Há duas soluções que têm problemas logísticos urgentes por resolver. E desta vez não podemos fazer como Salazar, que mandou pintar os bacalhoeiros de branco para não ser atacado pela Alemanha. “Agora não dá para pintar nada, até podemos pintar os bacalhoeiros de cor de laranja ou de cor de rosa”

Um tanque Leopard 2A6, ou carro de combate como lhe chamam os especialistas militares, é um excelente veículo bélico, está armado com um canhão Rheinmetall L/55 de 120 mm, tem uma blindagem reativa e modular com alto nível de proteção para quem está no habitáculo, tem um motor MTU MB 873 Ka-501 com 1.500 cavalos de potência, consegue atingir os 68 km/h e tem uma autonomia de 450 quilómetros por depósito. O problema – neste caso para a Europa – é que pesa aproximadamente 62 toneladas, tem 10,97 metros de comprimento – incluindo o canhão – e 3,76 metros de largura.

Desenho técnico com as dimensões de um tanque Leopard 2A6 (Fonte: Exército português)

O comissário europeu dos Transportes Sustentáveis e do Turismo, Apostolos Tzitzikostas, alertou que o sistema de transportes europeu não está preparado para comportar as movimentações das colunas militares dos 27 Estados-membros para a fronteira com a Rússia, em caso de guerra, antevendo que os tanques iriam ficar presos nos túneis e causariam colapsos de pontes devido ao peso que comportam.

Em caso de guerra com a Rússia, o mais provável é que Portugal fosse uma das principais ligações entre a Europa e os Estados Unidos. Portanto, fica a dúvida: estão as estradas, pontes e túneis nacionais preparados para serem atravessadas por colunas militares, sendo que tal nunca aconteceu em nenhuma das grandes guerras? (E se está a pensar que aconteceu quando o capitão Salgueiro Maia saiu de Santarém rumo ao Terreiro do Paço, desengane-se, porque uma chaimite pesa cerca de 7,5 toneladas, ou seja, cerca de nove vezes menos do que um Leopard 2A6 e quase dez vezes menos do que um M1 Abrams utilizados pelo exército norte-americano).

O major-general Jorge Saramago considera que a “primeira coisa que é preciso fazer, em termos nacionais, é avaliar a capacidade das estradas, das pontes e dos túneis – quer em termos de altura como de largura – para suportar veículos muito pesados e longos”, lembrando que, para além da tara dos carros de combate, será preciso ter também em conta que estes têm de ser “municiados e equipados com toda a palamenta de combate”. “Estamos a falar de pesos brutais, que podem variar entre 70 a 80 toneladas”, diz.

É perto disso que pesa cada um dos 37 Leopard 2A6 que Portugal tem na sua Brigada Mecanizada, que os adquiriu entre 2007 e 2009. Desses, três estão ao serviço da Ucrânia.

O especialista militar recorda que nem todos os camiões TIR têm capacidade para rebocar este tipo de cargas e que, quer por via rodoviária como ferroviária, são necessárias plataformas de dimensões especiais, mais largas e com maior comprimento do que é normal para transportar este tipo de veículos militares. “Estas plataformas são conhecidas como flat cars e são usadas para transportar viaturas militares e carros de combate”, explica Jorge Saramago, garantindo que duvida que este tipo de estruturas exista em número significativo em Portugal: “Estamos a falar do transporte logístico num cenário de guerra, não estamos a falar em transportar um ou dois carros de combate; estamos a falar em transportar 100, 200, 300 e isso é uma brutalidade”.

Tanque M60TM turco – com dimensões inferiores às do Leopard 2A6 – a ser transportado para a fronteira com a Síria, em 2014 (Getty)

Agostinho Costa lembra que esta é uma questão que dificilmente se colocará, mas é “importante” que seja feita para que “não se comece a pensar como é que vão os carros de combate, se pela A5, pela A25 ou pela A1”. “Não é assim” que a logística de uma guerra funciona”, explica o especialista militar da CNN Portugal, porque “para material com este volume e com este peso processa-se fundamentalmente por via marítima e, por terra, o movimento destas viaturas para grandes distâncias faz-se pela ferrovia, depois nas curtas distâncias é que se usam semi-atrelados”.

A justificação prende-se no facto de um Leopard 2A6 – tal como qualquer outra viatura com mais de 60 toneladas – “ter um consumo de combustível absolutamente brutal” e, tendo em conta este quociente custo/benefício, são veículos que “tendencialmente não se deslocam por si só”. “Este tipo de equipamentos militares pesados são transportados até à zona de combate”, explica Agostinho Costa.

Leopard 2A6 em ação na Ucrânia em 2023 (Getty)

No caso de haver um alastramento do conflito na Ucrânia, isso significará uma guerra entre Moscovo e Washington DC, garante sem rodeios Agostinho Costa. Tendo isso em mente e olhando para a geografia do Hemisfério Norte, vai haver uma divisão entre três setores: o território da Europa será o “zona de combate ou teatro operacional”, os EUA são a “zona do interior – onde se faz a logística de produção -” e, por fim, a “zona de comunicações” será o Oceano Atlântico. Resta a dúvida: “Qual é o papel de Portugal? Estamos na zona de comunicações ou na zona de combate?”, questiona o major-general, referindo que é nesta mesma pergunta que as opiniões dos analistas se dividem.

Agostinho Costa defende que Portugal acabará por fica inserido na zona de comunicações, justificando a antevisão com o exemplo do que acontece na Ucrânia desde o início da invasão, em que a Polónia tem sido desde o início a zona de comunicações do conflito, onde estão localizados tanto o APOD – Aerial Port of Debarkation, Porto Aéreo de Desembarque – e o SEAPOD – Seaport of Debarkation, Porto Marítimo de Desembarque – através dos quais chega a território ucraniano todo o tipo de apoio bélico.

“Se fosse eu a fazer o planeamento militar dos EUA, qual seria o SEAPOD? Sines, naturalmente. Qual seria o APOD? As bases aéreas Maceda – Ovar, Beja e, eventualmente, Monte Real; nunca Lisboa, porque senão teríamos mísseis a aterrar em Lisboa”, diz Agostinho Costa. “Se houver um conflito, nós fazemos parte da zona de comunicações. Nós temos uma barreira natural que funciona como proteção que são os Pirinéus, Portugal e Espanha serão os terminais para o reforço à Europa e depois, a partir daqui, a logística será feita por via férrea”, detalha, lembrando que o Mediterrâneo é “um mar fechado” cuja a rota marítima será cortada por submarinos russos no Estreito de Gibraltar, tirando da equação grande parte dos portos espanhóis, franceses, italianos e gregos. Resta o Reino Unido, mas por esta via todo o equipamento militar teria de atravessar o Canal da Mancha, o que também é pouco viável. Então resta Portugal: “Nós somos a linha da frente, somos a frente ribeirinha da Península Ibérica”, remata.

EUA movimentam 150 veículos militares do Texas para Washingto D.C. em 2025 (Getty)

O plano do experiente major-general esbarra somente num detalhe: a bitola ibérica dos caminhos ferros da península que é diferente do resto da Europa. Este é um problema que pode ser contornado através das linhas de alta velocidade com bitola europeia entre Espanha e França ou com sistemas de troca de eixos, o que de qualquer modo transforma este num processo bem mais moroso do que poderia ser com uma bitola comum. Esta é, aliás, uma questão, como destaca Agostinho Costa, que já mereceu a atenção de Bruxelas no programa PESCO (Cooperação Estruturada Permanente entre Estados-membros) que engloba a mobilidade militar, a que já se associou também a NATO. “Acaba por ser um programa misto UE-NATO para o qual já se direcionaram alguns milhares de milhões de euros”, diz.

A importância estratégica do porto de Sines para a NATO e para União Europeia (UE) é inquestionável. Mas este elevadíssimo potencial de ser uma mais-valia durante uma guerra convencional parece ser linearmente proporcional às preocupações de que se transforme num ponto de estrangulamento logístico de toda a operação de fornecimento de armamento militar ocidental.

A infraestrutura da Costa Vicentina é o único porto de águas profundas com ligação a um mar aberto da margem oeste da Europa continental e é crucial para receber embarcações norte-americanas perante eventuais bloqueios no Estreito de Gibraltar e no Canal da Mancha. Contudo, as limitações ferroviárias e a distância a que se encontra do previsível teatro de operações diminui a relevância e levanta receios sobre o protagonismo que o porto de Sines possa vir a ter. 

Estas mesmas dúvidas têm vindo a ser indiretamente expressadas tanto pela Comissão Europeia como pela própria NATO em sucessivos relatórios como no Plano de Mobilidade Militar da UE, que refere a necessidade de ligações entre o porto de Sines e a fronteira com Espanha.

Em 2022, Bruxelas já tinha apresentado até o projeto “Eixo Prioritário n.º 16”, que perspetivava três ligações férreas de alta capacidade: Sines – Badajoz, Algeciras – Bobadilla e uma última que atravessava os Pirenéus. Para cumprir a ambição de criar de “um eixo ferroviário de alta capacidade para o transporte de mercadorias, ligando os portos de Algeciras, no sul de Espanha, e de Sines, no sudoeste de Portugal, ao centro da UE”, foram alocados 1,27 milhões de euros dos cofres europeus para realizar estudos com vista “a aumentar a sua capacidade através de um prolongamento do quebra-mar existente, reorganizar e melhorar a acessibilidade ferroviária e rodoviária e as ligações multimodais” do Porto de Sines, podia ler-se no comunicado da Comissão Europeia.

Comboio carregado com armamento militar norte-americano atravessa estação de Magdeburg-Sudenburg, nos EUA (Getty)

“As novas linhas Sines-Badajoz e Algeciras-Bobadilla são críticas para o desenvolvimento dos portos de Sines e Algeciras e irão fomentar o tráfego entre Lisboa, Setúbal, Sines e Algeciras e o centro de Espanha e o resto da Europa. A sua construção de acordo com as novas normas de velocidade mais elevadas, e utilizando travessas de bitola dupla, permitirá, no futuro, a plena interoperabilidade entre as redes portuguesas e espanholas de transporte de mercadorias e o resto da rede ferroviária transeuropeia”, alertava Bruxelas em 2022.

Volvidos mais de três anos, aquela que é uma das infraestruturas estratégicas da NATO permanece isolada da ferrovia. Mas o que travou ou atrasou as intenções europeias? Na realidade, foi um pouco de tudo, mas essencialmente obstáculos técnicos, problemas de interoperabilidade e atrasos no cumprimento de prazos.

A dificuldade recorrente prende-se com as diferenças entre a bitola ibérica – distância entre carris de 1.668 mm – e a europeia – distância entre carris de 1.435 mm -, mas também o facto de terem sido identificadas grandes necessidades de eletrificação ou a incompatibilidade dos sinais ferroviários geram anticorpos ao projeto ferroviário europeu.  Ainda assim, o obstáculo maior parece ter ocorrido na falta de coordenação supranacional entre Portugal, Espanha e França. Lisboa foi incapaz de cumprir o programa Ferrovia 2020 lançado por Pedro Nuno Santos – depois da demissão do ministro das Infraestruturas e do governo de Costa desabar -, em Espanha grande parte das secções do Corredor do Atlântico foram-se atrasando e, em Paris, o corredor trans-Pirenéus e a ligação ao País Basco também não tiveram quaisquer avanços.

França movimenta carros de combate para missão da NATO na Roménia em 2022 (Getty)

Para além da localização geográfica, Agostinho Costa destaca que o porto de Sines cumpre dois dos requisitos necessários para este tipo de cenário: tem uma entrada de grande dimensões e águas profundas capazes de comportar navios de grandes dimensões. “Agora, isto implica que uma linha de caminho de ferro de ligação do porto de Sines à Europa seja urgente e com bitola europeia e sem fantasias”, diz Agostinho Costa.

“Isso é um problema”, acrescenta Jorge Saramago, que vai obrigar a que haja mudanças de carruagens em algum momento antes do armamento sair da Península Ibérica. “Agora imagine-se fazer isto com cargas de 80, 160 e até mais toneladas, é uma operação dificílima que demorará dias para apenas um comboio, o que numa frente de batalha fará toda a diferença”, admite, rematando: “É impensável”.

O major-general lembra ainda que, em todos os pontos do trajeto entre Sines e o teatro de operações em que não exista uma alternativa férrea, as “pontes e viadutos têm de ser alvo de reforços estruturais para suportar pesos deste tipo”. Jorge Saramago defende que “toda esta categorização das infraestruturas deve estar feita desde o tempo de paz” para que, no pior dos cenários, os militares saibam “até que ponto se pode utilizar este ou aquele itinerário em face da carga que está a ser transportada”.

Agostinho Costa desvaloriza ainda a narrativa de Apostolos Tzitzikostas, porque o problema de os tanques passarem em pontes e túneis só se coloca na frente de combate e aí é “peanuts”. Na Ucrânia, por exemplo, nunca se veem movimentos de brigadas mecanizadas, quando são deslocadas forças russas do centro da Sibéria vêm sempre por caminho de ferro e o mesmo acontece também sempre que se realizam exercícios da NATO. “Nada é por estrada, é tudo por caminho de ferro, porque o caminho de ferro é o grande meio logístico para transportar material de artilharia, contentores ou carros de combate”, explica, lembrando que “um comboio permite transportar quase uma brigada inteira, podem ir todos os carros de combate que se queira, porque caso uma locomotiva não chegue, metem-se duas, como se pode ver por exemplo nas imagens de colunas infindáveis de T-90 russos que vêm da fábrica Uralvagonzavod nos Montes Urais – a maior fábrica de tanques no mundo”.

Rússia retira carros de combate de base militar na Geórgia em 2006 (Getty)

O especialista militar da CNN Portugal recorda ainda que toda esta operação logística terá um problema acrescido em comparação com a Segunda Guerra Mundial, porque desta vez – por fazer parte da NATO – Portugal não poderá ser um Estado neutral. “O Salazar mandou pintar os bacalhoeiros de branco, como sinal de que éramos neutros, para que pudessem continuar a pescar no Mar do Norte e os submarinos alemães, sempre que viam um Dory branco sabiam que era português”, recorda Agostinho Costa. O problema é que “agora não dá para pintar nada, até podemos pintar os bacalhoeiros de cor de laranja ou de cor de rosa”.

Perante tudo o que parece ainda estar por fazer ao nível das infraestruturas para uma eventual guerra entre o Ocidente e a Rússia, Jorge Saramago recua ao último grande tumulto na Europa – o SARS-CoV-2 -, para recordar que “nem em Portugal nem no mundo, estavam preparados para uma pandemia, mas a guerra é certa”. 

O porto de Sines é um dos poucos portos de águas profundas com ligação a um mar aberto na parte ocidental da Europa (Getty)

“Não estou a dizer que vai haver guerra amanhã ou que vai haver guerra com a Rússia, mas a natureza humana é conflitual. Aquilo que é anormal, do ponto de vista histórico é que a Europa tenha vivido em paz durante 80 anos, desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Isto é que não é normal. Historicamente, esperemos que vivamos em paz 150, 200, 300 anos ou que nunca tenhamos guerra, mas, do ponto de vista histórico, isto é que é anormal”, explica Jorge Saramago.

Quanto a evidências em caso de guerra, Agostinho Costa garante que, em caso de guerra, “vamos ter submarinos russos no ‘nice, big, beautiful ocean’ [como lhe chamou Donald Trump] tal como na Segunda Guerra Mundial e qualquer reforço miliar para a Europa terá de vir em colunas marítimas com escolta”.

O major-general culmina ainda com uma certeza: “A batalha vai estar no Atlântico” e isso terá um impacto direto nas linhas comunicacionais e de reabastecimento com a Madeira e os Açores. “Vamos ter natural dificuldades em reabastecer os arquipélagos e, neste momento, o Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA) deveria estar a fazer planos de contingência nesse sentido, porque com esta linhas amplamente comprometidas não é com dois submarinos nem com as fragatas que temos que garantimos essas comunicações”. E há efetivamente um plano de contingência? “Acho que não, mas também me lembro de uma altura em que a Segurança Interna tinha planos para tudo, mas depois eram todos secretos”, finda Agostinho Costa.