Jorge Costa, “o capitão”, partiu num dia abrasadoramente traiçoeiro, aos 53 anos, num último sprint entre o Olival e o Hospital de São João, traído pelo coração — órgão com tanto de nobre, quanto de cruel. O mesmo coração que conquistou o dos portistas e que há três anos lhe tinha mostrado o “amarelo” mais sério de uma carreira singular, em que venceu quase tudo e todas as adversidades, desde lesões graves a injustiças ainda mais difíceis de superar. Tudo sem deixar ninguém, amigos e rivais, indiferente.
A notícia correu o mundo como gigantescas vagas de choque, entre reacções de incredulidade e de sentidas homenagens. Falar do número dois, herdeiro natural da camisola do lateral direito João Pinto, é falar de liderança, coragem e de um dos mais implacáveis e intransigentes defensores do reino do “dragão”.
Liderança inata que o distinguiu como uma das figuras mais marcantes da história do clube. Estatuto sublinhado pelas conquistas que o elevam ao patamar de “capitão” do penta, feito ímpar no futebol português, onde continua a ser o terceiro jogador com mais títulos conquistados ao serviço dos “dragões”.
Jorge Costa, o capitão é também o título da biografia escrita pelo amigo, jornalista, professor e escritor Carlos Pereira Santos (para quem Jorge Costa era o bichinho) e pelo actual responsável pela Comunicação do FC Porto, Rui Cerqueira, obra publicada um ano antes de Jorge Costa ter encerrado a carreira ao serviço do Standard Liège, da Bélgica.
Clube onde partilhou balneário com Sérgio Conceição, o último treinador campeão pelo FC Porto, que o “bicho” não hesitou em colocar em sentido quando se defrontaram já como treinadores. Uma biografia que mapeia a alma de um dos mais genuínos e notáveis “dragões”. Alguém que sempre teve a certeza de que ficaria — “aconteça o que acontecer” — na história do clube do coração… mesmo que tivesse de o lembrar a Pepe, outro símbolo com quem chocou já como treinador do Farense, e que ontem foi um dos primeiros a sublinhar o legado de Jorge Costa.
Jorge Costa deixou-nos. Um de nós, um líder, capitão, exemplo. Um símbolo do FC Porto.
Obrigado por seres FC Porto até ao fim.
Até sempre, Jorge Costa. pic.twitter.com/XTmW5WVEHj
— FC Porto (@FCPorto) August 5, 2025
Sempre o mesmo coração que em tempos o levara a assumir que tinha em Rui Costa, actual presidente do Benfica, um dos maiores amigos, mesmo que isso pudesse provocar estranheza em espíritos mais fundamentalistas do clube “azul e branco”.
Uma amizade dos tempos das selecções jovens de Carlos Queiroz que manteve, independentemente das diferenças clubísticas.
Ética de que nunca abdicou, mesmo quando teve de posicionar-se num campo oposto ao de Pinto da Costa, ao apoiar a candidatura de André Villas-Boas, sempre em defesa intransigente do FC Porto.
De resto, a frontalidade dentro e fora de campo foi a imagem de marca de alguém que se expressava num tom e registo de profunda tranquilidade, difícil de compreender para quem o via marcar os adversários de forma dura e implacável.
Mourinho e o sonho
Tom que endurecia se tivesse de virar o balneário do avesso, como fez em momentos absolutamente cruciais, com o mais flagrante a acontecer em Belém, ao intervalo de um jogo em que José Mourinho nem precisou de afiar as garras para despertar uma equipa irreconhecível. Ónus assumido de forma instintiva por Jorge Costa, com a dureza de um “capitão” que nunca brincou em serviço.
Nessa noite de Janeiro de 2003, Jorge Costa não se limitou a abanar a equipa com palavras certeiras. Em campo, três minutos após o regresso das cabinas, o “bicho” marcou o primeiro dos três golos do triunfo (1-3), momento decisivo na campanha do primeiro título de campeão de Mourinho pelo FC Porto. Melhor, Jorge Costa bisou pela primeira vez na carreira ao serviço do FC Porto nesse encontro, liderando pelo exemplo, mesmo depois de um ano antes ter sido obrigado a deixar as Antas por uma porta menor.
Um regresso ainda mais marcante, em que recuperou a braçadeira de “capitão” depois de uma “eleição” desmobilizada por Vítor Baía, o dono da braçadeira, quando disse ao grupo que o voto dele iria para Jorge Costa.
Um “sonho” sublimado com a conquista, em dois anos consecutivos, da Liga Europa, da Liga dos Campeões e da Taça Intercontinental. Os últimos de 22 títulos somados de “dragão” ao peito… Juntamente com o oitavo título de campeão nacional, que somou a cinco Taças de Portugal e cinco Supertaças, sempre no clube do coração, e um Mundial sub-20 (1991).
Jose Mourinho is moved to tears at a Fenerbahce press conference, paying tribute to the captain of his Champions League winning Porto team Jorge Costa.
Costa sadly passed away at the age of 53 due to a heart attack. pic.twitter.com/FZmQ0wji3m
— Men in Blazers (@MenInBlazers) August 5, 2025
Da Foz para o mundo
Curiosamente, Jorge Costa começou relativamente tarde no futebol. Ainda assim, o passo firme do Campo da Ervilha, na Foz, para a Constituição foi, aos 14 anos, absolutamente natural. O FC Porto ganhava a “corrida” a Boavista e Leixões sem precisar de aliciar o miúdo que ainda vibrava com a final de Viena sem saber que o futuro lhe reservaria a eternidade como figura de proa dos portistas.
Mas esse era apenas o início de uma caminhada triunfante, forjada na formação, consolidada com os empréstimos a Penafiel e Marítimo antes de uma década como um dos pilares da defesa das Antas, onde teve de lutar por um lugar ao sol, aguardando pelo momento certo para se impor como patrão quando a concorrência era fortíssima, com Fernando Couto, Zé Carlos e Aloísio na linha da frente.
Miúdo a crescer
Aloísio que não esconde o choque por perder um amigo e um “miúdo” que viu despontar, com quem formou dupla na equipa principal e com quem viria a trabalhar na segunda etapa de Jorge Costa, como treinador, após ter recebido um convite para ser adjunto do antigo companheiro no Sp. Braga, em 2006/07.
“Soube da notícia por um amigo, sócio portista. Foi um choque, porque para além de ser ainda muito jovem, vi-o crescer como jogador e tornar-se num líder. Notava-se que já era um miúdo que sabia o que queria e que acabaria por ser o defesa central com quem mais privei”, recorda Aloísio, sem esconder que Jorge Costa era “um cara muito especial, brincalhão no día-a-dia, mas sério e profissional. Um líder que não precisava de se impor”.
Para Aloísio, um dos méritos de Jorge Costa foi ter vingado com naturalidade num clube e num plantel onde a concorrência era feroz.
“Naquele tempo era muito complicado para qualquer jovem chegar à primeira equipa. Ainda mais quando os mais velhos eram profissionais de créditos firmados. Mas a personalidade e as características não deixavam dúvidas de que estávamos perante um grande jogador, forte na marcação, alto, determinado”, vinca, sublinhando que era uma dupla que se complementava quase na perfeição.
“Infelizmente, depois de termos trabalhado no Braga, não voltámos a encontrar-nos. Acompanhei sempre o trajecto dele como treinador, tanto em Portugal como no estrangeiro, e tenho pena de ter perdido o contacto, pois vivemos momentos muito bons. Mas agora é tarde…”, testemunhou o brasileiro.
Ideias repetidas por todos que com ele privaram, jogadores e treinadores, como Fernando Santos e José Mourinho, que afirmou ter perdido uma parte da sua própria história, prometendo fazer o que imagina que Jorge Costa lhe pediria neste momento, lembrando-lhe que tem de pensar no próximo jogo e na equipa que precisa de toda a atenção do líder.
E Jorge Costa sabe, mesmo não tendo atingido, enquanto treinador, o patamar onde se notabilizou como futebolista, a importância de separar as emoções das decisões. Mas, mesmo nesse capítulo, Jorge Costa conquistou o respeito, com uma carreira em Portugal, iniciada no Sp. Braga e concluída no AFS, na Vila das Aves, depois de experiências no estrangeiro, da Roménia ao Chipre, da selecção do Gabão à Tunísia, de França à Índia, num périplo que o enriqueceu e preparou para regressar pela segunda vez ao FC Porto, já como director, com responsabilidades na construção de uma equipa campeã.
Um regresso diferente do de 2002, depois de ter sido afastado por Octávio Machado, na sequência de uma reacção a uma substituição a cinco minutos do intervalo. O “bicho” teve de mudar-se para os arredores de Londres, onde deixou marca no Charlton e ganhou a alcunha de “tanque”. No fundo, uma variação da que Fernando Couto lhe colara para a vida, sinónimo de disponibilidade e entrega total, sem reservas, como reconheceram nomes grandes como Bobby Robson.
Carisma que lhe permitiu manter uma certa equidistância de Pinto da Costa e, mesmo assim, continuar como figura intocável do universo portista, capitão sem procuração, reserva moral que na nova função de dirigente reforçava a credibilidade de uma estrutura ainda em reabilitação. Jorge Costa acabou por sair de cena a poucos dias do arranque da nova época, logo após ter concedido uma entrevista à Sport TV, em que reforçava a crença e as elevadas expectativas numa campanha à altura do FC Porto, assumindo a confiança na nova liderança técnica e nas apostas feitas para reforçar o plantel.
Jorge Costa sabia que o primeiro jogo — frente ao Vitória SC — será fundamental para criar uma dinâmica vencedora, algo que já não depende da liderança que estava a imprimir. Momento que ficará marcado pela homenagem ao número 2 da era pós João Pinto. Precisamente o número que tinha nesta altura, face à liderança de Villas-Boas, o “observador” de José Mourinho em 2002/03 que nunca treinou o “bicho”, mas percebeu, até como portista, a importância de um verdadeiro líder.