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Uma arqueia consegue “tolerar incerteza” e ler o mesmo códão de duas formas diferentes, pondo em causa um dogma com 60 anos. “É como acrescentar mais uma letra ao alfabeto” do código genético, que passa a ter 21 aminoácidos em vez dos 20 que conhecemos.
Os organismos vivos costumam ler o código de ADN de forma muito rígida e previsível. Cada códão, o conjunto de três nucleótidos num gene, corresponde a um aminoácido específico que passa a integrar uma proteína em formação.
Investigadores da Universidade da Califórnia, em Berkeley, descobriram agora que um tipo de microrganismo consegue tolerar incerteza neste processo.
O trabalho, apresentado num artigo recentemente publicado na Proceedings of the National Academy of Sciences põe em causa a ideia, defendida há décadas, de que o código genético tem de ser sempre interpretado com total precisão.
Este microrganismo, um produtor de metano pertencente ao domínio Archaea, microrganismos procariotas que se caracterizam por terem morfologia semelhante à das bactérias, mas organização molecular distinta, lê uma determinada sequência de três letras de duas maneiras diferentes.
Embora o códão sirva normalmente como sinal de “stop”, terminando a produção da proteína, o organismo trata-o por vezes como indicação para continuar a construir a proteína.
O resultado é a formação de duas versões da mesma proteína, e a escolha parece ser influenciada, em parte, pelas condições ambientais.
A espécie, Methanosarcina acetivorans, mantém-se saudável enquanto funciona com este sistema de descodificação flexível, mostrando que a vida consegue operar com um código genético ligeiramente imperfeito.
Os cientistas pensam que esta ambiguidade pode ter evoluído para permitir ao organismo acrescentar um aminoácido raro, chamado pirrolisina, a uma enzima que o ajuda a degradar metilamina, um composto ambiental comum, detetado inclusivamente no intestino humano.
Ambiguidade como vantagem
“Objetivamente, a ambiguidade no código genético deveria ser destrutiva; acabaria por gerar um conjunto aleatório de proteínas”, diz Dipti Nayak, professora auxiliar de biologia molecular e celular na UC Berkeley e autora sénior do artigo.
“Mas os sistemas biológicos são mais ambíguos do que lhes damos crédito e essa ambiguidade é, na verdade, uma característica — não é um erro”, acrescenta a investigadora, citada pelo Sci Tech Daily.
As arqueias que “comem” metilaminas, e as bactérias que poderão ter adquirido essa capacidade, desempenham um papel importante no organismo humano.
No fígado, metabolitos libertados pela carne vermelha são convertidos em trimethylamine N-oxide, composto associado a doença cardiovascular. Dependemos destes microrganismos para remover as metilaminas antes de chegarem ao fígado.
As conclusões têm implicações para futuras terapias. Alguns investigadores já tinham sugerido que introduzir alguma imprecisão na maquinaria de tradução poderia ajudar a tratar doenças causadas por “códões de stop” prematuros em genes importantes, que levam à produção de proteínas não funcionais.
Isso inclui cerca de 10% de todas as doenças genéticas, como a fibrose quística ou a distrofia muscular de Duchenne. Tornar um “códão” de stop um pouco “permeável” poderia permitir a produção de quantidade suficiente da proteína normal para atenuar os sintomas.
O ADN do genoma é inicialmente transcrito em ARN e esse código genético é depois lido pela maquinaria celular para produzir proteínas. Os ácidos nucleicos que compõem o ARN existem em quatro variantes — adenina (A), citosina (C), guanina (G) e uracilo (U).
Na maioria dos organismos estudados até hoje, grupos de três ácidos nucleicos, ou códões, são atribuídos a um único aminoácido ou a um chamado “códão de stop”, que termina a síntese daquela proteína. Quando o ARN é traduzido numa cadeia de aminoácidos, a maquinaria respeita sempre esta associação de um para um.
Nem todos os organismos descodificam o ARN da mesma maneira. Alguns atribuem um aminoácido diferente a um dado códão, alguns têm mais do que os 20 aminoácidos “padrão” por organismo, e os códões são redundantes — vários podem codificar o mesmo aminoácido.
Mas, de forma uniforme em toda a árvore da vida, cada códão tem apenas um significado — sem exceções. “É essencialmente como uma cifra”, explica Nayak. “Está a pegar-se em algo numa língua e a traduzi-lo para outra, nucleótidos para aminoácidos.”
Os cientistas sabem há muito tempo que muitos membros do domínio Archaea produzem pirrolisina, o que lhes dá 21 opções de aminoácidos, em vez dos habituais 20, a partir dos quais podem fabricar proteínas. Isso traz vantagens, diz Nayak.
“Quando passamos a ter um novo aminoácido, o mundo abre-se”, acrescenta o investigador. “Podemos começar a brincar com um código muito mais vasto. É como acrescentar mais uma letra ao alfabeto”.