Durante mais de uma década, o mercado tecnológico habituou os consumidores a uma tendência quase inevitável: ano após ano, o custo por gigabyte caía. Cartões de memória, SSD e módulos de RAM tornavam-se mais rápidos, mais fiáveis e, sobretudo, mais baratos. Essa dinâmica deflacionária ajudou a democratizar computadores potentes e grandes bibliotecas digitais pessoais. Porém, este ciclo está a inverter-se de forma abrupta — e a inteligência artificial (IA) está no centro da mudança.
O sinal mais visível desta viragem chegou esta semana com a Micron, que anunciou o fim da sua histórica marca de consumo, a Crucial. A decisão marca a prioridade absoluta dada à IA: a empresa concentra agora todos os recursos na alimentação dos centros de dados que sustentam modelos generativos como os utilizados pelo ChatGPT e Gemini. A Micron não está sozinha. As congéneres sul-coreanas, Samsung e SK Hynix, estão a seguir o mesmo caminho, deslocando capacidade produtiva do mercado da computação pessoal para os grandes centros de dados. Os novos clientes preferenciais são os chamados hyperscalers, as gigantescas infra-estruturas da Microsoft, Google ou Meta.
Para compreender o impacto desta mudança nos preços, é preciso olhar para o tipo de memória que hoje domina a procura. Os servidores dedicados a IA recorrem à HBM (high bandwidth memory), um chip muito mais complexo e exigente do que a memória DDR que equipa os computadores pessoais. A HBM ocupa mais espaço físico nas bolachas de silício, consome mais tempo de fabrico e exige processos mais avançados. As linhas de produção capazes de a produzir são limitadas — e são exactamente as mesmas que, até agora, fabricavam RAM e SSD para portáteis, desktops e smartphones.
Segundo a consultora TrendForce, os três grandes fabricantes mundiais estão a converter linhas inteiras para HBM e para SSD empresariais de alta densidade. O resultado é simples: produz-se muito menos memória para o mercado de consumo. A oferta diminui, a procura mantém-se relativamente estável e, como consequência natural, os preços sobem.
Os números confirmam esta escalada. Um kit de 32 GB de DDR5, que, em Agosto, custava cerca de 80 euros, pode agora chegar aos 300 euros — quase quatro vezes mais. E as previsões indicam que este movimento não só continuará como poderá intensificar-se ao longo do próximo ano. Não se trata de falta de matérias-primas, mas de uma decisão estratégica: cada bolacha de silício é mais lucrativa quando canalizado para componentes para os grandes centros de dados.
É neste contexto que o desaparecimento da marca Crucial ganha especial relevância. Vender módulos individuais ao consumidor implica marketing, logística e margens estreitas. Fornecer terabytes de memória a um centro de dados, pelo contrário, é incomparavelmente mais rentável. Para a Micron, cortar a divisão de retalho é uma consequência lógica do novo equilíbrio económico imposto pela IA.
Nova crise de semicondutores?
Este reajustamento industrial já tem efeitos no bolso dos consumidores. Quem planeia montar um PC ou actualizar o armazenamento de um portátil deve preparar-se para orçamentos mais elevados. O baixo preço por gigabyte que permitiu popularizar SSD de 2 TB ou 4 TB está rapidamente a desaparecer. No último ano, os preços destes componentes subiram mais de 20%, e tudo indica que não irão baixar. O mesmo se passa com a memória RAM: com a migração para DDR5 e a realocação de capacidade para HBM, o preço da RAM doméstica dificilmente regressará aos níveis anteriores.
Este efeito acabará por se reflectir também em portáteis e smartphones, dispositivos fortemente dependentes de memória rápida e armazenamento flash. Para evitar subir o preço final, muitos fabricantes poderão congelar as especificações base — mantendo, por exemplo, 8 GB de RAM ou 256 GB de armazenamento — travando a evolução natural do hardware.
Não estamos perante um colapso, mas sim perante uma mudança estrutural. Enquanto os modelos de inteligência artificial continuarem a crescer e a exigir volumes gigantescos de dados, os centros de dados ditarão as prioridades industriais. Para os consumidores, a era da memória barata chegou ao fim — e esperar por uma descida de preços poderá já não ser uma estratégia eficaz.