Apesar do slogan de António José Seguro para estas eleições falar em futuro, Catarina Martins aproveitou o debate com o candidato socialista para revisitar o passado deste à frente do PS e afirmar-se como a verdadeira herdeira do espaço político de oposição à direita nestas presidenciais. A eurodeputada lembrou a “abstenção violenta” no Orçamento de Estado de 2012, mas não se ficou por aí. Acusou Seguro de apenas saber dialogar à direita e de, durante a troika, ter chegado a negociar a entrada do PS no Governo de Passos e ter tentado “ir contra a Constituição”. O socialista rejeitou ter-se aliado à direita durante os seus tempos como secretário-geral do PS e respondeu que se absteve naquele OE “por convicção”.
Logo na sua primeira intervenção, a antiga coordenadora do Bloco de Esquerda mostrou ao que ia, lamentando o facto de “não termos um Jorge Sampaio” nestas presidenciais. Lembrou como o falecido ex-Presidente foi o protagonista de uma coligação com PCP para vencer a Câmara de Lisboa e colou-se ao seu legado de fazedor de pontes à esquerda para diferir o primeiro golpe no adversário: “Somos duas pessoas que sabem fazer diálogos. Mas eu decidi fazê-los à esquerda e o António José Seguro à direita.”
Seguro começou logo por esclarecer que não fez parte dos Governos de José Sócrates, ou seja, não teve palavra na negociação do memorando da troika, mas assumiu que teve de “honrar a palavra” do que foi acordado nessa altura. Lembrou ainda que a maioria de direita não precisava da abstenção do PS para aprovar o OE e que a sua posição foi tomada dando prioridade ao “interesse nacional”, pois sentiu que o “país precisava de coesão quanto ao ajustamento” à chegada da troika.
Catarina Martins insistiu em colar o oponente a Pedro Passos Coelho, dizendo que Seguro quis “aliar-se à direita, contra quem trabalhava”. Voltando ao presente, a eurodeputada trouxe para a discussão o pacote laboral e perguntou ao ex-líder do PS: “O que vai fazer agora?” Contudo, Catarina Martins rapidamente regressaria ao passado para mostrar que esteve do outro lado da barricada durante esses anos. Assinalou que esteve com Isabel Moreira a apelar ao Tribunal Constitucional para a reversão de medidas aprovadas pelo Governo PSD/CDS ou “na Aula Magna, ao lado de Mário Soares, a defender a Constituição”.
Seguro rejeitou a versão dos factos defendida pela adversária e assegurou que na altura se opôs à extinção de feriados ou ao banco de horas individual, medidas do pacote laboral desse Executivo liderado por Passos. O candidato apoiado pelo PS afirmou que foi “graças” a si que não se fez uma revisão constitucional para criar limites constitucionais ao défice e ao endividamento. Depois de vários minutos à defesa, virou-se contra Catarina Martins, acusando a antiga líder do Bloco de Esquerda de ter defendido uma posição igual ao do partido Syriza na negociação da dívida da Grécia. “O que isso deu foi mais sofrimentos, menos pensões, menos salários e mais sofrimento ao povo grego. Eu nunca quis fazer em Portugal o que o Syriza fez na Grécia”, assegurou Seguro.
O socialista também rebateu a ideia de que queria entrar no Governo de Passos Coelho, em 2013. Negou ter existido uma “negociação em termos de Governo”, mas antes uma iniciativa promovida pelo Presidente Cavaco Silva para a um acordo de salvação nacional. “A Catarina preferiu ficar no protesto”, atirou. Seguro também não deixou passar a tentativa de Catarina Martins se associar ao capital político do fundador do PS. “Essa coisa de se agarrar ao património de Mário Soares não lhe fica bem”, disse o socialista, assinalando que foi o candidato número dois na lista do antigo Presidente da República ao Parlamento Europeu.
Como alternativa à posição de Seguro, a candidata apoiada pelo BE assinalou que, durante os anos da troika, houve um “enorme movimento” na Europa para pensar novas maneiras de gerir a dívida pública do qual fez parte. “Quem lutou por essa mudança fez com que quando chegamos ao Covid não tivemos o mesmo resultado que na crise financeira”, defendeu. Sobre a gestão da dívida pública dos países europeus, Seguro respondeu que votou a favor do Tratado Orçamental, enquanto Catarina Martins votou contra. Além disso, Seguro saltou uns anos na revisão da história recente da esquerda para acusar a sua oponente de ter traído o campo político que neste debate tentava reclamar. “Se alguém falhou à esquerda foi quando no penúltimo Governo de António Costa votou contra dois orçamentos”, rematou Seguro.
António José Seguro (AJS): Eu não discuti o memorando, mas tive que honrar a palavra, e por isso, tudo aquilo que estava no memorando, eu disse que honrava, porque a situação era difícil. Mas tudo aquilo que não estava no memorando, eu opus-me, e quando fala, por exemplo, no pacote laboral, eu opus-me, por exemplo, à extinção de feriados, e votei contra. Eu opus-me, por exemplo, ao banco de horas individual, e votei contra. E mais, foi graças a mim, e aí sim eram precisos os votos do Partido Socialista, e eu não coloquei os votos do PS para fazer uma revisão constitucional, para pôr, por exemplo, um limite ao défice e ao endividamento na Constituição da República (…) Nessa altura, qual era o seu modelo económico, propunha? Era igual àquilo que o SYriza aplicou na Grécia. E sabe o que é que isso deu? Deu mais sofrimento, deu menos pensões, deu menos salários, deu mais sofrimento para o povo grego.
Catarina Martins (CM): Em 2015, eu fiz um acordo que permitiu tirar a direita do governo e repor o que a troika tinha cortado, também com a sua abstenção. E absteve-se no pacote laboral, e não devia. Mas digo-lhe mesmo mais, acho até que fez mal, em 2013, em ter chegado a negociar a possibilidade de um governo tripartido, e ter sido preciso Mário Soares vir dizer que podia haver uma cisão no PS se avançasse.
AJS: Isso não é verdade.
CM: Isso está tudo documentado. Eu tenho talvez esta sina de ter memória. Está documentado e qualquer pessoa pode ver na imprensa da altura.
AJS: Não houve negociações para nenhum Governo. Tem de ser séria.
CM: Houve uma negociação e está registado, aliás, na imprensa da época, facilmente se encontra.
AJS: Isso não é verdade. Não houve nenhuma negociação.
CM: Porque é que isto é relevante? Não é pelo facto de eu ter esta coisa da memória que às vezes até um peso sobre nós. É porque quando foi preciso escolher entre a Constituição ou a austeridade, escolheu a austeridade. Quando foi preciso escolher entre a imposição externa ou defender o país, escolheu a imposição externa. E é por isso que quando agora temos um Governo que de tal forma está contra a Constituição, nós temos uma situação em que precisamos de uma Presidente da República que seja capaz de fazer as pontes, que esteja onde é preciso e que faça frente ao Governo para defender a Constituição da República Portuguesa e Portugal, se for preciso.
AJS: Nunca houve negociação em termos de Governo. O que houve foi uma iniciativa do Presidente da República de então, no sentido de se trabalhar num Acordo de Salvação Nacional. E sabe o que é que ele propôs? Que todos os partidos fossem envolvidos nessa discussão. E sabe o que é que a Catarina fez? Diz, não, não, o Bloco de Esquerda não entra. O que estava em causa era encontrarmos uma solução, um outro caminho. E quando foi preciso juntar-se a nós para afirmarmos esse caminho de crescimento que valorizava o emprego, a Catarina disse “não, eu prefiro ficar no protesto do que contribuir para mudar o caminho que o meu país está a ter”.
CM: Enquanto António José Seguro cortava subsídio de férias e subsídio de Natal, eu estava a ir ao Tribunal Constitucional com outras pessoas do Partido Socialista para os repor. Ou estava na Aula Magna com Mário Soares a defender a Constituição da República Portuguesa. E ainda bem, porque foi esse trabalho que fez com que pessoas voltassem a ter salário e pensão. E isso não é coisa pouca. Há uma coisa que eu me lembro muito nessa época. Eu lembro-me de enorme sofrimento, de enorme pobreza. Eu lembro-me das escolas que nem pequeno almoço davam às crianças que mais precisavam. E foi preciso muita determinação contra aquele governo. Sentar-se com um governo que nem pequeno almoço queria dar às crianças não parece ter sido a melhor opção da trai. Mas eu quero discutir o presente. Eu quero, sobretudo, discutir o presente.
AJS: Havia um governo de direita liderado por Pedro Passos Coelho e com Paulo Portas. E foi esse governo que governava e que tomou essas decisões. E, portanto, não é justo tentar-me colar a esse governo. Em segundo lugar, quando se fala de Mário Soares, eu fui o candidato número dois na lista de Mário Soares ao Parlamento Europeu. E, portanto, essa coisa de tentar-se agarrar ao património de Mário Soares é uma coisa que não lhe fica bem.