de lealdade com os jogadores e responde a Luís Duque que só após ter a certeza de que não conta para Vilarinho é que podiam avançar.
Manhã de segunda-feira
É dia de folga para os planteis de Benfica e Sporting, após o dérbi do dia anterior. Ainda assim, Mourinho telefona a Manuel Vilarinho e pede-lhe para falarem.
Volta a insistir que precisa de uma prova de confiança no trabalho dele e que essa prova passa pela renovação por um ano. Diz que, perante as notícias que têm saído sobre o desejo de fazer regressar Toni, é necessário reforçar a posição dele, até perante os jogadores.
Manuel Vilarinho volta a responder que não pode fazer isso sem falar com os investidores, que ainda é muito cedo e que o que estava previsto era analisar a renovação apenas no fim de maio. Mourinho termina a chamada e liga a Luís Duque. Podiam voltar a encontrar-se.
11.00 horas
Pinto da Costa vê cerca de meia hora do primeiro treino da semana do FC Porto no meio dos jornalistas. Antes de sair, presta declarações para falar apenas do dérbi… e de Mourinho.
«Foi a vitória de um jovem treinador português que demonstrou ter grande coragem. Provou que os portugueses, quando têm oportunidades, são capazes de conseguir coisas que muitos estrangeiros não conseguem», referiu o presidente do FC Porto.
Estava visto: Luís Duque não era o único admirador das qualidades de Mourinho.
Meio da tarde
José Mourinho e Luís Duque voltam a encontrar-se, desta vez no escritório de José Veiga, no Campo Grande. O encontro já não é só para conversarem: é para discutirem o contrato. Após horas de negociações, Mourinho assina um pré-acordo para ser treinador do Sporting por um ano, com mais uma época de opção, com cláusulas de penalização em caso de incumprimento de qualquer das partes.
Fica decidido também que o Sporting iria entregar o plantel a um treinador interino, o qual seria responsável pelo jogo frente ao Belenenses, no sábado. Depois disso, Mourinho seria anunciado e começaria a treinar em Alvalade a partir de segunda-feira.
Os dois tinham entrado pela garagem para evitar serem vistos, mas não conseguem fugir ao olhar do porteiro do edifício, que acha estranha aquela coincidência. Pouco depois chega Humberto Pedrosa, poderoso empresário, que também tem um escritório no edifício, e que é avisado pelo porteiro da presença de Duque e Mourinho no local.
Humberto Pedrosa é uma pessoa próxima de Manuel Vilarinho, tinha financiado a campanha dele e viria depois a ser um dos maiores subscritores de ações da SAD do Benfica. Por isso partilha a informação com o presidente. Vilarinho não muda de opinião, mas utiliza aquela notícia como arma de arremesso, para defender a sua posição perante os sócios.
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Terça-feira, 5 de dezembro de 2000
9.30 horas
É dia de regresso aos treinos de Benfica e Sporting. Tanto na Luz, como em Alvalade, os treinadores agendam dois treinos: um de manhã e outro à tarde.
Antes disso, na edição das 9.30 horas, a Bola Branca, da Rádio Renascença, emite uma entrevista com José Mourinho, através da qual o treinador diz que as posições continuam extremadas e que ele próprio, «pelo canto do olho», já explorava outras hipóteses.
O treinador queixava-se, entre outras coisas, das contratações de André Neles e de Roger, bem como dos regressos de Ricardo Esteves e Rui Baião. Tudo sem sequer o consultar.
11:00 horas
Alarmados com as notícias que vão chegando de mal-estar, multiplicadas pela entrevista de Mourinho à Bola Branca, dezenas de sócios do Benfica dirigem-se ao Estádio da Luz. Por volta das 11 horas, são já cerca de duas centenas que se juntam no exterior do estádio. Lá dentro, no relvado principal, Mourinho orienta o treino que já estava agendado.
17:00 horas
Durante a tarde, Mourinho orienta mais um treino no Estádio da Luz e, no final, explica aos jogadores que pode estar de saída: revela que tinha feito um ultimato à direção para lhe renovarem o contrato por mais um ano e que, sem isso, não poderia continuar. Depois vai ao gabinete de Manuel Vilarinho e apresenta a demissão.
Sensivelmente ao mesmo tempo, em Alvalade, Augusto Inácio é chamado pela direção, que lhe explica que a partir daquela data deixava de ser treinador do Sporting.
Foi-lhe proposto continuar no clube, num cargo de coordenador de todos os escalões, e foi-lhe pedido que fosse com Luís Duque à conferência de imprensa, que iria anunciar o divórcio entre as partes. Até para ser elogiado e para ter uma saída honrosa.
17.30 horas
Poucos minutos depois, José Manuel Freitas noticia no site Desporto Digital que Mourinho se demitira de treinador do Benfica e que Inácio estava também de saída do Sporting. O que, naturalmente, provocou de imediato um grande alvoroço.
O pior viria às 17.30 horas. Na edição intermédia da Bola Branca, o jornalista Pedro Sousa avança com a notícia de que Mourinho vai ser o treinador do Sporting. O que estragou, por completo, os planos de Luís Duque, que pouco depois iria dar a cara ao lado de Inácio em conferência. Revoltados, os adeptos leoninos invadem a sala de imprensa.
Enquanto isso, no Estádio da Luz, os associados invadem também a sala de imprensa, em desacordo com a saída de José Mourinho. A direção do Benfica chama a polícia, mas os agentes enviados para a Luz não conseguem acalmar a situação.
18:00 horas
Os jogadores do Sporting começam a sair de Alvalade e vão sendo interpelados pelos jornalistas, que os confrontam com a notícia da chegada de Mourinho, avançada por Bola Branca. Todos eles mostram surpresa, mas o capitão Beto é o mais corrosivo.
«Não brinquem comigo! Isso só pode ser uma piada de muito mau gosto», atirou, de dentro do carro, ao repórter da RTP que o informara da iminente chegada de Mourinho.
19:00 horas
Manuel Vilarinho desce ao balneário para reunir com os jogadores e para lhes explicar os motivos da saída do treinador. O plantel deixa o Estádio da Luz já depois das 20 horas.
Enquanto isso, a conferência de imprensa da direção, que estava marcada para as 18 horas, foi sendo sucessivamente adiada. Pelas 19 horas, o diretor de comunicação João Malheiro decidiu entrar na sala, para ver como estava o ambiente. Péssima ideia. Acabou por ter de rapidamente se retirar, por entre muitos insultos e alguma agressividade dos adeptos.
19.30 horas
Perante a demora da direção em falar com os sócios do Benfica, chegou-se à frente… José Mourinho. Acompanhado por Mozer, entrou na sala de imprensa, sendo recebido com muitos aplausos e gritos de «Mourinho, Mourinho, Mourinho».
«Dissemos à direção do Benfica que só continuaríamos se renovássemos o contrato por mais uma época. Esta forma de pressão não foi aceite, o que é uma prova de pouca confiança no nosso trabalho. Por isso fizemos aquilo que já tínhamos pensado há algum tempo: deixar espaço para a direção poder gerir melhor os interesses do Benfica», anunciou Mourinho.
20:00 horas
Do outro lado da Segunda Circular, no Estádio de Alvalade, Luís Duque entra numa sala de imprensa também ela cheia de adeptos, com Augusto Inácio e a direção da SAD a seu lado. Anuncia ao mundo que Inácio já não era o treinador do Sporting e dá-lhe um abraço.
A partir daí não conseguiu falar mais. «O Mourinho não. Isso nunca na vida. O Mourinho nunca», gritam os adeptos. Inácio levanta-se e pede calma aos adeptos, mas nada feito. «Ó Inácio, tu até podes ir embora. O que nós não queremos é que venha o Mourinho.»
É então que um adepto pergunta a Luís Duque se confirma ou desmente que Mourinho vem para o Sporting. «Não confirmo que venha o treinador José Mourinho», responde, para depois acrescentar: «Desminto que tenha algum contrato ou promessa com José Mourinho.»
A mentira não acalmou os adeptos e há um, mais exaltado, que se chega à frente. «Garanto-lhe que, se o Mourinho for contratado, nem ele nem você colocarão mais um pé em Alvalade», grita. Luís Duque tenta sair daquela situação. «Escuto o que vocês dizem, anoto os vossos conselhos, mas só estamos aqui para agradecer ao Inácio.»
21:00 horas
Mais ou menos à hora em que termina a conferência em Alvalade, entra na sala de imprensa da Luz o vice-presidente Tinoco de Faria, acompanhado de outros vice-presidentes, entre os quais Mário Dias ou João Noronha Lopes. Todos menos… o presidente Manuel Vilarinho.
A direção é recebida com assobios e insultos. Tinoco de Faria tenta ler um comunicado durante largos minutos, mas não consegue fazê-lo perante os apupos dos adeptos. Levanta-se, grita, pede o microfone, mas nada. Até que decide ler o comunicado na mesma.
«José Mourinho deixou hoje o comando técnico da equipa principal do Benfica, após ter feito um ultimato inaceitável ao presidente do clube, exigindo que no prazo de 24 horas prolongasse o seu contrato por mais uma época», disse, com os apupos dos sócios em fundo.
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Quarta-feira, 6 de dezembro de 2000
00:00 horas
Já passava da meia-noite quando Manuel Vilarinho conseguiu por fim abandonar o Estádio da Luz. No exterior da garagem estava ainda cerca de uma centena de adeptos do Benfica, que de pronto recebeu o presidente com assobios e insultos. A polícia fez um cordão em torno do jipe do presidente, para evitar que os adeptos conseguissem chegar até ele.
Só depois disso, os sócios que tinham estado quase todo o dia na Luz desmobilizaram e regressaram a casa.
02:00 horas
Augusto Inácio está em casa, sentado no sofá da sala. A televisão está ligada, mas o treinador não está a ver nada: tem a cabeça a viajar por tudo o que tinha acontecido.
É então que o telefone toca. O relógio por cima da televisão marca duas da manhã. Era Luís Duque: disse-lhe que se tinha precipitado e combinou com o treinador tomar o pequeno-almoço no hotel Radisson, bem próximo do Estádio de Alvalade.
09:00 horas
Luís Duque refletira durante a noite e decidira que não podia continuar. O que acontecera no dia anterior tinha sido muito grave, o presidente da SAD não tinha sentido apoio e por isso ia apresentar a demissão ao presidente do clube, Dias da Cunha. Antes disso, foi tomar o pequeno-almoço com Inácio ao Radisson e pediu-lhe que voltasse.
A ideia de Luís Duque era não deixar o banco com um interino quando saísse do clube. A demissão iria ser apresentada à tarde, quando Dias da Cunha regressasse de uma viagem a Moçambique. O presidente tinha perdido o voo para Lisboa, teve de apanhar um avião para Paris e daí para Lisboa. Por isso, Luís Duque ainda não conseguira falar com ele.
Augusto Inácio, por outro lado, aceitou continuar, mas impôs uma condição: que Luís Duque entrasse com ele no treino. Mas Duque nunca apareceu. «Toda a gente me pergunta porque aceitei. A verdade é que tinha crescido naquela casa e toda a minha família era sportinguista. Aquela era a minha cadeira de sonho», justificou o antigo treinador.
Início da tarde
Augusto Inácio chega a Alvalade e uma das primeiras pessoas que encontra é o guarda-redes Peter Schmeichel. O dinamarquês pergunta-lhe se tinha ido buscar as coisas dele e Inácio responde que não, que vai dar o treino. Pelas 16 horas, Inácio orienta então a sessão de trabalho, para surpresa de adeptos e jornalistas, que estavam à espera de tudo… menos aquilo. No fim do treino, marca nova sessão para o dia seguinte, também às 16 horas.
17 horas
Luís Duque e António Dias da Cunha encontram-se em Alvalade, para uma reunião pedida pelo presidente da SAD. Durante o encontro, Duque explica que não está a fazer nada em Alvalade se nem pode escolher o treinador, lamenta a falta de solidariedade de alguns responsáveis do clube e apresenta um pedido de demissão.
Dias da Cunha não aceita.
19.30 horas
Dias da Cunha fala com os jornalistas, à saída de Alvalade. Confirma que não tinha aceitado o pedido de demissão de Luís Duque e garante que a situação do treinador é da inteira responsabilidade da SAD. Mas sempre vai elogiando Inácio, antes de atirar: «Como sportinguista, posso dizer que José Mourinho não tem nada que o recomende.»
Luís Duque sentiu-se ainda mais fragilizado.
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Quinta-feira, 7 de dezembro de 2000
13:10 horas
Augusto Inácio está a almoçar em casa da mãe, que fica próxima do Estádio de Alvalade, quando recebe um telefonema da secretária de Luís Duque, a informá-lo para não aparecer no treino da tarde, porque estava dispensado.
Inácio respondeu que não podia ser a secretária a dar uma informação dessas e que ia a Alvalade falar com Luís Duque. Quando chega aos escritórios da SAD, entra sem pedir autorização no gabinete de Luís Duque, que tem uma sala que serve de hall de entrada, antes do gabinete propriamente dito. Inácio fica à espera de Luís Duque nessa sala que é um hall.
O presidente da SAD vem falar com o treinador, explica-lhe que a administração considera que não se pode voltar atrás e que não havia nada a fazer. Os dois discutem fortemente.
16:00 horas
À hora marcada, o plantel do Sporting começa a treinar em Alvalade, desta vez sob orientação de Fernando Mendes. O histórico lateral do Sporting já tinha sido anunciado como treinador interino na terça-feira anterior, mas só na quinta-feira começou de facto a treinar. Durante cerca de mês e meio, vai ser ele o homem do leme, até que Luís Duque vai aos Açores buscar a velha glória Manuel Fernandes, que estava a treinar o Santa Clara.
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A partir daqui, Luís Duque deixa cair a hipótese José Mourinho. Mas não quebra a amizade com o treinador. No dia 21 de dezembro, por exemplo, vai jantar com Mourinho. No dia seguinte, conta à TSF que tinham «falado durante horas», que tinha ficado «fascinado com as experiências dele» e insistiu que foi a primeira vez que estiveram juntos. O que era falso.
Pouco depois, a 4 de janeiro, Luís Duque reúne com Augusto Inácio em Alvalade. O treinador informa o presidente da SAD que queria continuar a ser treinador e declinava o convite para integrar a estrutura do clube. A 25 de janeiro Luís Duque contrata Manuel Fernandes para treinador definitivo e dia 8 de fevereiro, dois meses após não conseguir contratar Mourinho, apresenta novamente a demissão. Desta vez, Dias da Cunha aceita-a.
Já José Mourinho continuou sem clube até final da época e na temporada seguinte começa a treinar a União de Leiria, que abandona em janeiro para ir treinar o FC Porto.
O resto é história.